O Crime do Padre Amaro/XIII: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 13]]
 
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João Eduardo, à noitinha, ia sair de casa para a Rua da Misericórdia, levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para Amélia escolher, quando à porta encontrou a Ruça que ia puxar a campainha.
 
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"SR. JOÃO EDUARDO.
 
O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era V. Sa. uma pessoa de bem e que me poderia fazer feliz,' mas como se sabe tudo, e que foi o
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senhor que escreveu o artigo do Distrito, e caluniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje, considerar tudo acabado entre nós, pois não há banhos publicados nem despesas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe comunico por ordem da mamã, e sou
 
criada de V. Sa.
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Amélia Caminha'' .
 
João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a claridade do candeeiro, imóvel como uma pedra, com o seu rolo de papéis pintados debaixo do braço. Maquinalmente, voltou a casa. As mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia acender o candeeiro. De pé, junto da mesa, releu a carta. Depois ficou ali, fatigando a vista contra a chama da torcida, com uma sensação arrefecedora de Imobilidade e de Silêncio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse emudecido e parado. Pensou onde teriam elas ido passar a noite. Lembranças de serões felizes na Rua da Misericórdia atravessaram-lhe devagar na memória: Amélia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o cabelo muito preto e o colar muito branco o seu pescoço tinha uma palidez que a luz amaciava... Então a idéia de que a perdera para sempre varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes
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entre as mãos, tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas relampejavam-lhe um momento no espírito, esvaíam-se. Queria escrever-lhe! Tirá-la por justiça! Ir para o Brasil! Saber quem descobrira que ele era o autor do artigo! - E como isto era o mais praticável àquela hora, correu à redação da Voz do Distrito.
 
Agostinho, estirado no canapé, com a vela ao pé sobre uma cadeira, saboreava os jornais de Lisboa. A face descomposta de João Eduardo assustou-o.
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— Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.
 
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado,
Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e saiu arremessando a porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, atraído pela obscuridade, à estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intolerável palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir um silêncio universal; por vezes a idéia da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então imaginava ver toda a paisagem oscilar e o chão da estrada afigurava-se-lhe mole como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na Rua da Misericórdia, com o olhar cravado para a janela da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto de Amélia alumiou-se também; ela ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua beleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa; uma fadiga intolerável prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o amolecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus próprios soluços, - até que ficou adormecido, de bruços, numa massa inerte.
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Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e saiu arremessando a porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, atraído pela obscuridade, à estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intolerável palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir um silêncio universal; por vezes a idéia da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então imaginava ver toda a paisagem oscilar e o chão da estrada afigurava-se-lhe mole como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na Rua da Misericórdia, com o olhar cravado para a janela da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto de Amélia alumiou-se também; ela ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua beleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa; uma fadiga intolerável prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o amolecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus próprios soluços, - até que ficou adormecido, de bruços, numa massa inerte.
 
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Mas ele plantara-se diante dela, muito decidido, com os olhos vermelhos como carvões:
 
— Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a
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menina tinha-me ralado de ciúmes... Mas o que a menina diz de maus costumes é uma calúnia. Eu sempre fui um homem de bem...
 
— O Sr. padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
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João Eduardo recuou, tirando o chapéu; e ela, imediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.
 
Então, num desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na véspera, por entre os seus acessos de choro, sentindo-se tão abandonado, se lembrara do doutor Godinho. Fora outrora seu escrevente; e como por pedido dele entrara no cartório do Nunes Ferral, e por sua influência ia ser acomodado no governo civil, julgava-o uma Providência pródiga e inesgotável! Demais, desde que escrevera o Comunicado considerava-se da redação da Voz do Distrito, do grupo da Maia; agora, que era atacado pelos padres, devia claramente ir acolher-se à forte proteção do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reação, o "Cavour de Leiria", como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, autor dos Ferrões! - E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarelo, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia, ia num alvoroço de esperanças,
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contente em se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas daquele colosso!
 
O doutor Godinho descera já ao escritório, e repoltreado na sua poltrona abacial de pregos amarelos, com os olhos no teto de carvalho escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com majestade os "bons-dias" de João Eduardo.
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O doutor Godinho parecia contrariado.
 
— Leis! exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer você que haja? Quer querelar
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do pároco?... Por quê? Ele bateu-lhe? Roubou- lhe o relógio? Insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
 
— Oh, senhor doutor, mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes, senhor doutor! Caluniou-me!
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— A culpa não é dela, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa é dessa canalha do cabido!
 
O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o Sr. João Eduardo que tivesse cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que o senhor pároco possuísse nessa casa outra influência, que não fosse a dum hábil diretor espiritual... E recomendava ao Sr. João Eduardo, com a autoridade
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que lhe davam os anos e a sua posição no pais, que não fosse espalhar, por despeito, acusações que só serviam para destruir o prestigio do sacerdócio, indispensável numa sociedade bem constituída! - Sem ele, tudo seria anarquia e orgia!
 
E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava nessa manhã com "o dom da palavra".
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O doutor pulou de indignação na sua cadeira abacial:
 
— Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto é, disse; disse-o a minha mulher, porque numa família bem constituída não deve haver segredos entre esposo e esposa. Ela perguntou-me, disse-lho... Mas suponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma: ou o Comunicado era uma calúnia, e então sou eu que devo acusá-lo de ter poluído um jornal honrado com um acervo de difamações; ou era verdade, e então
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que homem é o senhor que se envergonha das verdades que solta e que não se atreve a manter á luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?
 
Duas lágrimas enevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante daquela expressão esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação tão lógica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:
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Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religião que os justifica. Voltou muito decidido ao escritório, e entreabrindo a porta:
 
— Vossa excelência ao menos agora dá licença
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que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta maroteira, cascar nessa canalha...
 
Esta audácia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando terrivelmente os braços:
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— Pois não há desculpa para um homem de vinte e seis anos ter essas idéias subversivas. Adeus, feche a porta. E escute. Escusa de pensar em mandar outro Comunicado para outro qualquer jornal. Não lho consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar, estou-lho a ler nos olhos. Pois não lho consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má ação social!
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Tomou uma grande atitude na poltrona, repetiu com força:
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— Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando por um caminho fatal... O que espero é que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!
 
João Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquele colosso, repelia-o com palavras tremendas! E que podia
João Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquele colosso, repelia-o com palavras tremendas! E que podia ele, pobre escrevente de cartório, contra o padre Amaro que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o papa, classe solidária e compacta que lhe aparecia como uma medonha cidadela de bronze erguendo- se até ao céu! Eram eles que tinham causado a resolução de Amélia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de párocos, cônegos e beatas. Se ele pudesse arrancá-la àquela influência, ela tomaria a ser bem depressa a sua Ameliazinha que lhe bordava chinelas, e que vinha toda corada vê-lo passar à janela! As suspeitas que outrora tivera tinham-se desvanecido naqueles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ela, costurando junto do candeeiro, falava da mobília que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ela amava-o, decerto... Mas quê, tinham- lhe dito que ele era o autor do Comunicado, que era herege, que tinha costumes devassos; o pároco, na sua voz pedante, ameaçara-a com o Inferno; o cônego, furioso, e todo-poderoso na Rua da Misericórdia porque dava para a panela, falara teso - e a pobre menina, assustada, dominada, com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa-fé, que ele era uma fera! E àquela hora, enquanto ele ali andava pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da Rua da Misericórdia, enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da rapariga, de pema traçada, palrava de alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem! E não poder sequer "fazer escândalo", agora que a Voz do Distrito se lhe tomava inacessível!
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João Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquele colosso, repelia-o com palavras tremendas! E que podia ele, pobre escrevente de cartório, contra o padre Amaro que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o papa, classe solidária e compacta que lhe aparecia como uma medonha cidadela de bronze erguendo- se até ao céu! Eram eles que tinham causado a resolução de Amélia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de párocos, cônegos e beatas. Se ele pudesse arrancá-la àquela influência, ela tomaria a ser bem depressa a sua Ameliazinha que lhe bordava chinelas, e que vinha toda corada vê-lo passar à janela! As suspeitas que outrora tivera tinham-se desvanecido naqueles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ela, costurando junto do candeeiro, falava da mobília que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ela amava-o, decerto... Mas quê, tinham- lhe dito que ele era o autor do Comunicado, que era herege, que tinha costumes devassos; o pároco, na sua voz pedante, ameaçara-a com o Inferno; o cônego, furioso, e todo-poderoso na Rua da Misericórdia porque dava para a panela, falara teso - e a pobre menina, assustada, dominada, com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa-fé, que ele era uma fera! E àquela hora, enquanto ele ali andava pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da Rua da Misericórdia, enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da rapariga, de pema traçada, palrava de alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem! E não poder sequer "fazer escândalo", agora que a Voz do Distrito se lhe tomava inacessível!
 
Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o
Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o pároco aos murros, com a força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal, que revelassem as intrigas da Rua da Misericórdia, amotinassem a opinião, caíssem sobre o padre como catástrofes, o forçassem a ele, ao cônego e aos outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira! Ah! estava certo que a Ameliazinha, livre daqueles galfarros, correria logo aos seus braços, com lágrimas de reconciliação...
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Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o pároco aos murros, com a força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal, que revelassem as intrigas da Rua da Misericórdia, amotinassem a opinião, caíssem sobre o padre como catástrofes, o forçassem a ele, ao cônego e aos outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira! Ah! estava certo que a Ameliazinha, livre daqueles galfarros, correria logo aos seus braços, com lágrimas de reconciliação...
 
Procurava assim à força convencer-se que "a culpa não era dela"; recordava os meses de felicidade antes da chegada do pároco; arranjava explicações naturais para aquelas maneirinhas ternas que ela outrora tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciúmes desesperados: era o desejo, coitada, de ser agradável ao hóspede, ao amigo do senhor cônego, de o reter para vantagem da mãe e da casa! E além disso, como ela andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o Comunicado, estava certo, não era natural dela - vinha-lhe soprada pelo pároco e belas beatas. E achava uma consolação nesta idéia que não era repelido como namorado, como marido - mas que era uma vítima das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto acumulava-lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava ansiosamente uma vingança, atirando a imaginação, aqui e além - mas vinha-lhe sempre a mesma idéia, o artigo do jornal, a verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um figurão!
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Um homem do campo, amarelo como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouveia.
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— Está na consulta, Sr. Joãozinho, faça favor de entrar.
 
Em dias de mercado os doentes do campo afluíam sempre. Mas àquela hora - quando os vizinhos das freguesias se reúnem nas tabernas - havia só um velho, uma mulher com uma criança
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ao colo e o homem do braço ao peito, esperando numa saleta baixa com bancos, dois manjericões na janela e uma grande gravura da Coroação da Rainha Vitória. Apesar do sol claro que entrava no pátio, e de uma fresca folhagem de tília que roçava o peitoril da janela, a saleta dava tristeza, como se as paredes, os bancos, os mesmos manjericões estivessem saturados da melancolia das doenças que ali tinham passado. João Eduardo entrou e sentou-se a um canto.
 
Tinha batido meio-dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto: era de uma freguesia distante; deixara no mercado a irmã, e havia uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a criança rabujava, ela sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canela envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos desconsolados que tomavam mais lúgubre a sua longa face amarela. Aquela demora enervava, amolecia o escrevente; sentia perder gradualmente o ânimo de ocupar o doutor Gouveia; preparava laboriosamente a sua história, mas ela parecia-lhe agora bem insuficiente para o interessar. Vinha-lhe então um desalento, que as faces insípidas dos doentes tomavam ainda mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só de misérias, de sentimentos traídos, de aflições, de doenças! Erguia-se; e com as mãos atrás das costas ia olhar desconsoladamente a Coroação da Rainha Vitória.
 
De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam.
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Lá estavam; e através do batente de baeta verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes pachorrentas palrarem.
 
— Em caindo aqui, é dia perdido! rosnava o velho.
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Os dois homens olharam-se com inveja.
 
Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de
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braço ao peito. João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difícil ir assim, sem cerimônia, pedir proteção ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do estômago, e depois, incidentalmente, contar os seus infortúnios...
 
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha que lhe caía sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapéu desabado na cabeça, calçando as luvas de fio de Escócia.
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O doutor escutava-o, cofiando a barba.
 
— Vejo o que é. Tu e o padre, disse ele,
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quereis ambos a rapariga. Como ele é o mais esperto e o mais decidido, apanhou-a ele. É lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a fêmea e a presa pertencem-lhe.
 
Aquilo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse, com a voz perturbada:
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— Mas, senhor doutor...
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— Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediências às instruções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa católica. É o que te digo. Toda a vida do bom católico, os seus pensamentos, as sua idéias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as sua relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos - tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cônego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas idéias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas. Dado isto, se o padre disse à pequena que não devia nem casar, nem sequer falar contigo, a criatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa católica, uma devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.
 
João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas frases, a que a face plácida, a bela barba grisalha do doutor davam uma autoridade maior. Parecia-lhe agora quase impossível recuperar Amélia, se ela pertencia assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas
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enfim, por que era ele considerado um marido prejudicial?
 
— Eu compreenderia, disse ele, se fosse um homem de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me bem. Eu não faço senão trabalhar. Eu não frequento tabernas, nem troças. Eu não bebo, eu não jogo. As minhas noites passo-as na Rua da Misericórdia, ou em casa a fazer serão para o cartório...
 
— Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura - és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem sido perfeitos. Hás-de ter ouvido falar de Sócrates, dum outro chamado Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o Inferno... Isto prova que a moral católica é diferente da moral natural e da moral social... Mas são coisas que tu compreendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a doutrina católica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e que vai dando
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cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez anos, é entre o clero um homem excelente, porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas. Enfim, amigo, estas coisas são assim. E parece que são boas, porque há milhares de pessoas respeitáveis que as consideram boas, o Estado mantém-nas, gasta até um dinheirão para as manter, obriga-nos mesmo a respeitá-las, - e eu, que estou aqui a falar, pago todos os anos um quartinho para que elas continuem a ser assim. Tu naturalmente pagas menos...
 
— Pago sete vinténs, senhor doutor.
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— Sou uma vítima, senhor doutor!
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— Fazes mal. Não deve haver vítimas, quando não seja senão para impedir que haja tiranos - disse o doutor, pondo o seu largo chapéu desabado.
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— E no pecado original?
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— Também...
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— Vossa excelência então desculpe, senhor doutor...
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— Não há de quê... Manda a Rua da Misericórdia ao diabo!