O Crime do Padre Amaro/XIV: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 14]]
 
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João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo cansado da noite desesperada que passara, daquela manhã cheia de passos inúteis das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouveia.
 
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Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, de esperança e de cólera. Desejaria ir estirar-se ao comprido, num sítio isolado, longe de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante meses. Mas como já passava das três horas, apressava-se para o cartório do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a sua!
 
Dobrava a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osório se encontrou com um moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito larga, e com um bigodinho tão preto
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que parecia postiço sobre as suas feições extremamente pálidas.
 
— Olé! Que é feito, João Eduardo?
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— De modo que lá estou outra vez com o raquítico... Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia. Não havia de acabar o mundo, que diabo, por ele faltar um dia ao cartório!
 
João Eduardo então lembrou-se que desde a véspera não tinha comido. Era talvez a debilidade que o trouxera assim estonteado, tão pronto a
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desanimar... Decidiu-se logo - contente, depois das emoções e das fadigas da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante dum prato cheio, na intimidade com um camarada de ódios iguais aos seus. Demais, os repelões que sofrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez de simpatia; e foi com calor que disse:
 
— Homem, valeu! Cais-me do céu! Este mundo é uma choldra. Se não fosse por alguma hora que se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar por cá! .
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O dono da casa de pasto, o tio Osório, personagem obeso e contente da vida, com as mangas da camisa arregaçadas até aos ombros, os braços nus muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e finória, felicitou logo Gustavo de o ver de novo em Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das más águas de Lisboa e do muito paucampeche nos vinhos... E que havia dele servir aos cavalheiros?
 
Gustavo, plantando-se diante do contador, de
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chapéu para nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o entusiasmara em Lisboa:
 
— Tio Osório, sirva-nos fígado de rei, com rim grelhado de padre! O tio Osório, pronto à réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:
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Tremidito... Muito pouca-vergonha em política... A classe operária começa a mexer-se... Falta de união, por ora... Está-se à espera de ver como as coisas correm em Espanha... Há-de havê-las bonitas! Tudo depende de Espanha...
 
Mas o tio Osório, que juntara alguns vinténs e comprara uma fazenda, tinha horror a tumultos... O que se queria no país era paz... Sobretudo o que lhe desagradava era contar-se com
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espanhóis... De Espanha, deviam os cavalheiros sabê-lo, "nem bom vento nem bom casamento"!
 
— Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar de atirar abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, não há portugueses nem espanhóis, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio Osório!
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Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.
 
Mas o tipógrafo achava todas essas histórias
Mas o tipógrafo achava todas essas histórias de mulheres ridículas. O tempo não estava para amores... O homem do povo, o operário que se agarrava a uma saia para não despegar era um inútil... era um vendido! Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopólios, trabalhar para a república! Não se queria lamúria, queria-se ação, queria- se a força! - E carregava furiosamente no r da palavra - a forrrça! - agitando os seus pulsos magríssimos de tísico sobre o grande prato de iscas que o moço trouxera.
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Mas o tipógrafo achava todas essas histórias de mulheres ridículas. O tempo não estava para amores... O homem do povo, o operário que se agarrava a uma saia para não despegar era um inútil... era um vendido! Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopólios, trabalhar para a república! Não se queria lamúria, queria-se ação, queria- se a força! - E carregava furiosamente no r da palavra - a forrrça! - agitando os seus pulsos magríssimos de tísico sobre o grande prato de iscas que o moço trouxera.
 
João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o tipógrafo, doido pela Júlia padeira, aparecia sempre com os olhos vermelhos como carvões, e atroava a tipografia com suspiros medonhos. A cada ai os camaradas, troçando, davam uma tossezinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o Medeiros tinham-se esmurrado no pátio...
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João Eduardo receou tê-lo ofendido.
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— Ó Gustavo, sejamos razoáveis! um homem pode ter os seus princípios, trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma família.
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O tio Osório acariciou o cachaço e disse com um tom finório:
 
— Eu lhe respondo, Sr. Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós... E em política, como em negócio, quem for com o que elas dizem vai pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se
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quer que lhe diga, já vai em vinte anos e não me tenho achado mal.
 
Gustavo pulou no banco:
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Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz doméstica, se sujeitava a jejuar às sextas-feiras, e palmilhar aos domingos o caminho da capela de ripanço debaixo do braço...
 
— E é o que te há-de suceder!... Tu tens idéias menos más a respeito da religião, mas ainda
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te hei-de ver de opa vermelha e círio na procissão do Senhor dos Passos... Filosofia e ateísmo não custam nada quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas praticá-los em família, quando se tem uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te há-de suceder, se é que te não vai sucedendo já hás-de atirar as tuas convicções liberais para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!
 
João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha Amélia certa, aquela acusação (que o tipógrafo fazia só para questionar, para palrar) tê-lo-ia escandalizado. Mas hoje! Justamente quando ele perdera Amélia por ter dito de alto, num jornal, o seu horror a beatos! Hoje que se achava ali, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exatamente pelas suas opiniões liberais!...
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Contou-lhe então a história do Comunicado - calando todavia que o escrevera num fogo de ciúmes, e apresentando-o como uma pura afirmação de princípios... E que notasse esta circunstância, ia então casar com uma rapariga devota, numa casa que era mais frequentada por padres que a sacristia da Sé...
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— E assinaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.
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E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da Rua da Misericórdia?
 
Tanto interesse comoveu João Eduardo: e dum
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fôlego fez a sua confidência. Mostrou-lhe mesmo a carta de Amélia que ela decerto, coitada, fora levada a escrever num terror do Inferno, sob a pressão dos padres furiosos...
 
— E aqui tens a vítima que eu sou, Gustavo!
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— Qual? Contar tudo no Distrito, num artigo tremendo!
 
João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor
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Godinho: dali por diante o Distrito estava fechado aos senhores livres-pensadores!
 
— Cavalgadura! rugiu o tipógrafo.
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— Viva Pio Nono!
 
Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremetido. Mas João Eduardo sossegou-o. E o tipógrafo,
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sentando-se tranquilamente, rechupou o fundo do copo.
 
Então, com os cotovelos sobre a mesa, a garrafa entre eles, conversaram baixo, de rosto a rosto, sobre o plano do folheto. A coisa era fácil: escrevê-lo-iam ambos. João Eduardo queria-o em forma de romance, de enredo negro, dando ao personagem do pároco os vícios e as perversidades de Calígula e de Heliogábalo. O tipógrafo porém queria um livro filosófico, de estilo e de princípios, que demolisse de uma vez para sempre o Ultramontanismo! Ele mesmo se encarregava de imprimir a obra aos serões, grátis, já se sabe. - Mas apareceu-lhes então, bruscamente, uma dificuldade.
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— Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher, nem pão!
 
Isto fez lembrar também a Gustavo a cólera provável do doutor Godinho, dono da tipografia.
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O doutor Godinho, que depois da reconciliação com a gente da Rua da Misericórdia, retomara publicamente a sua considerável posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...
 
— É o diabo, pode-nos sair caro, disse ele.
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Mas o tio Osório não aparecia. Gustavo martelou a mesa a toda a força com o cabo da faca. E enfim, furioso, saiu fora ao contador "para arrebentar a pança àquele vendido que fazia assim esperar um cidadão".
 
Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando
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com o barão de Via-Clara, que, em vésperas de eleições, vinha pelas casas de pasto apertar a mão aos compadres. E ali na taberna, parecia magnífico o barão, com a sua luneta de ouro, os botins de verniz sobre o solo térreo, tossicando ao cheiro acre do azeite fervido e das emanações das borras de vinho.
 
Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubículo.
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— Não te aflijas, prometeu o tipógrafo com solenidade, que a vingança não vem longe!
 
Fez-lhe então, baixo, a confidência "das coisas que se preparavam em Lisboa". Tinham-lhe afiançado que havia um clube republicano a que até pertenciam figurões - e que era para ele uma garantia superior de triunfo. Além disso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Ele mesmo - e murmurava quase contra a face de João Eduardo, estirado sobre a mesa - fora falado para pertencer a uma seção da Internacional, que devia organizar um espanhol de Madri; nunca vira o espanhol, que se disfarçava por causa da policia; e a coisa falhara porque o Comitê tinha falta de fundos... Mas era certo haver um homem, que possuía um talho, que prometera cem mil-réis...
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O exército, além disso, estava na coisa: tinha visto numa reunião um sujeito barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de major... - De modo que, com todos estes elementos, a opinião dele Gustavo, era que dentro de meses, governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses monstros iam pelos ares!
 
— E então somos nós os reizinhos, menino! Godinho, Nunes toda a cambada ferramo-la na enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao Godinho... Padres, derreamo-los à pancada! E o povo respira, enfim!
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E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia, aspirarem a uma Revolução que lhes permitisse - a um reaver a menina Amélia, a outro espancar o patrão Godinho.
 
Eram quase cinco horas quando saíram enfim do cubículo. O tio Osório, que se interessava por
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eles por serem rapazes de instrução, notou logo, examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu Popular, que vinham tocaditos. João Eduardo, sobretudo, de chapéu carregado e beiço trombudo: "pessoa de mau vinho", pensou o tio Osório, que o conhecia pouco. Mas o Sr. Gustavo, como sempre, depois dos três litros, resplandecia de júbilo. Grande rapaz! Era ele que pagava a conta; e gingando para o balcão, batendo de alto com as suas duas placas:
 
— Encafua mais essas na burra, Osório pipa!
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O tipógrafo puxou-o para o balcão:
 
— Diz aqui ao tio Osório quem é o Bibi! Quem é o Bibi?... Olhe para isto, tio Osório! Rapaz de talento, e dos bons! Veja-me isto! Com duas penadas dá cabo do Ultramontanismo! É cá dos meus! Também entre nós é para a vida e para a morte. Deixa lá a conta, Osório barrigudo, ouve o que
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te digo! Este é dos bons... E se ele aqui voltar e quiser dois litros a crédito, é dar-lhos... Cá o Bibi responde por tudo.
 
— Temos pois, começou o tio Osório, iscas a dois, salada a dois...
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— Quem vai para a rua, quem vai para a rua? rugiu o escrevente, empinando-se, de punho fechado. Repita lá isso de ir para a rua! Com quem está você a falar?
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O tio Osório não replicava, apoiado sobre as mãos ao balcão, patenteando os seus enormes braços que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
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— Eu respondo por ele, Osório! É um cavalheiro! Mas tem tido desgostos, e não está acostumado a um litro de mais. É o que é! Mas é dos bons... Você desculpe, tio Osório. Que eu respondo por ele...
 
Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mão ao tio Osório. O taberneiro declarou com ênfase que não quisera insultar o cavalheiro. Os shake-hands então sucederam-se com veemência. Para consolidar a reconciliação, o tipógrafo pagou três canas brancas. João Eduardo, por brio, ofereceu também um giro de conhaque. E com os copos em fila sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se de cavalheiros, - enquanto o borracho, esquecido ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabeça sobre os
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punhos e o nariz sobre o litro, se babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos dentes.
 
— Disto é que eu gosto, dizia o tipógrafo a quem a aguardente aumentara a ternura. Harmonia! Cá o meu fraco é a harmonia! Harmonia entre a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria era ver uma grande mesa, e toda a humanidade sentada num banquete, e fogo preso, e chalaça, e decidirem-se as questões sociais! E o dia não vem longe em que você o há-de ver, tio Osório!... Em Lisboa as coisas vão-se preparando para isso. E o tio Osório é que há-de fornecer o vinho... Hem, que negociozinho! Diga que não sou amigo!
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Dois soldados entraram então na taberna - e Gustavo julgou que eram horas de ir para a tipografia. Senão, não se haviam de separar todo o dia, não se haviam de separar toda a vida!... Mas o trabalho é dever, o trabalho é virtude!
 
Saíram, enfim, depois de mais shake-hands com o tio Osório. À porta, Gustavo jurou ainda ao escrevente uma lealdade de irmão; obrigou-o a aceitar a sua bolsa de tabaco; e desapareceu à
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esquina da rua, de chapéu para a nuca, trauteando o Hino do Trabalho.
 
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Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando em redor com o sobrolho carregado: mas o largo parecia deserto; à porta da farmácia do Carlos um rapazito, sentado no degrau, guardava pela arreata um burro carregado de erva; aqui e além, galinhas iam picando o chão vorazmente; o portão da igreja estava fechando; e apenas se ouvia o ruído de marteladas numa casa ao pé em que havia obras.
 
E João Eduardo ia seguir para os lados da alameda - quando apareceram no terraço da igreja,
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da banda da sacristia, o padre Silvério e o padre Amaro, conversando, devagar.
 
Batia então um quarto na torre, e o padre Silvério parou a acertar o seu cebolão. Depois os dois padres observaram maliciosamente a janela da administração de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto do senhor administrador de binóculo cravado para a casa do Teles alfaiate. E desceram enfim a escadaria da Sé, rindo de ombro a ombro, divertidos com aquela paixão que escandalizava Leiria.
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Janelas no largo abriam-se à pressa. A Amparo da botica, em saia branca, apareceu à varanda, espavorida; o Carlos precipitara-se do laboratório em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na sacada, bracejava, com o binóculo na mão.
 
Enfim o escrivão da administração, o Domingos,
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compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas; e com o cabo de polícia levou logo para a administração o escrevente, que não resistia, todo pálido...
 
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor pároco para a botica; fez preparar, com estrépito, flor de laranja e éter; gritou pela esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o ombro de sua senhoria: haveria intumescência?
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— E tu não tens vergonha, no meio dum desgosto destes, um desgosto para toda a cidade, de ficar aqui com esse animal, que não faz senão zurrar? Para longe, insolente, para longe!
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Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para evitar a "curiosidade da populaça". E a boa Amparo apareceu logo com dois cálices do Porto, um para o senhor pároco, outro para o Sr. padre Silvério que se deixara cair a um canto do canapé apavorado ainda, extenuado de emoção.
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O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, ele dissera, diante da Amparozinho e de D. Josefa, a irmã do respeitável cônego Dias, que estas idéias de materialismo e ateísmo estavam levando a mocidade aos mais perniciosos excessos... E mal sabia ele então que estava profetizando!
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— Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os deveres de cristão (assim no-lo afirmou D. Josefa), associa-se com bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos periódicos ataques abjetos contra a religião... E enfim, possuído duma vertigem de ateísmo, atira-se, diante mesmo da catedral, sobre um sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta assassiná-lo! Ora, pergunto eu, o que há no fundo de tudo isto? Ódio, puro ódio à religião de nossos pais!
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— Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.
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— E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do concelho!
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— Hei-de tomar notas. Mas não se trata da S. Joaneira. Isto é um processo político!
 
Atravessou o largo majestosamente, certo que os vizinhos, pelas portas, murmuravam: Lá vai o
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Carlos depor... Ia depor, sim, mas não sobre o murro no ombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave era o que estava por trás do murro - uma conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! É o que ele provaria de alto ao senhor administrador. Este murro, ilustríssimo senhor, é o primeiro excesso duma grande revolução social!
 
E empurrando o batente de baeta que dava acesso para a administração do concelho de Leiria, ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o aparato judicial que ele concebera. O réu lá estava, sim, o pobre João Eduardo, mas sentado à beira do banco, com as orelhas em brasa, olhando estupidamente o soalho. Artur Couceiro, embaraçado com a presença daquele íntimo dos serões da S. Joaneira, ali no assento dos presos, para o não olhar fixara o nariz sobre o imenso copiador de ofícios, onde desdobrara o Popular da véspera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito erguidas e muito sérias, embebia-se na ponta da pena de pato que aparava sobre a unha. O escrivão Domingos, esse sim, vibrava de atividade! O seu lápis rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo de trazer a sua idéia... E o Carlos então adiantando-se:
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O escrivão perfilou-se, puxando os óculos para a testa.
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— Senhor administrador!
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— Eu estou à disposição da lei.
 
— Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que
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maçada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição fecha-se às três!
 
E sua excelência, rodando, sobre os tacões, foi debruçar-se à sacada do seu gabinete - àquela sacada de onde ele diariamente, das onze às três, retorcendo o bigode louro e entesando o plastrão azul, depravava a mulher do Teles.
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— Temos composição, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos colegas.
 
O Carlos sentara-se descontente. Viera ali para esclarecer a autoridade sobre os perigos sociais que ameaçavam Leiria, o Distrito e a Sociedade, para ter o seu papel naquele processo, que, segundo ele, era um processo político - e ali estava calado,
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esquecido, no mesmo banco ao lado do réu! Nem lhe tinham oferecido uma cadeira! Seria realmente intolerável que as coisas se arranjassem entre o pároco e o administrador sem o consultarem a ele! Ele, o único que percebera naquele murro dado no ombro do padre - não o punho do escrevente, mas a mão do Racionalismo! Aquele desdém pelas suas luzes parecia-lhe um erro funesto da administração do Estado. Positivamente o administrador não tinha a capacidade necessária para salvar Leiria dos perigos da revolução! Bem se dizia na Arcada - era uma bambocha!
 
A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador reluziram.
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Mas a sua indignação cresceu, quando viu o Artur Couceiro, um empregado da repartição, na ausência do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir familiarmente junto do réu, dizer-lhe com melancolia:
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— Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja- se, verás!
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— Seu felizão! Parabéns! parabéns!
 
O Carlos pensou que aquele era o maior escândalo administrativo desde o tempo dos Cabrais! E ia retirar-se enojado (como no quadro clássico o
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Estóico que se afasta duma orgia Patrícia) quando o senhor administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.
 
Sua excelência deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade, destilando as palavras, com as lunetas cravadas no réu:
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— Para a China, para onde quiser! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos que, interiormente detestando padres, jubilava com aquele final.
 
João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos; duas lágrimas bailavam-
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lhe nas pálpebras; de repente agarrou o chapéu e abalou.
 
— Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente as mãos.
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— A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta já os ataques que há contra o clero nos jornais... A coisa podia fazer barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido ciúmes do padre, que queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa. Quanto mais que, segundo o pároco me provou, toda a influência que ele tem exercido. na Rua da Misericórdia ou onde diabo é, tem tido por fim livrar a rapariga de casar com aquele amigo, que, como se vê, é um bêbedo e uma fera!
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O Carlos roía-se. Todas aquelas explicações eram dadas ao Domingos! A ele, nada! Ali ficava, esquecido no vão da janela!
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— Mas tu que disseste?
 
Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar a citação do seu depoimento - o Carlos, tendo de ressalvar a dignidade
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de esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:
 
— Dei a minha opinião, com firmeza!
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Toda essa tarde se falou com excitação pela cidade da "tentativa de assassinato de que estivera para ser vitima o senhor pároco". Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os cavalheiros da oposição sobretudo, que viram na debilidade daquele funcionário uma prova incontestável de que o governo ia, com os seus desperdícios e as suas corrupções, levando o país a um abismo!
 
Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que mansidão! O senhor chantre mandou-o chamar à noitinha, recebeu-o paternalmente com um "viva o meu cordeiro pascal!".
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E depois de escutar a história do insulto, a generosa intervenção...
 
— Filho, exclamou, isso é aliar a mocidade de Telêmaco à prudência de Mentor! Padre Amaro, você era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!
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O cônego, a isto, escarrou grosso e observou:
 
— Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão à face direita... Enfim, são ordens de Nosso Senhor Jesus Cristo, ofereço a face esquerda. São
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ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdotes, oh, senhoras, desanco o patife!
 
— E doeu-lhe muito, senhor pároco? perguntou do canto uma vozinha expirante e desconhecida.
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E a exultação foi grande quando Artur Couceiro, aparecendo, deu logo da porta a novidade, a última: o Nunes mandara chamar o João Eduardo e dissera-lhe (palavras textuais): "Eu, bandidos e malfeitores não os quero no meu cartório. Rua!"
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A S. Joaneira então comoveu-se:
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— E ao Sr. padre Natário se deve! exclamou D. Josefa Dias.
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Todos o reconheciam. Fora ele, com a sua habilidade, a sua lábia, que descobrira a perfídia de João Eduardo, salvara a Ameliazinha, Leiria, a Sociedade.
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Amélia permanecia calada, cosendo à pressa; erguia às vezes rapidamente para Amaro um olhar desassossegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças de Natário; e imaginava o escrevente com as faces encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas dos casais... E enquanto as senhoras se acomodavam, palrando, à mesa do chá, ela pôde dizer baixo a Amaro:
 
— Não posso sossegar com a idéia que o rapaz
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sofra necessidades... Eu bem sei que é um malvado, mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me toda a alegria.
 
O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior à injúria, num alto espirito de caridade cristã:
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Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com um olhar amante, tranquilizaram-na inteiramente. A clemência, a caridade do senhor pároco pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e de monges piedosos.
 
Depois do chá, ao quino, ficou junto dele. Uma alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente. Tudo o que até aí a importunara e a assustara, João Eduardo, o casamento, os deveres, desaparecera enfim da sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se - e o senhor pároco ali estava, todo dela, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa, os seus joelhos tocavam-se, a tremer; num momento em que todos faziam um alarido indignado contra Artur Couceiro que pela terceira vez quinara e brandia o cartão triunfante, foram as mãos que se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro simultâneo, perdido na gralhada das velhas, ergueu o peito
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de ambos; e até ao fim da noite foram marcando os seus cartões, muitos calados, com as faces acesas, sob a pressão brutal do mesmo desejo.
 
Enquanto as senhoras se agasalhavam, Amélia aproximou-se do piano para correr uma escala, e Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:
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— Que é o Panorama vejo eu, disse Natário, com secura. Mas também veio isto. - Abriu o volume na primeira página branca, e leu alto: - "Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me de recreio nos meus ócios". Não compreende, hem? Pois é muito simples... Parece incrível que as senhoras não saibam que esse homem, desde que pôs as mãos num sacerdote, está ipso facto excomungado, e excomunga- dos todos os objetos que lhe pertencem!
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Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o Panorama fatal, arrebanhando-se, num arrepiamento de medo, àquela idéia da Excomunhão que se lhes representava com um desabamento de catástrofes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus Vingador: e ali ficaram mudas, num semicírculo apavorado, em torno de Natário, que, de capotão pelos ombros e braços cruzados, gozava o efeito da sua revelação.
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Todos os olhos se voltaram para o cônego, essa inesgotável fonte de saber eclesiástico.
 
Ele então, tomando logo o ar pedagógico que lhe voltava dos seus antigos hábitos do seminário sempre que se tratava de doutrina, declarou que o colega Natário tinha razão. Quem espanca um sacerdote, sabendo que é um sacerdote, está ipso facto excomungado. É doutrina assente. É o que se chama a excomunhão latente; não necessita a declaração do pontífice ou do bispo, nem o cerimonial, para ser válida, e para que todos os fiéis considerem o ofensor como excomungado. Devem-no tratar portanto como tal... Evitá-lo a ele, e ao que lhe pertence... E este caso de pôr mãos sacrílegas num sacerdote era tão especial, continuava o cônego num tom profundo, que
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a bula do papa Martinho V, limitando os casos de excomunhão tácita, conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote... - Citou ainda mais bulas, as constituições de Inocêncio IX e de Alexandre VII, a Constituição Apostólica, outras legislações temerosas; rosnou latins, aterrou as senhoras.
 
— Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se fazer disso espalhafato...
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— É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
 
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota. Amélia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a roupa branca, as fitas e as calcinhas, à caça dos "objetos excomungados". E a S. Joaneira assistia, atônita e assustada, àquele alarido de auto-de-fé que atravessava bruscamente
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a sua pacata, refugiada ao pé do cônego, que depois de ter rosnado algumas palavras sobre "a Inquisição em casas particulares", se enterrara comodamente na poltrona.
 
— É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito à batina, dizia Natário baixo a Amaro.
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— O sentimento é excelente, confirmou Amaro, também sério.
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O cônego ergueu-se:
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— Oh, mana! A senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se queima um ímpio? A pretensão não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
 
Então, confiadas na ciência do senhor cônego,
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a Gansoso e D. Maria da Assunção, acocoradas, bufaram também. As outras olhavam, num sorriso mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo daquela exterminação grata a Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na glória da sua antiga função de purificador dos pecados. - E por fim sobre as achas em brasa, nada restou do Panorama, do lenço e da luva do ímpio.
 
A essa hora João Eduardo, o ímpio, no seu quarto, sentado aos pés da cama, soluçava, com a face banhada em lágrimas, pensando em Amélia, nos bons serões da Rua da Misericórdia, na cidade para onde iria, na roupa que empenharia e perguntando em vão a si mesmo por que o tratavam assim, ele que era tão trabalhador, que não queria mal a ninguém, e que a adorava tanto, a ela.