O Crime do Padre Amaro/XVI: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
OTAVIO1981 (discussão | contribs)
Sem resumo de edição
m OTAVIO1981: match
Linha 7:
|notas=
}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 16]]
 
==__MATCH__:[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/387]]==
Ao outro dia Amaro, vendo no relógio que tinha à cabeceira que ia chegando a hora da missa, saltou alegremente da cama. E, enfiando o velho paletó que lhe servia de robe-de-chambre, pensava nessa outra manhã em Feirão em que acordara aterrado, por ter na véspera, pela primeira vez depois de padre, pecado brutalmente sobre a palha da estrebaria da residência com a Joana Vaqueira. E não se atrevera a dizer missa com aquele crime na alma, que o abafava com um peso de penedo. Considerara-se contaminado, imundo, maduro para o inferno, segundo todos os santos padres e o seráfico concilio de Trento. Três vezes chegara à porta da igreja, três vezes recuara assombrado. Tinha a certeza de que, se ousasse tocar na Eucaristia com aquelas mãos com que repanhara os saiotes da Vaqueira, a capela se aluiria sobre ele, ou ficaria paralisado vendo erguer-se diante do sacrário, de espada alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montara a cavalo e trotara duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir à Gralheira confessar-se ao bom abade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de inocência, de exagerações piedosas e de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor à realidade humana. Abades, cônegos, cardeais e monsenhores não pecavam sobre a palha da estrebaria, não - era em alcovas cômodas, com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluíam, e S. Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os confortos do Céu!
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/388]]==
alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montara a cavalo e trotara duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir à Gralheira confessar-se ao bom abade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de inocência, de exagerações piedosas e de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor à realidade humana. Abades, cônegos, cardeais e monsenhores não pecavam sobre a palha da estrebaria, não - era em alcovas cômodas, com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluíam, e S. Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os confortos do Céu!
 
Não era isso o que o inquietava - o que o inquietava era a Dionísia, que ele ouvia na cozinha, arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir- lhe água para a barba. Desagradava-lhe sentir aquela matrona introduzida, instalada no seu segredo. Não duvidava decerto da sua discrição, era o seu ofício; e algumas meias libras manteriam a sua fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquela velha concubina de autoridades civis e militares, que rolara a sua massa de gordura por todas as torpezas seculares da cidade, conhecia as suas fragilidades, as concupiscências que lhe ardiam sob a batina de pároco. Preferiria que fosse o Silvério ou Natário que o tivesse visto na véspera, todo inflamado: era entre sacerdotes, ao menos!... E o que o incomodava era a idéia de ser observado por aqueles olhinhos cínicos, que não se impressionavam nem com austeridade das batinas nem com a responsabilidade dos uniformes, porque sabiam que por baixo estava igualmente a mesma miséria bestial da carne...
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/389]]==
 
— Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
Linha 37 ⟶ 41:
 
Rebuscou num canto da gaveta, meteu-lhe meia libra na mão.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/390]]==
 
— Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou ela.
Linha 59 ⟶ 64:
 
Amaro parou diante dela, rindo, familiarizando-se:
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/391]]==
 
— Ó tia Dionísia, diga lá com franqueza: não é a primeira vez que você aconselha a casa do sineiro, hem?
Linha 72 ⟶ 78:
Era isso agora o que preocupava o padre Amaro.
 
O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes e os sacristães, por um macambúzio. Tinha uma perna cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes, que desejariam o emprego para os seus protegidos, sustentavam mesmo que aquele defeito o tornava, segundo a Regra, impróprio para o serviço da Igreja. Mas o antigo pároco José Miguéis, em obediência ao senhor bispo, conservara-o na Sé, argumentando que o trambolhão desastroso que motivara a amputação fora na torre, numa ocasião de festa, colaborando no culto: ergo estava claramente indicada a intenção de Nosso Senhor em não prescindir do tio Esguelhas. E quando Amaro tomara conta da paróquia, o coxo valera-se da influência da S. Joaneira e de Amélia para conservar, como ele dizia, a corda do sino. Era além disso (e fora a opinião da Rua da Misericórdia) uma obra de
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/392]]==
caridade. O tio Esguelhas, viúvo, tinha uma filha de quinze anos paralítica, desde pequena, das pernas. "O diabo embirrou com as pernas da família", costumava dizer o tio Esguelhas. Era decerto esta desgraça que lhe dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga (cujo nome era Antônia, e que o pai chamava Totó) o torturava com perrices, frenesis, caprichos abomináveis. O doutor Gouveia declarara-a histérica: mas era uma certeza, para as pessoas de bons princípios, que a Totó estava possuída do Demônio. Houvera mesmo o plano de a exorcismar; o senhor vigário-geral, porém, sempre assustado com a imprensa, hesitara em conceder a permissão ritual, e tinham-lhe feito apenas, sem resultado, as aspersões simples de água benta. De resto não se sabia a natureza do endemoninhamento da paralítica: a Sra. D. Maria da Assunção ouvira dizer que consistia em uivar como um lobo; a Gansosinho, em outra versão, assegurava que a desgraçada se dilacerava com as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela rapariga, respondia secamente:
 
— Lá está.
 
Os intervalos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no casebre. Só atravessava o largo para ir à botica por algum remédio, ou comprar bolos à confeitaria da Teresa. Todo o dia aquele recanto da Sé, o pátio, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietárias, a casa ao fundo com a sua janela de portada negra numa parede lazeirenta, permaneciam num silêncio, numa sombra úmida: e os meninos do coro, que às vezes se arriscavam a ir pé ante pé, pelo pátio, espreitar o tio Esguelhas,
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/393]]==
viam-no invariavelmente curvado à lareira, com o cachimbo na mão, cuspilhando tristemente para as cinzas.
 
Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor pároco. E Amaro, nessa manhã, ao revestir-se, sentindo-lhe nas lájeas do pátio a muleta, ia já ruminando a sua história - porque não podia pedir ao tio Esguelhas o uso do seu casebre sem explicar, de algum modo, que o desejava para um serviço religioso... E que serviço, a não ser preparar, em segredo e longe das oposições mundanas, alguma alma terna para o convento e para a santidade?
Linha 89 ⟶ 99:
 
Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro...
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/394]]==
 
O que quer dizer, como sabem: Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero, choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas.
Linha 103 ⟶ 114:
 
Fez uma cortesia à imagem e entrou na igreja, na atitude da rubrica, de olhos baixos e corpo direito; enquanto o Matias, depois de ter também saudado com um raspão de pé o Cristo da sacristia, se apressava com as galhetas, tossindo forte para clarear a garganta.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/395]]==
 
Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no Ofertório e ao Orate, fratres, o padre Amaro dirigia-se sempre (por uma benevolência que o ritual permite) para o sineiro, como se o Sacrifício fosse por sua intenção particular; - e o tio Esguelhas, com a sua muleta pousada ao lado, abismava-se então numa devoção mais respeitosa. Mesmo ao Benedicat, depois de ter começado a bênção voltado para o altar para recolher do Deus vivo o depósito da Misericórdia, terminou-a, virando-se devagar para o tio Esguelhas especialmente, como para lhe dar a ele só as Graças e Dons de Nosso Senhor!
Linha 122 ⟶ 134:
— Uma vocação, tio Esguelhas! Vê-se o dedo de Deus! É extraordinário...
 
Contou-lhe então uma história difusa que ia forjando laboriosamente, segundo as sensações que
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/396]]==
imaginava ver na face pasmada do sineiro. A rapariga desgostara-se da vida, com as desavenças que tivera com o noivo. Mas a mãe que estava velha, que a necessitava para o governo da casa, não queria consentir, supondo que era uma veleidade... Mas não, era vocação... Ele sabia-o... Infelizmente, quando havia oposição, a conduta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornais ímpios (e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influências do clero... As autoridades, mais ímpias que os jornais, punham obstáculos... Havia leis terríveis... Se soubessem que ele andava a instruir a menina para professar, ferravam-no na cadeia! Que queria o tio Esguelhas?... Impiedade, ateísmo do tempo!
 
Ora, ele necessitava ter com a pequena muitas e muitas conferências: para a experimentar, para conhecer as suas disposições, ver bem se é para a Solidão que ela tem jeito, ou para a Penitência, ou para o serviço dos enfermos, ou para a Adoração Perpétua, ou para o Ensino... Enfim, estuda-la por dentro e por fora.
Linha 133 ⟶ 147:
 
— Oh, senhor pároco, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, está tudo às ordens!
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/397]]==
 
— Bem vê, é no interesse daquela alma, é um regozijo para Nosso Senhor...
Linha 151 ⟶ 166:
 
— E ela que faz, a Totó? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/398]]==
 
Coitadita, para ali estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e apaixonava-se por elas a ponto de ter febre; outros dias passava-os num silêncio medonho com os olhos cravados na parede. Mas às vezes estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgraça!
Linha 166 ⟶ 182:
— Conto consigo! disse Amaro.
 
Veio logo à sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a Amélia, em que lhe explicava detalhadamente o "arranjinho que fizera para gozarem novas e divinas felicidades".
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/399]]==
Prevenia-a que o pretexto para ela vir todas as semanas a casa do sineiro devia ser a educação da paralítica: ele mesmo o proporia à noite, em casa da mamã. "Que nisto, dizia, há alguma verdade, pois seria grato a Deus que se alumiasse com uma boa instrução religiosa as trevas daquela alma. E matamos assim, querido anjo, dois coelhos com uma só cacheirada!"
 
Depois, entrou em casa. Como se sentou regaladamente à mesa do almoço, com um contentamento pleno de si, da vida e das doces facilidades que nela encontrava! Ciúmes, dúvidas, torturas do desejo, solidão da carne, tudo o que o consumira meses e meses, além na Rua da Misericórdia e ali na Rua das Sousas, passara. Estava enfim instalado à larga na felicidade! E recordava, abismado num gozo mudo, com o garfo esquecido na mão, toda aquela meia hora da véspera, prazer por prazer, ressaboreando-os mentalmente um a um, saturando-se da deliciosa certeza da posse - como o lavrador que percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos invejaram muitos anos. Ah, não tomaria a olhar de lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço! Também ele agora tinha uma, toda sua, alma e carne, linda, que o adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho de água-de-colônia! Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o seu grande argumento: é que o comportamento do padre, logo que não dê escândalo entre os fiéis, em nada prejudica a eficácia, a utilidade, a grandeza da religião. Todos os teólogos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/400]]==
instituída para administrar os sacramentos; o essencial é que os homens recebam a santidade interior e sobrenatural que os sacramentos contêm; e contanto que eles sejam dispensados segundo as fórmulas consagradas, que importa que o sacerdote seja santo ou pecador? O sacramento comunica a mesma virtude. Não é pelos méritos do sacerdote que eles operam, mas pelos méritos de Jesus Cristo. O que é batizado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica igualmente bem lavado da mácula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isto lê-se em todos os santos padres, estabeleceu-o o seráfico concílio de Trento. Os fiéis nada perdem, na sua alma e na sua salvação, com a indignidade do pároco. E se o pároco se arrepende à hora extrema, também se lhe não fecham as portas do Céu. Logo em definitivo tudo acaba bem, e em paz geral... - E o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer o seu café.
 
A Dionísia, ao fim do almoço, veio saber, muito risonha, se o senhor pároco falara ao tio Esguelhas...
Linha 178 ⟶ 198:
E recolheu-se à cozinha, pensando que o senhor pároco mentia como um herege. Também, não se importava... Nunca gostara de arranjos com os senhores eclesiásticos; pagavam mal, e suspeitavam sempre...
 
E mesmo ouvindo Amaro que saía, correu à escada, a dizer-lhe - que enfim, ela tinha a olhar
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/401]]==
pela sua casa, e quando o senhor pároco tivesse arranjado criada. ..
 
— A Sra. D. Josefa Dias anda-me a tratar disso, Dionísia. Espero ter alguém amanhã. Mas você apareça... Agora que somos amigos...
Linha 197 ⟶ 219:
 
Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava contando uma catástrofe que lera num jornal, sucedida em Inglaterra: uma mina de carvão que desabara, sepultando cento e vinte trabalhadores. As velhas arrepiavam-se horrorizadas. A Gansoso então, gozando o efeito, acumulou loquazmente os detalhes: a gente que estava fora esforçara-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes embaixo gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/402]]==
 
— Desagradável! rosnou o cônego, aconchegando-se na sua poltrona, gozando o calor da sala e a segurança dos tetos.
Linha 210 ⟶ 233:
D. Maria da Assunção quis imediatamente uma explicação. Como em a maneira usual do Inimigo se servir dos caminhos de ferro?
 
O padre Amaro esclareceu-a, com bondade.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/403]]==
O Inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem passageiros, e como essas almas não estavam preparadas pela Extrema-Unção, o demônio ali mesmo, zás, apoderava-se delas!
 
— É de velhaco! rosnou o cônego com uma admiração secreta por aquela manha tão hábil do Inimigo.
Linha 226 ⟶ 251:
As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, numa curiosidade subitamente excitada, esperando ouvir a história picante de alguma façanha de Satanás. E o pároco continuou com uma voz a que o silêncio em redor dava solenidade:
 
— Ali está aquela rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! Não sabe ler, não tem devoções habituais, não tem o costume da meditação;
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/404]]==
é por consequência, para empregar a expressão de S. Clemente - uma alma sem defesa. O que sucede? Que o demônio, que ronda constantemente e não perde dentada, estabelece-se ali como em sua casa! Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, são frenesis, desesperos, furores sem razão... Enfim o pobre homem tem a vida estragada.
 
— E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assunção, indignada daquela impudência de Satanás, instalando-se num corpo, num leito, que apenas a estreiteza do pátio separava dos contrafortes da Sé.
Linha 238 ⟶ 265:
As senhoras olhavam-se, magoadas com aquele caso triste de abandono de alma, - sobretudo pela dor que ele parecia trazer ao senhor cônego.
 
A Sra. D. Maria da Assunção, que percorria em imaginação o abundante arsenal da devoção, lembrara logo que se lhe pusessem alguns santos à
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/405]]==
cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas o silêncio das amigas exprimiu bem a insuficiência daquela galeria devota.
 
— As senhoras dir-me-ão, talvez, disse o padre Amaro sentando-se de novo, que se trata apenas da filha do sineiro. Mas é uma alma! É uma alma como as nossas!
Linha 248 ⟶ 277:
— Não, antes rico, acudiu o cônego, estendendo a mão para deter aquela falsa interpretação da lei divina. Que o Céu também é para os ricos. A senhora não compreende o preceito Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não serem benditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem, vai de encontro à expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são! Ouf!
 
E estirou-se, extenuado de ter falado tanto. O padre Amaro, esse, permanecia calado, com o cotovelo sobre a mesa, esfregando devagar a testa. Ia lançar a sua idéia, como vinda de uma inspiração
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/406]]==
divina, propor que fosse Amélia levar uma educação devota à triste paralítica... E hesitava supersticiosamente diante do seu motivo todo carnal, todo de concupiscência. A filha do sineiro aparecia-lhe agora, exageradamente, abismada numa treva de agonia. Sentia toda a caridade que haveria em consolá-la, entretê-la, fazer-lhe os dias menos amargos... Esta ação redimiria decerto muitas culpas, encantaria Deus, se fosse feita num puro espírito de fraternidade cristã! Vinha-lhe uma compaixão sentimental de bom rapaz por aquele miserável corpo pregado numa cama sem nunca ver o sol nem a rua... E ali estava embaraçado, naquela piedade que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca, arrependido quase de ter falado às senhoras da Totó... Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma idéia:
 
— Ó Sr. padre Amaro, se se lhe mandasse aquele livro com pinturas de vidas dos santos? Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me a alma... Não és tu que o tens, Amélia?
Linha 254 ⟶ 285:
— Não, disse ela, sem erguer os olhos da costura.
 
Amaro então olhou-a. Tinha-a quase esquecido. Estava agora do outro lado da mesa, abainhando um esfregão: a risca muito fina desaparecia na abundância espessa do cabelo, onde a luz do candeeiro ao lado punha um traço lustroso; as pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a pele da face, dum trigueiro cálido, que uma tinta rosada aquecia; o vestido justo, que se franzia numa prega sobre o ombro, elevava-se amplamente sobre a forma dos peitos, que ele via arfar no ritmo da respiração igual... Era aquela
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/407]]==
a beleza que mais apetecia nela; imaginava-os duma cor de neve, redondos e cheios; tivera-a nos braços, sim, mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham encontrado só a seda fria... Mas na casa do sineiro seriam dele, sem obstáculo, sem vestido, à disposição dos seus lábios. Por Deus! e nada impedia que ao mesmo tempo consolassem a alma da Totó! Não hesitou mais. E erguendo a voz, no meio do palratório das velhas que discutiam agora a desaparição da Vida dos Santos:
 
— Não, minhas senhoras, não é com livros que se vale à rapariga. Sabem a idéia que me veio? Era um de nós, o que estiver menos ocupado, levar-lhe a palavra de Deus e educar aquela alma! - E acrescentou, sorrindo: - E a falar a verdade, a pessoa mais desocupada aqui de todos nós é a menina Amélia...
Linha 262 ⟶ 295:
— Imaginas que não o faria com a mesma devoção? Já estás com orgulho da boa ação... Olha que assim não te aproveita!
 
Mas Amélia continuava tomada de um riso nervoso,
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/408]]==
deitada para as costas da cadeira, sufocando-se para se conter.
 
Os olhinhos de D. Joaquina chamejavam.
Linha 286 ⟶ 321:
Foi então, enquanto a Ruça não trazia o chá, que se decidiu que Amélia, todas as semanas, uma ou duas vezes segundo fosse a sua devoção, iria em segredo, para que a ação fosse mais valiosa aos olhos de Deus, passar uma hora à cabeceira da paralítica, ler-lhe a Vida dos Santos, ensinar-lhe rezas e insuflar-lhe a virtude.
 
— Enfim, resumiu a Sra. D. Maria da Assunção voltando-se para
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/409]]==
Amélia, não te digo senão uma coisa: abichaste!
 
A Ruça entrou com o tabuleiro, no meio dos risos que provocara a "tolice de D. Maria", como disse Amélia, que se fizera escarlate. - E foi assim que ela e o padre Amaro se puderam ver livremente, para glória do Senhor e humilhação do Inimigo.
Linha 294 ⟶ 331:
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas visitas caridosas à paralítica perfizessem ao fim do mês o número simbólico de sete, que devia corresponder, na idéia das devotas, às Sete Lições de Maria. Na véspera o padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a prática do senhor pároco. Amélia nesses dias erguia-se cedo; tinha sempre alguma saia branca a engomar, algum laçarote a compor; a mãe estranhava-lhe aqueles arrebiques, o desperdício de água-de-colônia de que ela se inundava; mas Amélia explicava que "era para inspirar à Totó idéias de asseio e de frescura". E depois de vestida sentava-se, esperando as onze horas, muito séria, respondendo distraidamente às conversas da mãe, com uma cor nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relógio: enfim a velha matraca gemia cavamente as onze horas, e ela, depois de uma olhadela ao espelho, saía, dando uma beijoca à mamã.
 
Ia sempre receosa, numa inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs pedia a Nossa
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/410]]==
Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o Largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando por trás da janela, exercia uma vigilância incessante. Fazia-se então pequenina no seu mantelete, e abaixando o guarda-sol sobre o rosto, entrava enfim na Sé, sempre com o pé direito.
 
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca, amedrontava-a; parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma repreensão ao seu pecado; imaginava que os olhos de vidro das imagens, as pupilas pintadas dos painéis se fixavam nela, com uma insistência cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança do prazer. Às vezes mesmo, atravessada duma superstição, para dissipar o descontentamento dos santos, prometia dar-se nessa manhã toda à Totó, ocupar-se caridosamente só dela, e não se deixar tocar sequer no vestido pelo Sr. padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Totó, postar-se à janela da cozinha, vigiando a porta maciça da sacristia, de que ela conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.
 
Ele aparecia, enfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado as andorinhas; ouviam-nas chilrear, naquele silêncio melancólico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas dos lugares úmidos cobriam os cantos de uma verdura escura. Amaro, às vezes muito galante, ia procurar uma florzinha. Amélia
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/411]]==
impacientava-se, rufava na vidraça da cozinha. Ele apressava-se; ficavam um momento à porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam enfim ver a Totó - e dar-lhe os bolos que o pároco lhe trazia no bolso da batina.
 
A cama da Totó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de tísica quase não fazia saliência enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores enxovalhados que ela se entretinha a esfiar. Nesses dias tinha vestido um chambre branco, os cabelos reluziam-lhe de óleo; porque ultimamente, desde as visitas de Amaro, viera-lhe "uma birra de parecer alguém", como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer separar dum espelho e dum pente que escondia debaixo do travesseiro e obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que agora desprezava.
 
Amélia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se estudara o ABC, obrigando-a a dizer aqui e além o nome duma letra. Depois queria que ela repetisse sem errar a oração que lhe andava ensinando; - enquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos no bolsos, enfastiado, embaraçado com os olhos reluzentes da paralítica que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro tão chupado que se lhe via a saliência das maxilas. Não sentia agora nem compaixão nem caridade pela Totó; detestava aquela demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amélia também pesavam
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/412]]==
aqueles momentos em que, para não escandalizar muito Nosso Senhor, se resignava a falar à paralítica. A Totó parecia odiá-la; respondia-lhe muito carrancuda; outras vezes persistia num silêncio rancoroso, voltada para a parede; um dia despedaçara o alfabeto; e encolhia-se toda encruada se Amélia lhe queria compor o xale sobre os ombros ou conchegar-lhe a roupa...
 
Enfim Amaro, impaciente, fazia um sinal a Amélia; ela punha logo diante da Totó o livro com estampas da Vida dos Santos.
Linha 313 ⟶ 356:
 
— Ensina, então! murmurava ela, de braços abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso cálido onde brilhava um branquinho dos dentes, num abandono que se oferecia.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/413]]==
 
Ele atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabelos; às vezes mordia-lhe a orelha; ela dava um gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando, com medo da paralítica embaixo. O pároco depois fechava as portadas da janela e a porta muito perra que tinha de empurrar com o joelho. Amélia ia-se despindo devagar; e com as saias caídas aos pés ficava um momento imóvel, como uma forma branca na escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ela então persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava um suspirozinho triste.
Linha 330 ⟶ 374:
— Lambão! murmurava ela. Deixe-me!
 
Vestia-se à pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janela, vinha ainda abraçar o pescoço de Amaro, que ficara estatelado sobre o leito; e ia
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/414]]==
enfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralítica sentir embaixo, saber que tinham acabado a conferência.
 
Amaro não findava ainda de a beijocar: ela então, para acabar, fugia- lhe, ia escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas a cozinha sem olhar para a Totó, e entrava na sacristia.
Linha 353 ⟶ 399:
 
— Ai, que devoção a tua, filha!
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/415]]==
 
Amélia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava também no segredo, deixava o balcão para vir à porta admirar Amélia.