O Crime do Padre Amaro/XIX: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
OTAVIO1981 (discussão | contribs)
Sem resumo de edição
m OTAVIO1981: match
Linha 7:
|notas=
}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 19]]
 
==__MATCH__:[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/457]]==
— O senhor cônego? Quero-lhe falar. Depressa!
 
Linha 25 ⟶ 26:
 
— Está você certo disso? perguntou enfim o cônego com pavor.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/458]]==
 
— Certíssimo! A mulher já há dias andava desconfiada. Já não fazia senão chorar... Mas agora é certo... As mulheres conhecem, não se enganam. Há todas as provas... Que hei-de eu fazer, padre-mestre?
Linha 47 ⟶ 49:
 
— Que quero! Quero que não haja escândalo! Que hei-de eu querer?
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/459]]==
 
— De quantos meses está ela?
Linha 65 ⟶ 68:
 
Mas debalde, por detrás dos vidros defumados, os seus olhinhos agudos esquadrinharam ansiosamente o carão espesso do mano e a face pálida de Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetráveis como duas janelas fechadas. O pároco mesmo falou ligeiramente do reumático do senhor chantre, da notícia que corria sobre o casamento do senhor secretário-geral... Ao fim duma pausa ergueu-se, contou que tinha nesse dia uma famosa orelheira para o jantar - e a Sra. D. Josefa, roendo-se, viu-o abalar depois de ter dito já por detrás do reposteiro ao cônego:
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/460]]==
 
— Então até à noite em casa da S. Joaneira, padre-mestre, hem?
Linha 78 ⟶ 82:
— Malcriado! rugiu ela rodando sobre os sapatões, cruelmente perseguida por uma risadinha do mano.
 
Foi à noite, embaixo, na saleta da S. Joaneira, enquanto Amélia em cima, com a morte na alma, martelava a Valsa dos Dois Mundos, que os dois padres, muito chegados no canapé, de cigarro nos dentes, por debaixo do tenebroso painel onde a vaga mão do cenobita se estendia em garra sobre a caveira, cochicharam o seu plano: - antes de tudo era necessário achar João Eduardo, que desaparecera de Leiria; a Dionísia, mulher de faro, ia bater todos os recantos da cidade para descobrir a toca em que a fera se acoutava; depois, imediatamente, porque o tempo urgia, Amélia escrever-lhe-ia... Só quatro palavras simples: que soubera que ele fora vítima duma intriga; que nunca perdera nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma reparação; e que viesse vê-la... Se o rapaz hesitasse agora, o que não era provável (o cônego afirmava-o), fazia-se-lhe reluzir a esperança do emprego no governo civil, fácil de obter pelo Godinho, inteiramente
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/461]]==
governado pela mulher, que era uma escravazinha do pobre Natário?...
 
— Mas o Natário, disse Amaro, o Natário que detesta o escrevente, que dirá ele a esta revolução?
Linha 95 ⟶ 101:
 
— E lá a menina? perguntou o cônego a Amélia.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/462]]==
 
— Eu?...
Linha 114 ⟶ 121:
— Nunca, antes morrer!
 
O quê? Ele punha-a naquele estado e agora queria descartar-se dela e passá-la a outro? Era ela porventura um trapo que se usa e que se atira a um pobre? Depois de ter posto fora de casa o homem, havia de humilhar-se, chamá-lo e cair-lhe nos braços?... Ah, não! Também ela tinha o
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/463]]==
seu brio! Os escravos trocavam-se, vendiam-se, mas era no Brasil!
 
Enterneceu-se então. Ah, ele já não a amava, estava farto dela! Ah, que desgraçada, que desgraçada que era! - Atirou-se de bruços para a cama e rompeu num choro estridente.
Linha 131 ⟶ 140:
 
E ficaram abraçados, tremendo no mesmo enternecimento, - ela molhando de pranto o ombro do pároco, ele mordendo o beiço com os olhos todos turvos de água.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/464]]==
 
Desprendeu-se brandamente, enfim, e limpando as lágrimas:
Linha 142 ⟶ 152:
Amaro então apressou-se a tranquilizá-la, prodigalizando os argumentos. Era necessário não exagerar... O rapaz, verdadeiramente, excomungado não estava... Natário e o cônego tinham interpretado mal os cânones e as bulas... Bater num sacerdote que não estava revestido não era motivo de excomunhão ipso facto, segundo certos autores... Ele, Amaro, era dessa opinião... De mais a mais podiam levantar-lhe a excomunhão.
 
— Tu compreendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como sabes, nós atamos e
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/465]]==
desatamos. O moço foi excomungado?... Bem, levantamos-lhe a excomunhão. Fica tão limpo como dantes. Não, isso não te dê cuidado.
 
— Mas de que havemos de viver, se ele perdeu o emprego?
Linha 166 ⟶ 178:
{{separador}}
 
No entanto a Dionísia farejava pela cidade na pista de João Eduardo. A sua atividade desenvolvera-se, sobretudo, mal soubera que o cônego Dias, o ricaço, estava interessado na pesquisa. E todos os dias, à noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo portão de Amaro a
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/466]]==
dar-lhe as novidades: já sabia que o escrevente estivera ao princípio em Alcobaça com um primo boticário; depois fora para Lisboa; ai, com uma carta de recomendação do doutor Gouveia, empregara-se no cartório dum procurador; mas o procurador, passados dias, por uma fatalidade, morrera de apoplexia; e desde então o rasto de João Eduardo perdia-se no vago, no caos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada e os passos: era o tipógrafo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo, depois duma questão com o Agostinho, deixara o Distrito e desaparecera. Ninguém sabia para onde fora; por desgraça, a mãe do tipógrafo não a podia informar - porque morrera também.
 
— Oh, senhores! dizia o cônego quando o padre Amaro lhe ia levar estes fios de informação. Oh, senhores! mas então nessa história toda a gente morre! Isso é uma hecatombe!
Linha 172 ⟶ 186:
— Você graceja, padre-mestre, mas é sério. Olhe que um homem em Lisboa é agulha em palheiro. É uma fatalidade!
 
Então, aflito já, vendo passar os dias, escreveu à tia, pedindo-lhe que esquadrinhasse por toda a Lisboa, a ver se por lá aparecera "um tal João Eduardo Barbosa..." Recebeu uma carta da tia em garatujas de três páginas, queixando-se do Joãozinho, do seu Joãozinho, que lhe fizera a vida um inferno, embebedando-se com genebra a ponto que não lhe paravam hóspedes em casa. Mas estava agora mais tranquila: o pobre Joãozinho havia dias jurara-lhe pela alma da mamã que daí por diante não beberia senão gasosa. Enquanto ao tal João Eduardo, perguntara na
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/467]]==
vizinhança e ao Sr. Palma do Ministério das Obras Públicas, que conhecia toda a gente, mas nada averiguara. Havia, sim, um Joaquim Eduardo que tinha uma loja de quinquilharias no bairro... E se fosse o negócio com ele bem ia, que era um homem de bem...
 
— Lérias! lérias! interrompeu o cônego impaciente.
Linha 183 ⟶ 199:
 
Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os ombros á injúria.
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/468]]==
 
Mas não estava nada perdido, graças a Deus. A Dionísia lá andava no faro!
Linha 192 ⟶ 209:
Depois vir-lhe-ia um menino ao fim dos sete meses (era tão frequente!), legitimado pelo sacramento, pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu filho teria um papá, receberia uma educação, não seria um enjeitado...
 
Desde que o senhor pároco lhe afirmara, em juramento, que o escrevente não estava realmente excomungado, que com algumas orações se lhe levantaria a excomunhão, os seus escrúpulos devotos esmoreciam como brasas que se apagam. No fim, em todos os erros do escrevente, ela só podia descobrir a incitação do ciúme e do amor: fora num despeito de namorado que escrevera o Comunicado, fora num furor de paixão traída que espancara o senhor pároco... Ah! Não lhe perdoava esta brutalidade! Mas que castigado fora! Sem emprego, sem casa, sem mulher, tão perdido na miséria anônima de Lisboa que nem
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/469]]==
a polícia achava! E tudo por ela. Pobre rapaz! No fim não era feio... Falavam da sua impiedade; mas vira-o sempre muito atento à missa, rezava todas as noites uma oração especial a S. João que ela lhe dera impressa num cartão bordado...
 
Com o emprego no governo civil podiam ter uma casinha e uma criada... Por que não seria feliz, por fim? Ele não era rapaz de botequins, nem de vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe impor os seus gostos e as suas devoções. E seria agradável sair aos domingos de manhã para a missa, arranjada, de marido ao lado, cumprimentada de todos, podendo, à face da cidade, passear o seu filho muito vistoso na sua touca de rendas e na sua grande capa franjada! Quem sabe se, então, pelos carinhos que desse ao pequerrucho e pelos confortos de que cercasse o homem, o Céu e Nossa Senhora se não abrandariam! Ah! para isso faria tudo, para ter outra vez no Céu aquela amiga, a sua querida Nossa Senhora, amável e confidente, sempre pronta a curar-lhe as dores, a livrá-la de infortúnios, ocupada a preparar-lhe no Paraíso um luminoso conchego!
Linha 203 ⟶ 222:
 
— A Dionísia lá anda... Por quê, tens muita pressa?
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/470]]==
 
— Tenho muita pressa, tenho, respondia ela muito séria, que a vergonha é para mim.
Linha 213 ⟶ 233:
 
— Não se canse. O homem não aparece. Deixe lá... Não vale a pena ganhar dor de peito...
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/471]]==
 
Mas a Dionísia tinha o peito forte - e uma noite veio, triunfante, dizer-lhe que estava na pista do homem! Vira enfim o Gustavo, o tipógrafo, entrar para a casa de pasto do tio Osório. Ao outro dia ia-lhe falar, e havia de se saber tudo...
Linha 221 ⟶ 242:
 
De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixões fortes dum corpo são? Tinha de dizer adeus à rapariga, - vê-la partir de braço dado com o outro, com o marido, irem ambos para casa brincar com o filho, um filho que era seu! E ele assistiria à destruição da sua alegria de braços cruzados, esforçando-se por sorrir, voltaria a viver só, eternamente só, e a reler o Breviário!... Ah! se fosse no tempo em que se suprimia um homem com uma denúncia de heresia!... Que o mundo recuasse duzentos anos, e o Sr. João Eduardo havia de saber o que custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amélias...
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/472]]==
 
E esta idéia absurda, na exaltação da febre em que estava, apoderou-se tão fortemente da sua imaginação que toda a noite a sonhou - num sonho vívido, que muitas vezes depois contou rindo às senhoras. Era uma rua estreita batida dum sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma populaça apinhava-se; pelos balcões, fidalgos muito bordados retorciam o bigode cavalheiresco; olhos reluziam, entre as pregas das mantilhas, acesos num furor santo. E pela calçada, a procissão do auto-de-fé movia-se devagar, num vasto ruído, sob o tremendo dobre a finados de todos os sinos vizinhos. Adiante os flagelantes seminus, de capuz branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o Miserere, com as costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia João Eduardo, idiota de terror, com as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos cor de fogo, tendo no peito um rótulo em que estava escrito - POR HEREGE; por trás um medonho servente do Santo Ofício espicaçava furiosamente o jumento; e ao pi um padre, erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do arrependimento. E ele, Amaro, caminhava ao lado cantando o Requiem, de Breviário aberto numa mão, com a outra abençoando as velhas, as amigas da Rua da Misericórdia que se agachavam para lhe beijar a alva. Às vezes voltava-se para gozar aquela pompa lúgubre, e via então a longa fila da confraria dos Nobres: aqui era um personagem pançudo e apoplético, além uma face de místico com um bigode feroz e dois olhos chamejantes; cada um levava uma tocha acesa, e na outra mão sustentava o chapéu cuja pluma
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/473]]==
negra varria o chão. Os capacetes dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota contorcia as faces esfomeadas do populacho; e o préstito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o clamor do cantochão, os gritos dos fanáticos, o dobrar aterrador dos sinos, o tlintlim das armas, num terror que enchia toda a cidade, - aproximando-se da plataforma de tijolo onde já fumegavam as pilhas de lenha.
 
E o seu desengano foi grande, depois daquela glória eclesiástica do sonho, quando a criada o veio acordar cedo com água quente para a barba.
Linha 240 ⟶ 264:
— Se te parece, neste susto em que ando...
 
Amaro teve um gesto desesperado de impaciência. Susto! Não estava má hipocrisia! Susto de quê? Com uma mãe que era uma babosa, que lhe consentia tudo... O que era, era que queria casar... Queria outro! Não lhe agradava aquele divertimento pela manhã, de fugida... Queria a coisa comodamente, em casa. Imaginava a menina que o iludia a ele, um homem de trinta anos e
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/474]]==
quatro anos de experiência de confissão? Via bem através dela... Era como as outras, queria mudar de homem.
 
Ela não respondia, muito pálida. E Amaro, furioso com o seu silêncio:
Linha 264 ⟶ 290:
— Não me mates! gritou ela. É o teu filho!
 
Ele ficou diante dela, enleado e trêmulo: àquela palavra, àquela idéia do seu filho, uma piedade, um amor desesperado revolveu todo o seu ser: e arremessando-se sobre ela, num abraço que a esmagava, como querendo sepultá-la no peito, absorvê-la toda só para si, atirando-lhe
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/475]]==
beijos furiosos que a magoavam, pela face e pelos cabelos:
 
— Perdoa, murmurava, perdoa, minha Ameliazinha! Perdoa, que estou doido!
Linha 289 ⟶ 317:
 
— Pela hóstia sagrada?
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/476]]==
 
— Juro pela hóstia sagrada, juro por Nossa Senhora!
Linha 302 ⟶ 331:
Aquele "pacto", como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre eles tão irrevogável que já lhe discutiam tranquilamente os detalhes. O casamento com o escrevente consideravam-no como uma destas necessidades que a sociedade impõe e que sufoca as almas independentes, mas a que a natureza se subtrai pela menor fenda, como um gás irredutível. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro marido de Amélia era o senhor pároco; era o marido da alma, para quem seriam guardados os melhores beijos, a obediência intima, a vontade: o outro teria quando muito o cadáver... Já às vezes mesmo tramavam o plano hábil das correspondências secretas, dos lugares ocultos de rendez-vous...
 
Amélia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da paixão. Diante da certeza que em algumas semanas o casamento ia tornar "tudo branco como a neve", os seus transes tinham desaparecido, o mesmo terror da vingança
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/477]]==
do Céu calmara-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro fora como a chicotada que esperta um cavalo que preguiça e se atrasa: e a sua paixão, sacudindo-se e relinchando forte, ia-a de novo levando no ímpeto duma carreira fogosa.
 
Amaro, esse regozijava-se. Ainda às vezes, decerto, a idéia daquele homem, de dia e de noite com ela, importunava-o... Mas, no fundo, que compensações! Todos os perigos desapareciam magicamente, e as sensações requintavam. Findavam para ele aquelas atrozes responsabilidades da sedução, e ficava-lhe a mulher mais apetitosa.
Linha 316 ⟶ 347:
— Então, Dionísia?
 
A mulher, porém, não se apressou: sentou-se mesmo, com licença dos senhores, porque vinha derreada... Não, o senhor cônego não imaginava os passos que se vira obrigada a dar... O maldito
==[[Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/478]]==
tipógrafo lembrava-lhe a história que lhe contavam em pequena, dum veado que estava sempre à vista e que os caçadores a galope nunca alcançavam. Uma perseguição assim!... Mas, finalmente, apanhara-o... E tocadito, por sinal.
 
— Acabe, mulher! berrou o cônego.