O Crime do Padre Amaro/XXII: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 22]]
 
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O padre Amaro acabara de jantar, e fumava, com os olhos no teto, para não ver o carão chupado do coadjutor que havia meia hora ali estava, imóvel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que caía no silêncio da sala como os quartos melancólicos que dá de noite um relógio de catedral.
 
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— Não senhor, foi para o Brasil.
 
A criada entrou, neste momento, dizendo que "estava ali uma pessoa que queria falar ao senhor
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pároco". Era a sua maneira de anunciar a presença de Dionísia na cozinha.
 
Havia semanas que ela não aparecia - e Amaro, curioso, saiu logo da sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.
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Amaro deu-lhe as duas placas que ela esperava - e daí a um quarto de hora, desembaraçado do coadjutor, ia no caminho da Ricoça.
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Ia bater as palmas outra vez, já quezilado, quando a Gertrudes apareceu.
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— Oh, senhor pároco! Entre, senhor pároco! Ora até que enfim! Minha senhora, é o senhor pároco! - gritava, na alegria de ver enfim uma visita querida, um amigo da cidade, naquele desterro da Ricoça.
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Ela disse que não, num movimento de cabeça.
 
— Deixe falar, senhor pároco, acudiu a Gertrudes
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que ficara de pé, ao lado do canapé, gozando a presença do senhor pároco. - Deixe falar... É que a senhora exagera também... Levanta-se todos os dias, dá o seu passeinho até à sala, come a sua asita de frango... Temo-la aqui, temo-la arribada... É o que diz o Sr. abade Ferrão, a saúde foge a toda a brida e para voltar vem a passo.
 
A porta abriu-se. Amélia apareceu, muito escarlate, com o seu antigo robe-de-chambre de merino roxo, o cabelo arranjado à pressa.
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Amaro então, compreendendo num relance que a velha torturava Amélia, disse com muita severidade:
 
— É verdade, não foi para se divertirem... Mas também não foi para se entristecerem de
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propósito... Pôr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos outros a vida negra, é uma falta horrível de caridade; não há pecado pior aos olhos do Senhor... É indigno da graça de Deus quem tal pratica...
 
A velha rompeu a choramigar, muito excitada:
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— É o que diz o Sr. abade Ferrão, acudiu Amélia voltando da janela, a madrinha estranha... Assim arrancada aos hábitos de tantos anos...
 
Notando então a citação repetida das palavras
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do abade Ferrão, Amaro perguntou se ele costumava vir vê-las.
 
— Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amélia. Vem quase todos os dias.
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Ia escurecendo já: a Gertrudes fora preparar o candeeiro. Amaro enfim ergueu-se:
 
— Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei-de aparecer de vez em quando.
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E nada de afligir... Agasalho, boa dieta, e a misericórdia de Deus não a há-de abandonar...
 
— Não nos falte, senhor pároco, não nos falte!...
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Foi para ela outra vez, com os abraços abertos.
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— Não me toque, pelo amor de Deus, - e vivamente recuou até à porta.
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Passou porém uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro dia à uma hora marchou para Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.
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A velha ficou toda contente ao vê-lo. É que lhe dava saúde a presença do senhor pároco! E se não fosse a distância, havia de lhe pedir esmola de vir todas as manhãs. Até depois daquela visitinha rezava com mais fervor...
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— A verdade! Que ela não o nega. Até se orgulha! É uma perdida, è uma perdida! Depois do favor que lhe estamos a fazer...
 
Amaro disfarçou a indignação que o revolvia. Riu até. Era necessário não exagerar. Não
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havia ingratidão. Era uma questão de fé. Se a rapariga pensava que o abade a podia dirigir melhor, tinha razão em se abrir com ele... O que todos queriam é que ela salvasse a sua alma... Que fosse pela direção de fulano ou sicrano, isso não importava... E nas mãos do abade estava bem.
 
E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:
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Àquele tu, e àquela voz colérica, ela pôs rapidamente um dedo na boca, assustada. O senhor abade estava dentro da casa com o ferreiro...
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— Ouve lá, disse Amaro com os olhos chamejantes, agarrando-lhe o braço, tu confessaste-te ao abade?...
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— Tu mas pagarás, maldita! rosnou o padre por entre dentes, voltando as costas, descendo o caminho com passadas de desesperado.
 
E não abrandou o passo até à cidade, levado dum impulso de indignação que, sob aquela doce paz dum meio de Outono, lhe sugeria planos de vinganças ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na mão. Mas aí, na solidão do quarto, veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotência.
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Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade dizer que ela estava grávida? Seria denunciar-se a si. Espalhar que estava amigada com o abade Ferrão? Era absurdo: um velho de quase setenta anos, de uma fealdade de caricatura, com todo um passado de virtude santa!... Mas perdê-la, não tornar a ter no braços aquele corpo de neve, não ouvir mais aquelas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para alguma coisa de melhor que o Céu... Isso não!
 
E era possível que ela, em seis ou sete semanas, tivesse assim esquecido tudo? Naquelas longas noites na Ricoça, só na cama, não lhe viria uma recordação das manhãs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto: ele sabia-o da experiência de tantas confessadas que lhe tinham revelado aflitas a tentação muda e teimosa que não deixa a carne que uma vez pecou...
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Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionísia. A resposta veio só á noite, por um rapazito da quinta. Com que sofreguidão rasgou o sobrescrito! Eram apenas estas palavras: "Peço-lhe que me deixe em paz com os meus pecados".
 
Não desistiu: ao outro dia lá estava na Ricoça a visitar a velha. Amélia achava-se no quarto de D. Josefa, quando ele apareceu. Fez-se muito pálida; mas os seus olhos não deixaram a costura -
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durante a meia hora que ele ali ficou, ora num silêncio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona, ora respondendo distraidamente à tagarelice da velha, muito faladora essa manhã.
 
E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se rapidamente no quarto: só vinha se a velha mandava a Gertrudes dizer-lhe ''que estava ali o senhor pároco que a queria ver''. Ia, então, estendia-lhe a mão, que ele achava sempre a escaldar - e tomando a sua eterna costura, junto da janela, ia picando o posponto com uma taciturnidade que desesperava o padre.
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Aquela brutalidade tão injustificável ofendeu o abade:
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— Pois era melhor para todos que não viesse...
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Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade sob a chuva que batia forte agora. E, apenas em casa, escreveu uma longa carta a Amélia, em que lhe contava a cena com o abade, acabrunhando-o de acusações - sobretudo de lhe trair indiretamente o segredo da confissão. Como das outras, desta carta não veio resposta da Ricoça.
 
Amaro então começou a acreditar que tanta resistência não podia vir só do arrependimento e do terror do inferno... "Ali há homem", pensou. E devorado dum ciúme negro principiou a rondar de noite a Ricoça: mas não viu nada; o casarão permanecia adormecido e apagado. Uma ocasião, porém, ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu adiante no caminho que desce dos Poiais uma voz cantarolar sentimentalmente a valsa dos Dois mundos, e um ponto brilhante de charuto aceso adiantar-se na escuridão. Assustado, refugiou-se num casebre que desmantelava em ruínas do outro lado da estrada. A voz
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calou-se; e Amaro, espreitando, viu então um vulto que parecia embrulhado num xalemanta claro, parado, contemplando as janelas da Ricoça. Um furor de ciúme apossou-se dele, e ia saltar e atacar o homem - quando o viu seguir tranquilamente ao comprido da estrada, de charuto alto, trauteando:
 
Ouves ao longe retumbar na serra
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Pela voz, pelo xalemanta, pelo andar tinha reconhecido João Eduardo. Mas teve a certeza que se um homem falava de noite a Amélia ou entrava na quinta - não era decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser descoberto, não tornou a rondar o casarão.
 
Era com efeito João Eduardo, que sempre que passava pela Ricoça, de dia ou de noite, parava um momento a olhar melancolicamente as paredes que ela habitava. Porque apesar de tantas desilusões, Amélia permanecera para o pobre rapaz a ela, a bem-amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em Ourém, nem em Alcobaça, nem pelas estalagens onde errara, nem em Lisboa, onde chegara como vem à praia uma quilha de barco naufragado, deixara um momento de a ter presente na alma e de se enternecer com as saudades dela. Durante esses dias tão amargos de Lisboa, os piores da sua vida, em que fora fiel de feitos dum cartório obscuro, perdido naquela cidade que lhe parecia ter a vastidão duma Roma ou
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duma Babilônia e em que sentia o duro egoísmo das multidões azafamadas, esforçava- se mesmo por desenvolver mais esse amor que lhe dava como a doçura duma companhia. Achava-se menos isolado, tendo sempre no espírito aquela imagem com quem travava diálogos imaginados, nos seus infindáveis passeios ao longo do Cais do Sodré, acusando-a das tristezas que o envelheciam.
 
E esta paixão, sendo para ele como a indefinida justificação das suas misérias, tomava-o aos seus próprios olhos interessante. Era "um mártir de amor"; isto consolava-o, como o consolara nas suas primeiras desesperações considerar-se "uma vítima das perseguições religiosas". Não era um pobre-diabo banal a quem o acaso, a preguiça, a falta de amigos, a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente nas privações da dependência: era um homem de grande coração, a quem uma catástrofe em parte amorosa e em parte política, um drama doméstico e social, forçara assim, depois de lutas heróicas, a viajar de um a outro cartório com um saco de lustrina cheio de autos. O destino tornara-o igual a tantos heróis que lera nas novelas sentimentais... E o seu paletó coçado, os seus jantares a quatro vinténs, os dias em que não tinha dinheiro para tabaco, tudo atribuía ao amor fatal de Amélia e à perseguição duma classe poderosa, dando assim, por um instinto muito humano, uma origem grandiosa às suas misérias triviais... Quando via passar os que ele chamava felizes - indivíduos batendo tipóia, rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo braço, gente bem atabafada que se dirigia aos teatros, sentia-se menos desgraçado pensando
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que também ele possuía um grande luxo interior que era aquele amor infeliz. E quando enfim por um acaso obteve a certeza dum emprego no Brasil, o dinheiro da passagem, idealizava a sua aventura banal de emigrante, repetindo-se durante todo o dia que ia passar os mares, exilado do seu país por uma tirania combinada de padres e autoridades e por ter amado uma mulher!
 
Quem lhe diria então, ao emalar o seu fato no baú de lata, que daí a semanas estaria outra vez a meia légua desses padres e dessas autoridades, contemplando de olho temo a janela de Amélia! Fora aquele singular Morgadinho de Poiais - que não era nem Morgadinho nem de Poiais, e apenas um ricaço excêntrico de ao pé de Alcobaça que comprara aquela velha propriedade dos fidalgos de Poiais, e que, com a posse da terra, recebia do povo da freguesia a honra do título: fora esse santo cavalheiro que o livrara dos enjôos no paquete e dos acasos da emigração. Encontrara-o casualmente no cartório onde ele ainda trabalhava nas vésperas da viagem. O Morgadinho cliente do velho Nunes, conhecia-lhe a história, a façanha do Comunicado, o escândalo no Largo da Sé; e já de há muito concebera por ele uma simpatia ardente.
 
O Morgadinho tinha com efeito por padres um ódio maníaco, a ponto de não ler no jornal a notícia dum crime, sem decidir (ainda mesmo quando o culpado estava já sentenciado) que "no fundo devia de haver na história um sotaina". Dizia-se que este rancor provinha dos desgostos que lhe dera sua primeira mulher, devota célebre de Alcobaça. Apenas viu João Eduardo em Lisboa e
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soube da viagem próxima, teve imediatamente a idéia de o trazer para Leiria, instalá-lo nos Poiais, e entregar-lhe a educação das primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto estridente feito a todo o clero diocesano. Imaginava de resto João Eduardo um ímpio; e isto convinha ao seu plano filosófico de educar os rapazitos num "ateísmo desbragado". João Eduardo aceitou, com as lágrimas nos olhos: era um salário magnífico que lhe vinha, uma posição, uma família, uma reabilitação estrondosa...
 
— Oh, senhor Morgado, nunca hei-de esquecer o que faz por mim!...
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E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquela ferocidade de ímpio obtuso, havia um santo coração, um pai de pobres na freguesia...
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O Morgado era também grande amador de alfarrábios, questionador incansável; às vezes os dois tinham pelejas tremendas sobre história, botânica, sistemas de caça... Quando o abade, no fogo da controvérsia, punha de alto alguma opinião contrária:
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— Não falou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma faca no estômago!
 
E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala,
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fazendo um vendaval com as abas prodigiosas do seu robe-de-chambre amarelo.
 
— No fundo um anjo, dizia o abade a João Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo a um padre, se o soubesse em necessidade... E você aqui está bem, João Eduardo... É não lhe reparar nas manias...
 
Tinha tomado afeição a João Eduardo, o abade Ferrão: e sabendo por Amélia a famosa legenda do Comunicado quisera, segundo a sua expressão querida, "folhear o homem aqui e além". Conversava com ele tardes inteiras na rua de loureiros da quinta, na residência onde João Eduardo se ia fornecer de Iivros; e sob o "exterminador de padres", como dizia o Morgado, encontrara um pobre moço sensível, com uma religião sentimental, ambições de paz doméstica, e prezando muito o trabalho. Então viera-lhe uma idéia que, sobretudo por lhe ter acudido num dia que saia das suas devoções ao Santíssimo, lhe parecia descida de cima, da vontade do Senhor: era o casá-lo com Amélia. Não seria difícil levar aquele coração fraco e terno a perdoar o erro dela; e a pobre rapariga, depois de tantos transes, extinta aquela paixão que lhe entrara na alma como um sopro do demônio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor de empurrão para o abismo, encontraria na companhia de João Eduardo todo um resto de vida calmo, e contente, um canto suave de interior, refúgio doce e purificação do passado. Não falou nem a um, nem a outro, nesta idéia que o enternecia. Não era o momento agora, que ela trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia preparando com amor aquele resultado, -
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sobretudo quando estava com Amélia, contando-lhe as suas conversas com João Eduardo, algum dito muito sensato que ele tivera, os bons cuidados de preceptor que estava desenvolvendo na educação dos Morgaditos.
 
— É um bom rapaz, dizia. Homem de família... Destes a quem uma mulher pode realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lha...
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Fora também por esse tempo que o doutor Gouveia começara a vir à Ricoça, porque D. Josefa tinha piorado com os dias mais frios do Outono. Amélia, ao princípio, à hora da visita, fechava-se no seu quarto, tremendo à idéia de ver o seu estado descoberto pelo velho doutor Gouveia, o médico da casa, aquele homem duma severidade
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legendária. Mas enfim fora necessário aparecer no quarto da velha, para receber as suas instruções de enfermeira sobre as horas dos remédios e as dietas. E um dia que acompanhara o doutor até à porta, ficou gelada, vendo-o parar, voltar-se para ela cofiando a sua grande barba branca que lhe caía sobre o jaquetão de veludo, e dizer-lhe sorrindo:
 
— Eu bem tinha dito a tua mãe que te casasse!
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O doutor Gouveia parou:
 
— Então não é estúpida?... Está bom, também to perdôo. Está na lógica do teu temperamento. Não, não digo nada, rapariga. Mas para que diabo, então, não casaste tu com esse pobre João Eduardo? Fazia-te tão feliz como o outro,
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e já não tinhas de pedir segredo... Enfim, isso para mim é um detalhe secundário... O essencial é o que te disse... Manda-me chamar. Não te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais disso que Santa Brígida ou lá quem é. Que tu és forte, e hás-de dar um bom mocetão ao Estado.
 
Todas estas palavras que em parte não compreendera bem, mas em que sentia uma vaga justificação e uma bondade de avô indulgente, sobretudo aquela ciência que lhe prometia a saúde e a que as barbas grisalhas do doutor, umas barbas de Padre Eterno, davam um ar de infalibilidade, reconfortaram-na, aumentaram a serenidade que havia semanas gozava, desde a sua confissão desesperada na capela dos Poiais.
 
Ah, fora decerto Nossa Senhora, compadecida enfim dos seus tormentos, que lhe mandara do Céu aquela inspiração de se ir entregar toda dorida aos cuidados do abade Ferrão! Parecia-lhe que deixara lá, no seu confessionário azul-ferrete, todas as amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso que lhe abafava a alma. A cada uma das suas consolações tão persuasivas sentira desaparecer o negrume que lhe tapava o Céu; agora via tudo azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não desviava o rosto indignado. É que era tão diferente aquela maneira de confessar do abade! Os seus modos não eram os do representante rígido dum Deus carrancudo; havia nele alguma coisa de feminino e de maternal que passava na alma como uma carícia; em lugar de lhe erguer diante dos olhos o sinistro cenário das chamas do Inferno, mostrara-lhe um vasto Céu misericordioso com as portas largamente
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abertas, e os caminhos multiplicados que lá conduzem, tão fáceis e tão doces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tentá-los. Deus aparecia, naquela suave interpretação da outra vida, como um bom bisavô risonho; Nossa Senhora era uma irmã de caridade; os santos, camaradas hospitaleiros! Era uma religião amável, toda banhada de graça, em que uma lágrima pura basta para remir uma existência de pecado. Que diferente da soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada e trêmula! Tão diferente - como aquela pequena capela de aldeia da vasta massa de cantaria da Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da espessura de côvados separavam da vida humana e natural: tudo era escuridão, melancolia, penitência, faces severas de imagens; nada do que faz a alegria do mundo ali entrava, nem o alto azul, nem os pássaros, nem o ar largo dos prados, nem os risos dos lábios vivos; alguma flor que havia era artificial; o enxota-cães lá se postava ao portal para não deixar passar as criancinhas; até o sol estava exilado, e toda a luz que havia vinha dos lampadários fúnebres. E ali, na capelita dos Poiais, que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas portas abertas penetrava a aragem perfumada das madressilvas; pequerruchos brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era como um jardinete e um pomar; pardais atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestais das cruzes; às vezes um boi grave metia o focinho pela porta com a antiga familiaridade do curral de Belém, ou uma ovelha tresmalhada vinha regozijar-se de ver uma da sua raça, o Cordeiro Pascal, dormir regaladamente
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ao fundo do altar com a santa cruz entre as patas.
 
Além disso o bom abade, como ele lhe dissera, "não queria impossíveis". Sabia bem que ela não podia arrancar num momento aquele amor culpado, que ganhara raízes até às profundezas do seu ser. Queria apenas que, quando a assaltasse a idéia de Amaro se abrigasse logo na idéia de Jesus. Com a força colossal de Satanás, que tem o poder dum Hércules, uma pobre rapariga não pode lutar braço a braço; pode somente refugiar- se na oração quando o sente, e deixá-lo fatigar-se de rugir e espumar em tomo desse asilo impenetrável. Ele mesmo cada dia a ia ajudando naquela repurificação da alma, com uma solicitude de enfermeiro: fora ele que lhe marcara, como um ensaiador num teatro, a atitude que devia ter na primeira visita de Amaro à Ricoça; era ele que chegava, com alguma breve palavra reconfortante como um cordial, se a via vacilar naquela lenta reconquista da virtude; se a noite fora agitada das lembranças cálidas dos prazeres passados, era durante toda a manhã uma boa palestra, sem tom pedagógico, em que lhe mostrava familiarmente que o Céu lhe daria alegrias maiores que o quarto enxovalhado do sineiro. Chegara, com uma sutileza de teólogo, a demonstrar-lhe que no amor do pároco não havia senão brutalidade e furor bestial; que, doce como era o amor do homem, o amor do padre só podia ser uma explosão momentânea do desejo comprimido; quando tinham começado as cartas do pároco, analisara-lhas frase a frase, revelando-lhe o que elas continham de hipocrisia, de egoísmo, de retórica, e de desejo torpe...
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Ia-a assim lentamente desgostando do pároco. Mas não a desgostava do amor legítimo, purificado pelo sacramento; conhecia bem que ela era toda de carne e de desejos, e que lançá-la violentamente no misticismo seria apenas torcer-lhe um momento o instinto natural e não criar-lhe uma paz duradoura. Não tentava arrancá-la bruscamente à realidade humana; ele não a queria para freira; só desejava que aquela força amante que sentia nela servisse à alegria dum esposo e à útil harmonia duma família, e não se gastasse erradamente em concubinagens casuais... No fundo o bom Ferrão preferiria decerto na sua alma de sacerdote que a rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses egoístas do amor individual, e se desse, como irmã de caridade, como enfermeira dum recolhimento, ao amor mais largo de toda a humanidade. Mas a pobre Ameliazita tinha a carne muito bonita e muito fraca; não seria prudente assustá-la com sacrifícios tão altos; era toda mulher - toda mulher devia ficar; limitar-lhe a ação era estragar- lhe a utilidade. Cristo não lhe bastava com os seus membros ideais pregados na cruz: era-lhe necessário um homem como todos, de bigode e chapéu alto. Paciência! Que ao menos ele fosse um esposo sob a legitimação sacramental...
 
Assim a ia curando daquela paixão mórbida com uma direção de todos os dias, uma destas persistências de missionário que só dá a fé sincera, pondo a sutileza dum casuísta ao serviço da moralidade de um filósofo, paternal e hábil - uma cura maravilhosa de que o bom abade em segredo tirava alguma vaidade.
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E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu que enfim z paixão por Amaro já não era na alma dela um sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado, arrumado no fundo da sua memória como num jazigo, escondido já sob a delicada florescência duma virtude nova. Assim julgava pelo menos o bom Ferrão - vendo-a agora aludir ao passado com o olhar tranquilo, sem aqueles rubores que outrora lhe escaldavam a face ao simples nome de Amaro.
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Ela, com efeito, já não pensava no senhor pároco com a comoção de outrora: o terror do pecado, a influência penetrante do abade, aquela brusca separação do meio devoto em que o seu amor se desenvolvera, o gozo que sentia numa serenidade maior, sem sustos noturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora, tudo concorrera para que o fogo ruidoso daquele sentimento se fosse reduzindo a alguma brasa que ainda rebrilhava surdamente. O pároco estivera ao princípio na sua alma com o prestígio dum ídolo coberto de ouro; mas tantas vezes, desde a sua gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento histérico, aquele ídolo, que todo o dourado lhe ficara nas mãos, e a forma trivial e escura que aparecia por baixo já a não deslumbrava; viu por isso o abade derrubar-lho inteiramente, sem chorar e sem lutar. Se ainda pensava em Amaro, é porque não podia deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a tentava ainda era o prazer e não o pároco.
 
E com a sua natureza de boa rapariga tinha um reconhecimento sincero pelo abade. Como dissera a Amaro naquela tarde, "devia-lhe tudo".
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Era o que sentia agora também pelo doutor Gouveia, que vinha regularmente ver a velha de dois em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois papás que o Céu lhe mandava - um que lhe prometia a saúde, outro a graça.
 
Refugiada naquelas duas proteções, gozou uma paz adorável nas últimas semanas de Outubro. Os dias iam muito serenos e muito tépidos. Era bom estar no terraço, pelas tardes, naquela serenidade outonal dos campos. O doutor Gouveia às vezes encontrava-se com o abade Ferrão; ambos se estimavam; depois da visita à velha, iam para o terraço, e começavam logo as suas eternas questões sobre Religião e sobre Moral.
 
Amélia, com a costura caída nos joelhos, sentindo os seus dois amigos ao pé, aqueles dois colossos de ciência e de santidade, abandonava-se ao encanto da hora suave, olhando a quinta onde as árvores jà empalideciam. Pensava no futuro; ele aparecia-lhe agora fácil e seguro; era forte, e o parto, com a presença do doutor, seria apenas uma hora de dores; depois, livre daquela complicação, voltaria para a cidade e para a mamã... E então uma outra esperança, que nascera das conversas constantes do abade sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe na imaginação. Por que não?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e perdoasse!... Ele nunca lhe repugnara como homem, e seria um casamento esplêndido agora que ele tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que João Eduardo ia ser o administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos Poiais, passeando na caleche do Morgado, chamada para jantar por uma campainha, servida por um escudeiro de libré... Ficava
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muito tempo imóvel, banhada na doçura desta perspectiva, enquanto o abade e o doutor ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina da Graça e da Consciência, e monotonamente a água das regas murmurava no pomar.
 
Foi por este tempo que D. Josefa, inquieta de não ver aparecer o senhor pároco, mandara expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria a esmola duma visita. O homem voltara com a espantosa notícia de que o senhor pároco partira para a Vieira, e não viria senão daí a duas semanas. A velha choramigou de desgosto. E Amélia, nessa noite, no seu quarto, não pôde adormecer - na irritação que lhe dava aquela idéia do senhor pároco a divertir-se na Vieira, sem pensar nela decerto, chalaceando com as senhoras na praia, e andando de serão em serão...
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Com a primeira semana de Novembro vieram as chuvas. A Ricoça parecia agora mais lúgubre naqueles dias curtos, banhados de água, sob um céu de tempestade. O abade Ferrão, tolhido de reumatismo, já não aparecia na quinta. O doutor Gouveia, depois da visita de meia hora, abalava no seu velho cabriolé. A única distração de Amélia era estar à janela por dentro dos vidros: três vezes vira passar João Eduardo na estrada; mas ele ao avistá-la baixava os olhos ou refugiava-se mais sob o guarda-chuva.
 
A Dionísia vinha também frequentemente: devia ser a parteira, apesar do doutor Gouveia ter aconselhado a Micaela, matrona duma experiência
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de trinta anos. Mas Amélia "não queria mais gente no segredo", e além disso Dionísia trazia-lhe as notícias de Amaro, que ela sabia pela cozinheira. O senhor pároco tinha-se achado tão bem na Vieira que se ia demorar até Dezembro. Aquele "procedimento infame" indignava-a: não duvidava que o pároco queria estar longe quando chegassem os transes, os perigos do parto. Além disso era decidido de há muito que a criança havia de ser entregue a uma ama de ao pé de Ourém, que a criaria na aldeia: c agora o tempo chegava, c a ama não estava falada, e o senhor pároco apanhava conchinhas à beira-mar!...
 
— É indecente, Dionísia, exclama Amélia furiosa.
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E por orgulho não queria escrever a Amaro.
 
Além disso as impertinências da velha tornavam-se odiosas. A pobre D. Josefa, privada dos auxílios devotos dum padre, um verdadeiro
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padre (não um abade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta a todas as audácias de Satanás: a visão singular que tivera de S. Francisco Xavier nu, repetia-se agora com uma insistência pavorosa a respeito de todos os santos: era toda uma corte do Céu, arrojando túnicas e hábitos, e bailando-lhe na imaginação sarabandas em pêlo: e a velha estava morrendo da perseguição destes espetáculos dispostos pelo demônio. Reclamara o padre Silvério, mas parecia que um reumatismo geral tolhia todo o clero diocesano; desde o princípio do Inverno o Silvério estava também de cama. O abade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio - mas para lhe comunicar a receita nova que descobrira de fazer bacalhau à biscainha... Esta falta dum padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que recaia sobre Amélia numa chuva de impertinências.
 
E a boa senhora estava pensando seriamente em mandar a Amor pelo padre Brito - quando uma tarde, ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor pároco apareceu!
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— E a mamã passa bem, disse ele a Amélia. Já tem os seus trinta banhos. Ganhou outro dia quinze tostões a uma batotinha que se arranjou... E por cá que têm feito?
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Então a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solidão! Um tempo de chuva! Uma falta de amizades! Ai! ela estava ali a perder a sua alma naquela quinta fatal...
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D. Josefa deu um risinho de escárnio. E o padre Amaro, erguendo- se para sair, lamentou o bom abade.
 
— Coitado! Santo homem... Hei-de ir vê-lo em tendo vagar. Pois amanhã cá apareço, D. Josefa,
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e havemos de pôr essa alma em paz... Não se incomode, Sra. D. Amélia, eu sei agora o caminho.
 
Mas ela insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salão sem uma palavra. Amaro calçava as suas luvas novas de pelica preta. E no alto da escada, muito cerimoniosamente, tirando o chapéu:
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— Infame!
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Ele olhou-a, como assombrado:
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Houve um muito bem, exclamado com convicção: mas uma senhora de grandes proporções, mãe de quatro deliciosos anjos todos Marias (como dizia o Pinheiro), quis explicações, porque nunca tinha visto fugir uma sombra.
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O Pinheiro deu-as, cientificamente:
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— É o seu quarto aqui, hem?
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— É.
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Dai a dois dias o abade Ferrão apareceu restabelecido do seu ataque de reumatismo. Contou a Amélia a bondade do Morgado, que chegara a mandar-lhe todas as tardes, num aparelho de
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lata com água quente, uma galinha cozida em arroz. Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a caridade melhor; todas as suas horas vagas as passava ao pé da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar, ficando com ele até à uma hora da noite num zelo de enfermeiro. Que rapaz! Que rapaz!
 
E de repente, tomando as mãos ambas de Amélia, exclamou: