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PRIMAS DE SAPUCAIA!
Há umas ocasiões oportunas e fugitivas, em que o acaso nos inflige duas ou três primas de Sapucaia; outras vezes, ao contrário, as primas de Sapucaia são antes um benefício do que um infortúnio.
 
Era à porta de uma igreja. Eu esperava que as minhas primas Claudina e Rosa tomassem água benta, para conduzi-las à nossa casa, onde estavam hospedadas. Tinham vindo de Sapucaia, pelo carnaval, e demoraram-se dois meses na corte. Era eu que as acompanhava a toda a parte, missas, teatros, Rua do Ouvidor, porque minha mãe, com o seu reumático, mal podia mover-se dentro de casa, e elas não sabiam andar sós. Sapucaia era a nossa pátria comum. Embora todos os parentes estivessem dispersos, ali nasceu o tronco da família. Meu tio José Ribeiro, pai destas primas, foi o único, de cinco irmãos, que lá ficou lavrando a terra e figurando na política do lugar. Eu vim cedo para a corte, de onde segui a estudar e bacharelar-me em S. Paulo. Voltei uma só vez a Sapucaia, para pleitear uma eleição, que perdi.
 
Ha umas ocasiõesoccasiões oportunasopportunas e fugitivas, em que o acaso nos inflige duas ou trêstrez primas de Sapucaia; outras vezes, ao contráriocontrario, as primas de Sapucaia são antes um benefíciobeneficio do que um infortúnioinfortunio.
Rigorosamente, todas estas notícias são desnecessárias para a compreensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma coisa, antes de entrar em matéria, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a rédea à pena, e ela que vá andando, até achar entrada. Há de haver alguma; tudo depende das circunstâncias, regra que tanto serve para o estilo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies.
 
Era àá porta de uma igrejaegreja. Eu esperava que as minhas primas Claudina e Rosa tomassem águaagua benta, para conduziconduzil-lasas àá nossa casa, onde estavam hospedadas. Tinham vindo de Sapucaia, pelo carnavalCarnaval, e demoraram-se dois mesesmezes na cortecôrte. Era eu que as acompanhava a toda a parte, missas, teatrostheatros, Ruarua do Ouvidor, porque minha mãemãi, com o seu reumáticorheumatico, mal podia mover-se dentro de casa, e elasellas não sabiam andar sós. Sapucaia era a nossa pátriapatria comumcommum. Embora todos os parentes estivessem dispersos, alialli nasceu o tronco da famíliafamilia. Meu tio José Ribeiro, pai destas primas, foi o único, de cinco irmãos, que lá ficou lavrando a terra e figurando na política do lugar. Eu vim cedo para a corte, de onde segui a estudar e bacharelar-me em S. Paulo. Voltei uma só vez a Sapucaia, para pleitear uma eleição, que perdi.
Portanto, água benta e porta de igreja. Era a igreja de S. José. A missa acabara; Claudina e Rosa fizeram uma cruz na testa, com o dedo polegar, molhado na água benta e descalçado unicamente para esse gesto. Depois ajustaram os manteletes, enquanto eu, ao portal, ia vendo as damas que saíam. De repente, estremeço, inclino-me para fora, chego mesmo a dar dois passos na direção da rua.
d'estas primas, foi o unico, de cinco irmãos, que lá ficou lavrando a terra e figurando na politica do logar. Eu vim cedo para a côrte, d'onde segui a estudar e bacharelar-me em S. Paulo. Voltei uma só vez a Sapucaia, para pleitear uma eleição, que perdi.
 
Rigorosamente, todas estas noticias são desnecessarias para a comprehensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma cousa, antes de entrar em materia, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a redea á penna, e ella que vá andando, até
— Que foi, primo?
Rigorosamente, todas estas notícias são desnecessárias para a compreensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma coisa, antes de entrar em matéria, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a rédea à pena, e ela que vá andando, até achar entrada. Há deHade haver alguma; tudo depende das circunstânciascircumstancias, regra que tanto serve para o estiloestylo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéiaidéa traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôscompoz as suas espécies.
especies.
 
Portanto, águaagua benta e porta de igrejaegreja. Era a igrejaegreja de S. José. A missa acabaraacabára; Claudina e Rosa fizeram uma cruz na testa, com o dedo polegarpollegar, molhado na águaagua benta e descalçado unicamente para esse gesto. Depois ajustaram os manteletes, enquantoemquanto eu, ao portal, ia vendo as damas que saíamsahiam. De repente, estremeço, inclino-me para forafóra, chego mesmo a dar doisdous passos na direçãodirecção da rua.
— Nada, nada.
 
--Que foi, primo?
Era uma senhora, que passara rentezinha com a igreja, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapelinho de sol; ia pela Rua da Misericórdia acima. Para explicar a minha comoção, é preciso dizer que era a segunda vez que a via. A primeira foi no Prado Fluminense, dois meses antes, com um homem que, pelos modos, era seu marido, mas tanto podia ser marido como pai. Estava então um pouco de espavento, vestida de escarlate, com grandes enfeites vistosos, e umas argolas demasiado grossas nas orelhas; mas os olhos e a boca resgatavam o resto. Namoramos às bandeiras despregadas. Se disser que saí dali apaixonado, não meto a minha alma no inferno, porque é a verdade pura. Saí tonto, mas saí também desapontado, perdi-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ela, nem ninguém me soube dizer quem fosse.
 
--Nada, nada.
Calcule-se o meu enfado, vendo que a fortuna vinha trazê-la outra vez ao meu caminho, e que umas primas fortuitas não me deixavam lançar-lhe as mãos. Não será difícil calculá-lo, porque estas primas de Sapucaia tomam todas as formas, e o leitor, se não as teve de um modo, teve-as de outro. Umas vezes copiam o ar confidencial de um cavalheiro informado da última crise do ministério, de todas as causas aparentes ou secretas, dissensões novas ou antigas, interesses agravados, conspiração, crise. Outras vezes, enfronham-se na figura daquele eterno cidadão que afirma de um modo ponderoso e abotoado, que não há leis sem costumes, nisi lege sine moribus. Outras afivelam a máscara de um Dangeau de esquina, que nos conta miudamente as fitas e rendas que esta, aquela, aqueloutra dama levara ao baile ou ao teatro. E durante esse tempo, a Ocasião passa, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapelinho de sol: passa, dobra a esquina, e adeus... O ministério esfacelava-se; malinas e bruxelas; nisi lege sine moribus...
 
Era uma senhora, que passarapassára rentezinharentesinha com a igrejaegreja, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapelinhochapellinho de sol; ia pela Ruarua da MisericórdiaMisericordia acima. Para explicar a minha comoçãocommoção, é preciso dizer que era a segunda vez que a via. A primeira foi no Prado Fluminense, doisdous mesesmezes antes, com um homem que, pelos modos, era seu marido, mas tanto podia ser marido como pai. Estava então um pouco de espavento, vestida de escarlate, com grandes enfeites vistosos, e umas argolas demasiado grossas nas orelhas; mas os olhos e a bocabocca resgatavam o resto. Namoramos às bandeiras despregadas. Se disser que saí dali apaixonado, não meto a minha alma no inferno, porque é a verdade pura. Saí tonto, mas saí também desapontado, perdi-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ela, nem ninguém me soube dizer quem fosse.
Estive a pique de dizer às primas, que se fossem embora; morávamos na Rua do Carmo, não era longe; mas abri mão da idéia. Já na rua pensei também em deixá-las na igreja, à minha espera, e ir ver se agarrava a Ocasião pela calva. Creio mesmo que cheguei a parar um momento, mas rejeitei igualmente esse alvitre e fui andando.
Namorámos ás bandeiras despregadas. Se disser que sahi d'alli apaixonado, não metto a minha alma no inferno, porque é a verdade pura. Sahi tonto, mas sahi tambem desapontado, perdia-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ella, nem ninguem me soube dizer quem fosse.
 
Calcule-se o meu enfado, vendo que a fortuna vinha trazêtrazel-laa outra vez ao meu caminho, e que umas primas fortuitas não me deixavam lançar-lhe as mãos. Não será difícildifficil calculácalculal-loo, porque estas primas de Sapucaia tomam todas as formasfórmas, e o leitor, se não as teve de um modo, teve-as de outro. Umas vezes copiam o ar confidencial de um cavalheiro informado da últimaultima crise do ministérioministerio, de todas as causas aparentesapparentes ou secretas, dissensões novas ou antigas, interesses agravadosaggravados, conspiração, crise. Outras vezes, enfronham-se na figura daqueled'aquelle eterno cidadão que afirmaaffirma de um modo ponderoso e abotoado, que não ha leis sem costumes, nisi_nisi lege sine moribusmoribus_. Outras, afivelamafivellam a máscaramascara de um Dangeau de esquina, que nos conta miudamente as fitas e rendas que esta, aquelaaquella, aqueloutraaquell'outra dama levara ao baile ou ao teatrotheatro. E durante esse tempo, a OcasiãoOccasião passa, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapelinhochapellinho de sol: passa, dobra a esquina, e adeus... O ministérioministerio esfacelavaesphacelava-se; malinas e bruxelasbruxellas; nisi_nisi lege sine moribusmoribus_...
Fui andando com elas para o lado oposto ao da minha incógnita. Olhei para trás repetidas vezes, até perdê-la numa das curvas da rua, com os olhos no chão, como quem reflete, devaneia ou espera uma hora marcada. Não minto dizendo que esta última idéia trouxe-me a emoção do ciúme. Sou exclusivo e pessoal; daria um triste amante de mulheres casadas. Não importa que entre mim e aquela dama existisse apenas uma contemplação fugitiva de algumas horas; desde que a minha personalidade ia para ela, a partilha tornava-se-me insuportável. Sou também imaginoso; engenhei logo uma aventura e um aventureiro, dei-me ao prazer mórbido de afligir-me sem motivo nem necessidade. As primas iam adiante, e falavam-me de quando em quando; eu respondia mal, se respondia alguma coisa. Cordialmente, execrava-as.
 
EstiveEsteve a pique de dizer àsás primas, que se fossem embora; morávamosmoravamos na Ruarua do Carmo, não era longe; mas abri mão da idéiaidéa. Já na rua pensei tambémtambem em deixádeixal-lasas na igrejaegreja, àá minha espera, e ir ver se agarrava a OcasiãoOccasião pela calva. Creio mesmo que cheguei a parar um momento, mas rejeitei igualmenteegualmente esse alvitre e fui andando.
Ao chegar à porta de casa, consultei o relógio, como se tivesse alguma coisa que fazer; depois disse às primas que subissem e fossem almoçando. Corri à Rua da Misericórdia. Fui primeiro até à Escola de Medicina; depois voltei e vim até à Câmara dos Deputados, então mais devagar, esperando vê-la ao chegar a cada curva da rua; mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia, ainda subi outra vez a rua, porque adverti que, a pé e devagar, mal teria tempo de ir em meio da Praia de Santa Luzia, se acaso não parara antes; e aí fui, rua acima e praia fora, até ao convento da Ajuda. Não encontrei nada, coisa nenhuma. Nem por isso perdi as esperanças; arrepiei caminho e vim, a passo lento ou apressado, conforme se me afigurava que era possível apanhá-la adiante, ou dar tempo a que saísse de alguma parte. Desde que a minha imaginação reproduzia a dama, todo eu sentia um abalo, como se realmente tivesse de vê-la daí a alguns minutos. Compreendi a emoção dos doidos.
 
Fui andando com elasellas para o lado opostoopposto ao da minha incógnitaincognita. Olhei para trástraz repetidas vezes, até perdêperdel-laa numan'uma das curvas da rua, com os olhos no chão, como quem refletereflecte, devaneia ou espera uma hora marcada. Não minto dizendo que esta últimaultima idéiaidéa trouxe-me a emoção do ciúmeciume. Sou exclusivo e pessoal; daria um triste amante de mulheres casadas. Não importa que entre mim e aquelaaquella dama existisse apenas uma contemplação fugitiva de algumas horas; desde que a minha personalidade ia para elaella, a partilha tornava-se-me insuportávelinsupportavel. Sou também imaginoso; engenhei logo uma aventura e um aventureiro, dei-me ao prazer mórbido de afligir-me sem motivo nem necessidade. As primas iam adiante, e falavam-me de quando em quando; eu respondia mal, se respondia alguma coisa. Cordialmente, execrava-as.tambem
Entretanto, nada. Desci a rua sem achar o menor vestígio da minha incógnita. Felizes os cães, que pelo faro dão com os amigos! Quem sabe se não estaria ali bem perto, no interior de alguma casa, talvez a própria casa dela? Lembrou-me indagar; mas de quem, e como? Um padeiro, encostado ao portal, espiava-me; algumas mulheres faziam a mesma coisa enfiando os olhos pelos postigos. Naturalmente desconfiavam do transeunte, do andar vagaroso ou apressado, do olhar inquisidor, do gesto inquieto. Deixei-me ir até à Câmara dos Deputados, e parei uns cinco minutos, sem saber que fizesse. Era perto de meio-dia. Esperei mais dez minutos, depois mais cinco, parado, com a esperança de vê-la; afinal, desesperei e fui almoçar.
imaginoso; engenhei logo uma aventura e um aventureiro, dei-me ao prazer morbido de affligir-me sem motivo nem necessidade. As primas iam adiante, e falavam-me de quando em quando; eu respondia mal, se respondia alguma cousa. Cordialmente, execrava-as.
 
Ao chegar àá porta de casa, consultei o relógiorelogio, como sesi tivesse alguma coisacousa que fazer; depois disse àsás primas que subissem e fossem almoçando. Corri àá Ruarua da MisericórdiaMisericordia. Fui primeiro até àá Escola de Medicina; depois voltei e vim até àa CâmaraCamara dos Deputados, então mais devagar, esperando vel-laa ao chegar a cada curva da rua; mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia, ainda subi outra vez a rua, porque adverti que, a pé e devagarde vagar, mal teria tempo de ir em meio da Praiapraia de Santa Luzia, se acaso não pararaparára antes; e ahi fui, rua acima e praia forafóra, até aoo convento da Ajuda. Não encontrei nada, coisacousa nenhuma. Nem por isso perdi as esperanças; arrepieiarripiei caminho e vim, a passo lento ou apressado, conforme se me afigurava que era possívelpossivel apanháapanhal-laa adiante, ou dar tempo a que saíssesahisse de alguma parte. Desde que a minha imaginação reproduzia a dama, todo eu sentia um abalo, como se realmente tivesse de vel-laa daíd'ahi a alguns minutos. CompreendiComprehendi a emoção dos doidosdoudos.
Não almocei em casa. Não queria ver os demônios das primas, que me impediram de seguir a dama incógnita. Fui a um hotel. Escolhi uma mesa no fim da sala, e sentei-me de costas para as outras; não queria ser visto nem conversado. Comecei a comer o que me deram. Pedi alguns jornais, mas confesso que não li nada seguidamente, e apenas entendi três quartas partes do que ia lendo. No meio de uma notícia ou de um artigo, escorregava-me o espírito e caía na Rua da Misericórdia, à porta da igreja, vendo passar a incógnita, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapelinho de sol.
 
Entretanto, nada. Desci a rua sem achar o menor vestígiovestigio da minha incógnitaincognita. Felizes os cães, que pelo faro dão com os amigos! Quem sabe se não estaria alialli bem perto, no interior de alguma casa, talvez a própriapropria casa delad'ella? Lembrou-me indagar; mas de quem, e como? Um padeiro, encostado ao portal, espiava-me; algumas mulheres faziam a mesma coisacousa enfiando os olhos pelos postigos. Naturalmente desconfiavam do transeunte, do andar vagaroso ou apressado, do olhar inquisidor, do gesto inquieto. Deixei-me ir até àá CâmaraCamara dos Deputados, e parei uns cinco minutos, sem saber que fizesse. Era perto de meio-dia. Esperei mais dez minutos, depois mais cinco, parado, com a esperança de vê-la; afinal, desesperei e fui almoçar.
A última vez que me aconteceu essa separação da OUTRA e da BESTA, estava já no café, e tinha diante de mim um discurso parlamentar. Achei-me ainda uma vez à porta da igreja; imaginei então que as primas não estavam comigo, e que eu seguia atrás da bela dama. Assim é que se consolam os preteridos da loteria; assim é que se fartam as ambições malogradas.
cinco minutos, sem saber que fizesse. Era perto de meio-dia. Esperei mais dez minutos, depois mais cinco, parado, com a esperança de vel-a; afinal, desesperei e fui almoçar.
 
Não almocei em casa. Não queria ver os demôniosdemonios das primas, que me impediram de seguir a dama incógnitaincognita. Fui a um hotel. Escolhi uma mesa no fim da sala, e sentei-me de costas para as outras; não queria ser visto nem conversado. Comecei a comer o que me deram. Pedi alguns jornais, mas confesso que não li nada seguidamente, e apenas entendi três quartas partes do que ia lendo. No meio de uma notícia ou de um artigo, escorregava-me o espírito e caía na Rua da Misericórdia, à porta da igreja, vendo passar a incógnita, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapelinho de sol.
Não me peçam minúcias nem preliminares do encontro. Os sonhos desdenham as linhas finas e o acabado das paisagens; contentam-se de quatro ou cinco brochadas grossas, mas representativas. Minha imaginação galgou as dificuldades da primeira fala, e foi direita à Rua do Lavradio ou dos Inválidos, à própria casa de Adriana. Chama-se Adriana. Não viera à Rua da Misericórdia por motivos de amores, mas a ver alguém, uma parenta ou uma comadre, ou uma costureira. Conheceu-me, e teve igual comoção. Escrevi-lhe; respondeu-me. Nossas pessoas foram uma para a outra por cima de uma multidão de regras morais e de perigos. Adriana é casada; o marido conta cinqüenta e dois anos, ela trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer à família. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ela me diz nesta casinha que aluguei fora da cidade, de propósito para nós.
jornaes, mas confesso que não li nada seguidamente, e apenas entendi tres quartas partes do que ia lendo. No meio de uma noticia ou de um artigo, escorregava-me o espirito e cahia na rua da Misericordia, á porta da egreja, vendo passar a incognita, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol.
 
A últimaultima vez que me aconteceu essa separação da OUTRA_outra_ e da BESTA_besta_, estava já no café, e tinha diante de mim um discurso parlamentar. Achei-me ainda uma vez àá porta da igrejaegreja; imaginei então que as primas não estavam comigocommigo, e que eu seguia atrásatraz da belabella dama. Assim é que se consolam os preteridos da loteria; assim é que se fartam as ambições malogradasmallogradas.
Ouço-a embriagado. Não me enganei; é a mulher ardente e amorosa, qual me diziam os seus olhos, olhos de touro, como os de Juno, grandes e redondos. Vive de mim e para mim. Escrevemo-nos todos os dias; e, apesar disso, quando nos encontramos, na casinha, é como se mediara um século. Creio até que o coração dela ensinou-me alguma coisa, embora noviço, ou por isso mesmo. Nesta matéria desaprende-se com o uso e o ignorante é que é douto. Adriana não dissimula a alegria nem as lágrimas; escreve o que pensa, conta o que sente; mostra-me que não somos dois, mas um, tão-somente um ente universal, para quem Deus criou o sol e as flores, o papel e a tinta, o correio e as carruagens fechadas.
 
Não me peçam minúciasminucias nem preliminares do encontro. Os sonhos desdenham as linhas finas e o acabado das paisagenspaysagens; contentam-se de quatro ou cinco brochadas grossas, mas representativas. Minha imaginação galgou as dificuldadesdifficuldades da primeira falafalla, e foi direita àá Ruarua do Lavradio ou dos InválidosInvalidos, àá própriapropria casa de Adriana. Chama-se Adriana. Não viera àá Ruarua da MisericórdiaMisericordia por motivos de amores, mas a ver alguémalguem, uma parenta ou uma comadre, ou uma costureira. Conheceu-me, e teve igualegual comoçãocommoção. Escrevi-lhe; respondeu-me. Nossas pessoas foram uma para a outra por cima de uma multidão de regras moraismoraes e de perigos. Adriana é casada; o marido conta cinqüentacincoenta e doisdous anosannos, elaella trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer àá famíliafamilia. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que elaella me diz nesta casinha que aluguei forafóra da cidade, de propósitoproposito para nós.
Enquanto ideava isto, creio que acabei de beber o café; lembra-me que o criado veio à mesa e retirou a xícara e o açucareiro. Não sei se lhe pedi fogo, provavelmente viu-me com o charuto na mão e trouxe-me fósforos.
 
Ouço-a embriagado. Não me enganei; é a mulher ardente e amorosa, qual me diziam os seus olhos, olhos de touro, como os de Juno, grandes e redondos. Vive de mim e para mim. Escrevemo-nos todos os dias; e, apesarapezar dissod'isso, quando nos encontramos, na casinha, é como se mediaramedeara um séculoseculo. Creio até que o coração delad'ella ensinou-me alguma coisacousa, embora noviço, ou por isso mesmo. NestaN'esta matériamateria desaprendedesapprende-se com o uso e o ignorante é que é douto. Adriana não dissimula a alegria nem as lágrimaslagrimas; escreve o que pensa, conta o que sente; mostra-me que não somos dois, mas um, tão-somente sómente um ente universal, para quem Deus crioucreou o sol e as flores, o papel e a tinta, o correio e as carruagens fechadas.
Não juro, mas penso que acendi o charuto, porque daí a um instante, através de um véu de fumaça, vi a cabeça meiga e enérgica da minha bela Adriana, encostada a um sofá. Eu estou de joelhos, ouvindo-lhe a narração da última rusga do marido. Que ele já desconfia; ela sai muitas vezes, distrai-se, absorve-se, aparece-lhe triste ou alegre, sem motivo, e o marido começa a ameaçá-la. Ameaçá-la de quê? Digo-lhe que, antes de qualquer excesso, era melhor deixá-lo, para viver comigo, publicamente, um para o outro. Adriana escuta-me pensativa, cheia de Eva, namorada do demônio, que lhe sussurra de fora o que o coração lhe diz de dentro. Os dedos afagam-me os cabelos.
papel e a tinta, o correio e as carruagens fechadas.
 
EnquantoEmquanto ideava isto, creio que acabei de beber o café; lembra-me que o criado veioveiu àá mesa e retirou a xícarachicara e o açucareiroassucareiro. Não sei se lhe pedi fogo, provavelmente viu-me com o charuto na mão e trouxe-me fósforosphosphoros.
— Pois sim! pois sim!
 
Não juro, mas penso que accendi o charuto, porque d'ahi a um instante, atravez de um véu de fumaça, vi a cabeça meiga e energica da minha bella Adriana, encostada a um sophá. Eu estou de joelhos, ouvindo-lhe a narração da ultima rusga do marido. Que elle já desconfia; ella sahe
Veio no dia seguinte, consigo mesma, sem marido, sem sociedade, sem escrúpulos, tão-somente consigo, e fomos dali viver juntos. Nem ostentação, nem resguardo. Supusemo-nos estrangeiros, e realmente não éramos outra coisa; falávamos uma língua, que nunca ninguém antes falara nem ouvira. Os outros amores eram, desde séculos, verdadeiras contrafações; nós dávamos a edição autêntica. Pela primeira vez, imprimia-se o manuscrito divino, um grosso volume que nós dividíamos em tantos capítulos e parágrafos quantas eram as horas do dia ou os dias da semana. O estilo era tecido de sol e música; a linguagem compunha-se da fina flor dos outros vocabulários. Tudo o que neles existia, meigo ou vibrante, foi extraído pelo autor para formar esse livro único — livro sem índice, porque era infinito — sem margens, para que o fastio não viesse escrever nelas as suas notas — sem fita, porque já não tínhamos precisão de interromper a leitura e marcar a página.
Não juro, mas penso que acendi o charuto, porque daí a um instante, através de um véu de fumaça, vi a cabeça meiga e enérgica da minha bela Adriana, encostada a um sofá. Eu estou de joelhos, ouvindo-lhe a narração da última rusga do marido. Que ele já desconfia; ela sai muitas vezes, distraidistrahe-se, absorve-se, apareceapparece-lhe triste ou alegre, sem motivo, e o marido começa a ameaçáameaçal-laa. AmeaçáAmeaçal-laa de quêque? Digo-lhe que, antes de qualquer excesso, era melhor deixádeixal-loo, para viver comigocommigo, publicamente, um para o outro. Adriana escuta-me pensativa, cheia de Eva, namorada do demôniodemonio, que lhe sussurra de forafóra o que o coração lhe diz de dentro. Os dedos afagamaffagam-me os cabeloscabellos.
 
--Pois sim! pois sim!
Uma voz chamou-me à realidade. Era um amigo que acordara tarde, e vinha almoçar. Nem o sonho me deixava esta outra prima de Sapucaia! Cinco minutos depois despedi-me e saí; eram duas horas passadas.
 
VeioVeiu no dia seguinte, consigo mesma, sem marido, sem sociedade, sem escrúpulosescrupulos, tão-somente consigosómente comsigo, e fomos dalid'alli viver juntos. Nem ostentação, nem resguardo. SupusemoSuppuzemo-nos estrangeiros, e realmente não éramoseramos outra coisacousa; falávamosfallavamos uma língualingua, que nunca ninguémninguem antes falarafallara nem ouvira. Os outros amores eram, desde séculosseculos, verdadeiras contrafaçõescontrafacções; nós dávamosdavamos a edição autênticaauthentica. Pela primeira vez, imprimia-se o manuscritomanuscripto divino, um grosso volume que nós dividíamosdividiamos em tantos capítuloscapitulos e parágrafosparagraphos quantas eram as horas do dia ou os dias da semana. O estiloestylo era tecido de sol e músicamusica; a linguagem compunha-se da fina florflôr dos outros vocabuláriosvocabularios. Tudo o que nelesn'elles existia, meigo ou vibrante, foi extraídoextrahido pelo autor para formar esse livro único — unico--livro sem índiceindice, porque era infinito--sem margens, para que o fastio não viesse escrever nelas as suas notas — sem fita, porque já não tínhamos precisão de interromper a leitura e marcar a página.
Vexa-me dizer que ainda fui à Rua da Misericórdia, mas é preciso narrar tudo: fui e não achei nada. Voltei nos dias seguintes sem outro lucro, além do tempo perdido. Resignei-me a abrir mão da aventura, ou esperar a solução do acaso. As primas achavam-me aborrecido ou doente; não lhes disse que não. Daí a oito dias, foram-se embora, sem me deixar saudades; despedi-me delas como de uma febre maligna.
fastio não viesse escrever n'ellas as suas notas,--sem fita, porque já não tinhamos precisão de interromper a leitura e marcar a pagina.
 
Uma voz chamou-me àá realidade. Era um amigo que acordara tarde, e vinha almoçar. Nem o sonho me deixava esta outra prima de Sapucaia! Cinco minutos depois despedi-me e saísahi; eram duas horas passadas.
A imagem da minha incógnita não me deixou durante muitas semanas. Na rua, enganei-me várias vezes. Descobria ao longe uma figura, que era tal qual a outra; picava os calcanhares, até apanhá-la e desenganar-me. Comecei a achar-me ridículo; mas lá vinha uma hora ou um minuto, uma sombra ao longe, e a preocupação revivia. Afinal vieram outros cuidados, e não pensei mais nisso.
 
Vexa-me dizer que ainda fui àá Ruarua da MisericórdiaMisericordia, mas é preciso narrar tudo: fui e não achei nada. Voltei nos dias seguintes sem outro lucro, além do tempo perdido. Resignei-me a abrir mão da aventura, ou esperar a solução do acaso. As primas achavam-me aborrecido ou doente; não lhes disse que não. DaíD'ahi a oito dias, foram-se embora, sem me deixar saudades; despedi-me delasd'ellas como de uma febre maligna.
No princípio do ano seguinte, fui a Petrópolis; fiz a viagem com um antigo companheiro de estudos, Oliveira, que foi promotor em Minas Gerais, mas abandonara ultimamente a carreira por ter recebido uma herança. Estava alegre como nos tempos da academia; mas de quando em quando calava-se, olhando para fora da barca ou da caleça, com a atonia de quem regala a alma de uma recordação, de uma esperança ou de um desejo. No alto da serra perguntei-lhe para que hotel ia; respondeu que ia para uma casa particular, mas não me disse aonde, e até desconversou. Cuidei que me visitaria no dia seguinte; mas nem me visitou, nem o vi em parte alguma. Outro colega nosso ouvira dizer que ele tinha uma casa para os lados da Renânia.
 
A imagem da minha incógnitaincognita não me deixou durante muitas semanas. Na rua, enganei-me váriasvarias vezes. Descobria ao longe uma figura, que era tal qual a outra; picava os calcanhares, até apanháapanhal-laa e desenganar-me. Comecei a achar-me ridículoridiculo; mas lá vinha uma hora ou um minuto, uma sombra ao longe, e a preocupaçãopreoccupação revivia. Afinal vieram outros cuidados, e não pensei mais nisson'isso.
Nenhuma destas circunstâncias voltaria à memória, se não fosse a notícia que me deram dias depois. Oliveira tirara uma mulher ao marido, e fora refugiar-se com ela em Petrópolis. Deram-me o nome do marido e o dela. O dela era Adriana. Confesso que, embora o nome da outra fosse pura invenção minha, estremeci ao ouvi-lo; não seria a mesma mulher? Vi logo depois que era pedir muito ao acaso. Já faz bastante esse pobre oficial das coisas humanas, concertando alguns fios dispersos; exigir que os reate a todos, e com os mesmos títulos, é saltar da realidade na novela. Assim falou o meu bom senso, e nunca disse tão gravemente uma tolice, pois as duas mulheres eram nada menos que a mesmíssima.
 
No princípioprincipio do anoanno seguinte, fui a PetrópolisPetropolis; fiz a viagem com um antigo companheiro de estudos, Oliveira, que foi promotor em Minas Gerais-Geraes, mas abandonara ultimamente a carreira por ter recebido uma herança. Estava alegre como nos tempos da academia; mas de quando em quando calava-se, olhando para forafóra da barca ou da caleça, com a atonia de quem regala a alma de uma recordação, de uma esperança ou de um desejo. No alto da serra perguntei-lhe para que hotel ia; respondeu que ia para uma casa particular, mas não me disse aonde, e até desconversou. Cuidei que me visitaria no dia seguinte; mas nem me visitou, nem o vi em parte alguma. Outro colegacollega nosso ouvira dizer que eleelle tinha uma casa para os lados da RenâniaRhenania.
Vi-a três semanas depois, indo visitar o Oliveira, que viera doente da corte. Subimos juntos na véspera; no meio da serra, começou ele a sentir-se incomodado; no alto estava febril. Acompanhei-o no carro até a casa, e não entrei, porque ele dispensou-me o incômodo. Mas no dia seguinte fui vê-lo, um pouco por amizade, outro pouco por avidez de conhecer a incógnita. Vi-a; era ela, era a minha, era a única Adriana.
 
Nenhuma destasd'estas circunstânciascircumstancias voltaria àá memóriamemoria, se não fosse a notícianoticia que me deram dias depois. Oliveira tiraratirára uma mulher ao marido, e forafôra refugiar-se com elaella em PetrópolisPetropolis. Deram-me o nome do marido e o delad'ella. O delad'ella era Adriana. Confesso que, embora o nome da outra fosse pura invenção minha, estremeci ao ouviouvil-loo; não seria a mesma mulher? Vi logo depois que era pedir muito ao acaso. Já faz bastante esse pobre oficialofficial das coisascousas humanas, concertando alguns fios dispersos; exigir que os reate a todos, e com os mesmos títulostitulos, é saltar da realidade na novelanovella. Assim faloufallou o meu bom senso, e nunca disse tão gravemente uma tolice, pois as duas mulheres eram nada menos que a mesmíssima.
Oliveira sarou depressa, e, apesar do meu zelo em visitá-lo, não me ofereceu a casa; limitou-se a vir ver-me no hotel. Respeitei-lhe os motivos; mas eles mesmos é que faziam reviver a antiga preocupação. Considerei que, além das razões de decoro, havia da parte dele um sentimento de ciúme, filho de um sentimento de amor, e que um e outro podiam ser a prova de um complexo de qualidades finas e grandes naquela mulher. Isto bastava a transtornar-me; mas a idéia de que a paixão dela não seria menor que a dele, o quadro desse casal que fazia uma só alma e pessoa, excitou em mim todos os nervos da inveja. Baldei esforços para ver se metia o pé na casa; cheguei a falar-lhe do boato que corria; ele sorria e tratava de outra coisa.
tolice, pois as duas mulheres eram nada menos que a mesmissima.
 
Vi-a trêstres semanas depois, indo visitar o Oliveira, que viera doente da cortecôrte. Subimos juntos na vésperavespera; no meio da serra, começou eleelle a sentir-se incomodadoincommodado; no alto estava febril. Acompanhei-o no carro até a casa, e não entrei, porque eleelle dispensou-me o incômodoincommodo. Mas no dia seguinte fui vel-loo, um pouco por amizade, outro pouco por avidez de conhecer a incógnitaincognita. Vi-a; era elaella, era a minha, era a únicaunica Adriana.
Acabou a estação de Petrópolis, e ele ficou. Creio que desceu em julho ou agosto. No fim do ano encontramo-nos casualmente; achei-o um pouco taciturno e preocupado. Vi-o ainda outras vezes, e não me pareceu diferente, a não ser que, além de taciturno, trazia na fisionomia uma longa prega de desgosto. Imaginei que eram efeitos da aventura, e, como não estou aqui para empulhar ninguém, acrescento que tive uma sensação de prazer. Durou pouco; era o demônio que trago em mim, e costuma fazer desses esgares de saltimbanco. Mas castiguei-o depressa, e pus no lugar dele o anjo, que também uso, e que se compadeceu do pobre rapaz, qualquer que fosse o motivo da tristeza.
 
Oliveira sarou depressa, e, apesarapezar do meu zelo em visitávisital-loo, não me ofereceuoffereceu a casa; limitou-se a vir ver-me no hotel. Respeitei-lhe os motivos; mas eleselles mesmos é que faziam reviver a antiga preocupaçãopreoccupação. Considerei que, além das razões de decoro, havia da parte deled'elle um sentimento de ciúmeciume, filho de um sentimento de amor, e que um e outro podiam ser a prova de um complexo de qualidades finas e grandes naquelan'aquella mulher. Isto bastava a transtornar-me; mas a idéiaidéa de que a paixão delad'ella não seria menor que a deled'elle, o quadro dessed'esse casal que fazia uma só alma e pessoa, excitou em mim todos os nervos da inveja. Baldei esforços para ver se metiamettia o pé na casa; cheguei a falarfallar-lhe do boato que corria; eleelle sorria e tratava de outra coisacousa.
Um vizinho dele, amigo nosso, contou-me alguma coisa, que me confirmou a suspeita de desgostos domésticos; mas foi ele mesmo quem me disse tudo, um dia, perguntando-lhe eu, estouvadamente, o que é que tinha que o mudara tanto.
 
Acabou a estação de PetrópolisPetropolis, e eleelle ficou. Creio que desceu em julho ou agosto. No fim do anoanno encontramoencontrámo-nos casualmente; achei-o um pouco taciturno e preocupadopreoccupado. Vi-o ainda outras vezes, e não me pareceu diferentedifferente, a não ser que, além de taciturno, trazia na fisionomiaphysionomia uma longa pregapréga de desgosto. Imaginei que eram efeitoseffeitos da aventura, e, como não estou aqui para empulhar ninguémninguem, acrescentoaccrescento que tive uma sensação de prazer. Durou pouco; era o demôniodemonio que trago em mim, e costuma fazer dessesd'esses esgares de saltimbanco. Mas castiguei-o depressa, e puspuz no lugarlogar deled'elle o anjo, que tambémtambem uso, e que se compadeceu do pobre rapaz, qualquer que fosse o motivo da tristeza.
— Que hei de ter? Imagina tu que comprei um bilhete de loteria, e nem tive, ao menos, o gosto de não tirar nada; tirei um escorpião.
 
Um vizinhovisinho deled'elle, amigo nosso, contou-me alguma coisacousa, que me confirmou a suspeita de desgostos domésticosdomesticos; mas foi eleelle mesmo quem me disse tudo, um dia, perguntando-lhe eu, estouvadamente, o que é que tinha que o mudaramudára tanto.
 
--Que hei de ter? Imagina tu que comprei um bilhete de loteria, e nem tive, ao menos, o gosto de não tirar nada; tirei um escorpião.
 
E, como eu franzisse a testa interrogativamente:
 
--Ah! se soubesses metade só das coisascousas que me têm acontecido! Tens tempo? Vamos aqui ao Passeio PúblicoPublico.
 
EntramosEntrámos no jardim, e metemomettemo-nos por uma das alamedas. Contou-me tudo. Gastou duas horas em desfiar um rosáriorosario infinito de misériasmiserias. Vi atravésatravez da narração duas índolesindoles incompatíveisincompativeis, unidas pelo amor ou pelo pecadopeccado, fartas uma da outra, mas condenadascondemnadas àá convivênciaconvivencia e ao ódioodio. EleElle nem podia deixádeixal-laa nem suportásupportal-laa. Nenhuma estima, nenhum respeito, alegria rara e impura; uma vida gorada.
 
--Gorada, repetia eleelle, gesticulando afirmativamenteaffirmativamente com a cabeça. Não tem que ver; a minha vida gorou. HásHas de lembrar-te dos nossos planos da academia, quando nos propúnhamospropunhamos, tu a ministro do Impérioimperio, eu da Justiçajustiça. PodesPódes guardar as duas pastas; não serei nada, nada. O ovo, que devia dar uma águiaaguia, não chega a dar um frango. Gorou completamente. Ha anoanno e meio que ando nisson'isso, e não acho saídasahida nenhuma; perdiperdia a energia...
 
Seis mesesmezes depois, encontrei-o aflitoafflicto e desvairado. Adriana deixara-o para ir estudar geometria com um estudante da antiga Escola Central. Tanto melhor, disse-lhe eu. Oliveira olhou para o chão envergonhado; despediu-se, e correu em procura delad'ella. Achou-a daíd'ahi a algumas semanas, disseram as últimasultimas um ao outro, e no fim reconciliaram-se. Comecei então a visitávisital-losos, com a idéiaidéa de os separar um do outro. ElaElla estava ainda bonita e fascinante; as maneiras eram finas e meigas, mas evidentemente de empréstimoemprestimo, acompanhadas de umas atitudesattitudes e gestos, cujo intuito latente era atrairattrahir-me e arrastar-me.
 
Tive medo e retraíretrahi-me. Não se mortificou; deitou forafóra a capa de renda, restituiu-se ao natural. Vi então que era ferrenha, manhosa, injusta, muita vez grosseira; em alguns lances notei-lhe uma nota de perversidade. Oliveira, nos primeiros tempos, para fazer-me crer que
mentira ou exageraraexagerára, suportavasupportava tudo rindo; era a vergonha da própriapropria fraqueza. Mas não pôde guardar a máscaramascara; elaella arrancou-lhalh'a um dia, sem piedade, denunciando as humilhações em que eleelle caíacahia, quando eu não estava presente. Tive nojo da mulher e pena do pobre- diabo. Convidei-o abertamente a deixádeixal-laa, eleelle hesitou, mas prometeuprometteu que sim.
 
--Realmente, não posso mais...
 
Combinamos tudo; mas no momento da separação, não pôde. ElaElla embebeu-lhe novamente os seus grandes olhos de touro e de basilisco, e destad'esta vez,--ó minhas queridas primas de Sapucaia! —, desta--d'esta vez para só deixádeixal-loo exaustoexhausto e morto.
 
 
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FIM DAS PRIMAS DE SAPUCAIA!
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