|obra=Anedota Pecuniária
|autor=Machado de Assis
|notas=Originalmente publicado em ''Gazeta de Notícias'', em 1883 e posteriormente compilado em ''[[Histórias sem data]]''.}}[[Categoria:Machado de Assis]]
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ANECDOTA PECUNIARIA
Chama-se Falcão o meu homem. NaqueleN'aquelle diadia— — catorzequatorze de abrilAbril de 1870 —1870— quem lhe entrasse em casa, àsás dez horas da noite, vêvel-loo-iahia passear na sala, em mangas de camisa, calça preta e gravata branca, resmungando, gesticulando, suspirando, evidentemente aflitoafflicto. ÀsÁs vezes, sentava-se; outras, encostava-se àá janelajanella, olhando para a praia, que era a da GamboaGambôa. Mas, em qualquer lugarlogar ou atitudeattitude, demorava-se pouco tempo.
— Fiz mal, dizia eleelle, muito mal. Tão minha amiga que elaella era! tão amorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal... Ao menos, que seja feliz!
Se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de crer; se descer a definir o preço, dez contos de réis, voltar-me-ãohão as costas com desprezo e indignação. Entretanto, basta ver este olhar felino, estes dois beiços, mestres de cálculocalculo, que, ainda fechados, parecem estar contando alguma coisacousa, para adivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro. Entendamo-nos: eleelle faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que eleelle podepóde dar, mas pelo que é em si mesmo! NinguémNinguem lhe vá falarfallar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem comendacommenda. Não se ganha dinheiro para esbanjáesbanjal-loo, dizia eleelle. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação. Vai muitas vezes àá burra, que está na alcova de dormir, com o únicounico fim de fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de títulostitulos. Outras vezes, por um requinte de erotismo pecuniáriopecuniario, contempla-os só de memória memoria. NesteN'este particular, tudo o que eu pudesse dizer, ficaria abaixo de uma palavra deled'elle mesmo, em 1857.
Já então milionáriomillionario, ou quasequasi, encontrou na rua dois meninos, seus conhecidos, que lhe perguntaram se uma nota de cinco mil- réis, que lhes dera um tio, era verdadeira. Corriam algumas notas falsas, e os pequenos lembraram-se dissod'isso em caminho. Falcão ia com um amigo. Pegou trêmulotremulo na nota, examinou-a bem, virou-a, revirou-a...
— É falsa? perguntou com impaciênciaimpaciencia um dos meninos.
— Não; é verdadeira.
— Dê cá, disseram ambos.
Falcão dobrou a nota vagarosamente, sem tirar-lhe os olhos de cima; depois, restituiu-a aos pequenos, e, voltando-se para o amigo, que esperava por eleelle, disse-lhe com a maior candura do mundo:
— Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto vervêr.
Era assim que eleelle amava o dinheiro, até àá contemplação desinteressada. Que outro motivo podia leváleval-loo a parar, diante das vitrinas dos cambistas, cinco, dez, quinze minutos, lambendo com os olhos os montes de libras e francos, tão arrumadinhos e amarelosamarellos? O mesmo sobressaltosobresalto com que pegou na nota de cinco mil- réis, era um rasgo sutilsubtil, era o terror da nota falsa. Nada aborrecia tanto, como os moedeiros falsos, não por serem criminosos, mas prejudiciaisprejudiciaes, por desmoralizaremdesmoralisarem o dinheiro bom.
A linguagem do Falcão valia um estudo. Assim é que, um dia, em 1864, voltando do enterro de um amigo, referiu o esplendorexplendor do préstitoprestito, exclamando com entusiasmoenthusiasmo: — “Pegavam«Pegavam no caixão trêstres mil contos!”» E, como um dos ouvintes não o entendesse logo, concluiu do espanto, que duvidava deled'elle, e discriminou a afirmaçãoaffirmação: — “Fulano«Fulano quatro quatrocentoscentos, Sicrano seiscentos... Sim, senhor, seiscentos; háha dois anosannos, quando desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos; mas suponhamossupponhamos quinhentos...”» E foi por diante, demonstrando, somandosommando e concluindo: — “Justamente«Justamente, trêstres mil contos!”»
Não era casado. Casar era botar dinheiro forafóra. Mas os anosannos passaram, e aos quarenta e cinco entrou a sentir uma certa necessidade moral, que não compreendeucomprehendeu logo, e era a saudade paterna. Não mulher, não parentes, mas um filho ou uma filha, se eleelle o tivesse, era como receber um patacão de ouro. Infelizmente, esse outro capital devia ter sido acumuladoaccumulado em tempo; não podia começácomeçal-loo a ganhar tão tarde. Restava a loteria; a loteria deu-lhe o prêmiopremio grande.
Morreu-lhe o irmão, e trêstres mesesmezes depois a cunhada, deixando uma filha de onze anosannos. EleElle gostava muito destad'esta e de outra sobrinha, filha de uma irmã viúvaviuva; dava-lhes beijos, quando as visitava; chegava mesmo ao delíriodelirio de levar-lhes, uma ou outra vez, biscoitos. Hesitou um pouco, mas, enfimemfim, recolheu a órfãorphã; era a filha cobiçada. Não cabia em si de contente; durante as primeiras semanas, quasequasi não saíasahia de casa, ao pé delad'ella, ouvindo-lhe históriashistorias e tolices.
Chamava-se JacintaJacintha, e não era bonita; mas tinha a voz melodiosa e os modos fagueiros. Sabia ler e escrever; começava a aprender músicamusica. Trouxe o piano consigocomsigo, o métodomethodo e alguns exercíciosexercicios; não pôde trazer o professor, porque o tio entendeu que era melhor ir praticando o que aprendera, e um dia... mais tarde... Onze anosannos, doze anosannos, treze anosannos, cada anoanno que passava era mais um vínculovinculo que atava o velho solteirão àá filha adotivaadoptiva, e vice-versa. Aos treze, JacintaJacintha mandava na casa; aos dezessetedezesete era verdadeira dona. Não abusou do domíniodominio; era naturalmente modesta, frugal, poupada.
— Um anjo! dizia o Falcão ao Chico Borges.
Este Chico Borges tinha quarenta anosannos, e era dono de um trapiche. Ia jogar com o Falcão, àá noite. JacintaJacintha assistia àsás partidas. Tinha então dezoito anosannos; não era mais bonita, mas diziam todos “que«que estava enfeitando muito”muito.» Era pequenina, e o trapicheiro adorava as mulheres pequeninas. Corresponderam-se, o namoro fez-se paixão.
— Vamos a elasellas, dizia o Chico Borges ao entrar, pouco depois de ave-marias.
As cartas eram o chapéu de sol dos doisdous namorados. Não jogavam a dinheiro; mas o Falcão tinha tal sedesêde ao lucro, que contemplava os própriosproprios tentos, sem valor, e contava-os de dez em dez minutos, para ver se ganhava ou perdia. Quando perdia, caíacahia-lhe o rosto numn'um desalento incurável incuravel, e eleelle recolhia-se pouco a pouco ao silênciosilencio. Se a sorte teimava em perseguiperseguil-loo, acabava o jogo, e levantava-se tão melancólicomelancolico e cego, que a sobrinha e o parceiro podiam apertar a mão, uma, duas, trêstres vezes, sem que eleelle visse coisacousa nenhuma.
Era isto em 1869. No princípioprincipio de 1870 Falcão propôspropoz ao outro uma venda de açõesacções. Não as tinha; mas farejou uma grande baixa, e contava ganhar de um só lance trinta a quarenta contos ao Chico Borges. Este respondeu-lhe finamente que andava pensando em oferecerofferecer-lhe a mesma coisa cousa. Uma vez que ambos queriam vender e nenhum comprar, podiam juntar-se e propor a venda a um terceiro. Acharam o terceiro, e fecharam o contratocontracto a sessenta dias. Falcão estava tão contente, ao voltar do negócionegocio, que o sóciosocio abriu-lhe o coração e pediu-lhe a mão de JacintaJacintha. Foi o mesmo que, se de repente, começasse a falarfallar turco. Falcão parou, embasbacado, sem entender. Que lhe desse a sobrinha? Mas então...
— Sim; confesso a vocêvossê que estimaria muito casar com elaella, e elaella... penso que tambémtambem estimaria casar comigo.
— Qual, nada! interrompeu o Falcão. Não, senhor; está muito criança, não consinto.
— Mas reflitareflicta...
— Não reflitoreflicto, não quero.
Chegou àá casa irritado e aterrado. A sobrinha afagou-o tanto para saber o que era, que eleelle acabou contando tudo, e chamando-lhe esquecida e ingrata. JacintaJacintha empalideceuempallideceu; amava os doisdous, e via-os tão dados, que não imaginou nunca esse contraste de afeiçõesaffeições. No quarto chorou àá larga; depois escreveu uma carta ao Chico Borges pedindo-lhe pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus CristoChristo, que não fizesse barulho nem brigasse com o tio; dizia-lhe que esperasse, e jurava-lhe um amor eterno.
Não brigaram os dois parceiros; mas as visitas foram naturalmente mais escassas e frias. JacintaJacintha não vinha àá sala, ou retirava-se logo. O terror do Falcão era enorme. EleElle amava a sobrinha com um amor de cão, que persegue e morde aos estranhosextranhos. Queria-a para si, não como homem, mas como pai. A paternidade natural dá forças para o sacrifíciosacrificio da separação; a paternidade deled'elle era de empréstimoemprestimo, e, talvez, por isso mesmo, mais egoístaegoista. Nunca pensara em perdêperdel-laa; agora, porém, eram trinta mil cuidados, janelasjanellas fechadas, advertênciasadvertencias àá preta, uma vigilânciavigilancia perpétuaperpetua, um espiar os gestos e os ditos, uma campanha de D. BartoloBartholo.
Entretanto, o sol, modelo de funcionáriosfunccionarios, continuou a servir pontualmente os dias, um a um, até chegar aos dois mesesmezes do prazo marcado para a entrega das açõesacções. Estas deviam baixar, segundo a previsão dos dois; mas as açõesacções, como as loterias e as batalhas, zombam dos cálculoscalculos humanos. NaqueleN'aquelle caso, além de zombaria, houve crueldade, porque nem baixaram, nem ficaram ao par; subiram até converter o esperado lucro de quarenta contos numan'uma perda de vinte.
Foi aqui que o Chico Borges teve uma inspiração de gêniogenio. Na vésperavespera, quando o Falcão, abatido e mudo, passeava na sala o seu desapontamento, propôspropoz eleelle custear todo o deficit_deficit_, se lhe dessedésse a sobrinha. Falcão teve um deslumbramento.
— Que eu... ?
— Isso mesmo, interrompeu o outro, rindo.
— Não, não...
Não quisquiz; recusou trêstres e quatro vezes. A primeira impressão forafôra de alegria, eram os dez contos na algibeira. Mas a idéiaidéa de separar-se de JacintaJacintha era insuportávelinsupportavel, e recusou. Dormiu mal. De manhã, encarou a situação, pesou as coisascousas, considerou que, entregando JacintaJacintha ao outro, não a perdia inteiramente, ao passo que os dez contos iam-se embora. E, depois, se elaella gostava deled'elle e eleelle delad'ella, por queporque razão separáseparal-losos? Todas as filhas casam-se, e os pais contentam-se de as vervêr felizes. Correu àá casa do Chico Borges, e chegaram a acordoaccordo.
— Fiz mal, muito mal, bradava eleelle na noite do casamento. Tão minha amiga que elaella era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha... Fiz mal, muito mal.
CessaraCessára o terror dos dez contos; começaracomeçára o fastio da solidão. Na manhã seguinte, foi visitar os noivos. JacintaJacintha não se limitou a regaláregalal-loo com um bom almoço, encheu-o de mimos e afagosaffagos; mas nem estes, nem o almoço lhe restituíramrestituiram a alegria. Ao contráriocontrario, a felicidade dos noivos entristeceu-o mais. Ao voltar para casa não achou a carinha meiga de JacintaJacintha. Nunca mais lhe ouviria as cantigas de menina e moça; não seria elaella quem lhe faria o chá, quem lhe traria, àá noite, quando eleelle quisessequizesse ler, o velho tomo ensebado do Saint_Saint-Clair das ilhasIlhas_, dádivadadiva de 1850.
— Fiz mal, muito mal...
Para remediar o mal feito, transferiu as cartas para a casa da sobrinha, e ia lá jogar, àá noitenoute, com o Chico Borges. Mas a fortuna, quando flagelaflagella um homem, corta-lhe todas as vazas. Quatro mesesmezes depois, os recémrecem-casados foram para a Europa; a solidão alargou-se de toda a extensão do mar. Falcão contava então cinqüentacincoenta e quatro anosannos. Já estava mais consolado do casamento de JacintaJacintha; tinha mesmo o plano de ir morar com eleselles, ou de graça, ou mediante uma pequena retribuição, que calculou ser muito mais econômicoeconomico do que a despesadespeza de viver só. Tudo se esboroou; eieil-loo outra vez na situação de oito anosannos antes, com a diferençadifferença que a sorte arrancaraarrancára-lhe a taça entre doisdous goles.
Vai senão quando cai-lhe outra sobrinha em casa. Era a filha da irmã viúvaviuva, que morreu e lhe pediu a esmola de tomar conta delad'ella. Falcão não prometeuprometteu nada, porquepor que um certo instintoinstincto o levava a não prometerprometter coisacousa nenhuma a ninguémninguem, mas a verdade é que recolheu a sobrinha, tão depressa a irmã fechou os olhos. Não teve constrangimento; ao contráriocontrario, abriu-lhe as portas de casa, com um alvoroço de namorado, e quasequasi abençoou a morte da irmã. Era outra vez a filha perdida.
— Esta háha de fechar-me os olhos, dizia eleelle consigocomsigo.
Não era fácilfacil. VirgíniaVirginia tinha dezoito anosannos, feições lindas e originaisoriginaes; era grande e vistosa. Para evitar que lhalh'a levassem, Falcão começou por onde acabara da primeira vez: — janelasjanellas cerradas, advertênciasadvertencias àá preta, raros passeios, só com eleelle e de olhos baixos. VirgíniaVirginia não se mostrou enfadada.— Nunca fui janelleira, dizia ella, e acho muito feio que uma moça viva com o sentido na rua. Outra cautella do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cincoenta annos para cima ou casados. Emfim, não cuidou mais da baixa das acções. E tudo isso era
Outra cautela do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cinqüenta anos para cima ou casados. Enfim, não cuidou mais da baixa das ações. E tudo isso era desnecessáriodesnecessario, porque a sobrinha não cuidava realmente senão deled'elle e da casa. ÀsÁs vezes, como a vista do tio começava a diminuir muito, lia-lhe elaella mesma alguma páginapagina do Saint_Saint-Clair das ilhasIlhas_. Para suprirsupprir os parceiros, quando eleselles faltavam, aprendeuapprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava de ganhar, deixava-se sempre perder. Ia mais longe: quando perdia muito, fingia-se zangada ou triste, com o únicounico fim de dar ao tio um acréscimoaccrescimo de prazer. EleElle ria então àá larga, mofava delad'ella, achava-lhe o nariz comprido, pedia um lenço para enxugar-lhe as lágrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez minutos, e se algum caía no chão (eram grãos de milho) descia a vela para apanhá-lo.▼
enxugar-lhe as lagrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez minutos, e se algum cahia no chão (eram grãos de milho) descia a vela para apanhal-o.
No fim de tres mezes, Falcão adoeceu. A molestia não foi grave nem longa; mas o terror da morte apoderou-se-lhe do espirito, e foi então que se pôde vêr toda a affeição que elle tinha á moça. Cada visita que se lhe chegava, era recebida com rispidez, ou pelo menos com sequidão.
— Nunca fui janeleira, dizia ela, e acho muito feio que uma moça viva com o sentido na rua.
Os mais intimos padeciam mais, porque elle dizia-lhes brutalmente que ainda não era cadaver, que a carniça ainda estava viva, que os urubús enganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virginia achou n'elle um só instante de máu humor. Falcão obedecia-lhe em tudo, com uma passividade
de creança, e quando ria, é porque ella o fazia rir.
— Vamos, tome o remédioremedio, deixe-se disso, vosmecê agora é meu filho... ▼
▲Outra cautela do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cinqüenta anos para cima ou casados. Enfim, não cuidou mais da baixa das ações. E tudo isso era desnecessário, porque a sobrinha não cuidava realmente senão dele e da casa. Às vezes, como a vista do tio começava a diminuir muito, lia-lhe ela mesma alguma página do Saint-Clair das ilhas. Para suprir os parceiros, quando eles faltavam, aprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava de ganhar, deixava-se sempre perder. Ia mais longe: quando perdia muito, fingia-se zangada ou triste, com o único fim de dar ao tio um acréscimo de prazer. Ele ria então à larga, mofava dela, achava-lhe o nariz comprido, pedia um lenço para enxugar-lhe as lágrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez minutos, e se algum caía no chão (eram grãos de milho) descia a vela para apanhá-lo.
Falcão sorria e bebia a droga. ElaElla sentava-se ao pé da cama, contando-lhe históriashistorias, espiava o relógiorelogio para dar-lhe os caldos ou a galinhagallinha, lia-lhe o sempiterno Saint_Saint- ClairClair_. VeioVeiu a convalescençaconvalecença. Falcão saiusahiu a alguns passeios, acompanhado de VirgíniaVirginia. A prudênciaprudencia com que esta, dando-lhe o braço, ia mirando as pedras da rua, com medo de encarar os olhos de algum homem, encantavaencantavam o Falcão. ▼
No fim de três meses, Falcão adoeceu. A moléstia não foi grave nem longa; mas o terror da morte apoderou-se-lhe do espírito, e foi então que se pôde ver toda a afeição que ele tinha à moça. Cada visita que se lhe chegava, era recebida com rispidez, ou pelo menos com sequidão. Os mais íntimos padeciam mais, porque ele dizia-lhes brutalmente que ainda não era cadáver, que a carniça ainda estava viva, que os urubus enganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virgínia achou nele um só instante de mau humor. Falcão obedecia-lhe em tudo, com uma passividade de criança, e quando ria, é porque ela o fazia rir.
— Esta háha de fechar-me os olhos, repetia eleelle consigocomsigo mesmo. Um dia, chegou a pensápensal- loo em voz alta: — Não é verdade que você me háha de fechar os olhos? ▼
▲— Vamos, tome o remédio, deixe-se disso, vosmecê agora é meu filho...
▲Falcão sorria e bebia a droga. Ela sentava-se ao pé da cama, contando-lhe histórias, espiava o relógio para dar-lhe os caldos ou a galinha, lia-lhe o sempiterno Saint-Clair. Veio a convalescença. Falcão saiu a alguns passeios, acompanhado de Virgínia. A prudência com que esta, dando-lhe o braço, ia mirando as pedras da rua, com medo de encarar os olhos de algum homem, encantava o Falcão.
▲— Esta há de fechar-me os olhos, repetia ele consigo mesmo. Um dia, chegou a pensá-lo em voz alta: — Não é verdade que você me há de fechar os olhos?
— Não diga tolices!
ConquantoComquanto estivesse na rua, eleelle parou, apertou-lhe muito as mãos, agradecido, não achando que dizer. Se tivesse a faculdade de chorar, ficaria provavelmente com os olhos úmidoshumidos. Chegando àá casa,? VirgíniaVirginia correu ao quarto para reler uma carta que lhe entregaraentregára na vésperavespera uma D. Bernarda, amiga de sua mãemãi. Era datada de Nova New-York, e trazia por únicaunica assinaturaassignatura este nome: Reginaldo. Um dos trechos dizia assim: «Vou d'aqui no paquete de 25. Espera-me sem falta. Não sei ainda se irei ver-te logo ou não. Teu tio deve lembrar-se de mim; viu-me em casa de meu tio Chico Borges, no dia do casamento de tua prima...»
Quarenta dias depois, desembarcava este Reginaldo, vindo de Nova New-York, com trinta anosannos feitos e trezentos mil dólaresdollars ganhos. Vinte e quatro horas depois visitou o Falcão, que o recebeu apenas com polidez. Mas o Reginaldo era fino e práticopratico; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe os prodígiosprodigios de negócionegocio nos Estados -Unidos, as hordas de moedas que corriam de um a outro dos doisdous oceanos. Falcão ouvia deslumbrado, e pedia mais. Então o outro fez-lhe uma extensa computação das companhias e bancos, açõesacções, saldos de orçamento públicopublico, riquezas particulares, receita municipal de Nova York; descreveu-lhe os grandes palácios do comércio...▼
: Vou daqui no paquete de 25. Espera-me sem falta. Não sei ainda se irei ver-te logo ou não. Teu tio deve lembrar-se de mim; viu-me em casa de meu tio Chico Borges, no dia do casamento de tua prima...
riquezas particulares, receita municipal de New-York; descreveu-lhe os grandes palacios do commercio...
— Realmente, é um grande paíspaiz, dizia o Falcão, de quando em quando. E depois de trêstres minutos de reflexão: — Mas, pelo que o senhor conta, só háha ouro? ▼
▲Quarenta dias depois, desembarcava este Reginaldo, vindo de Nova York, com trinta anos feitos e trezentos mil dólares ganhos. Vinte e quatro horas depois visitou o Falcão, que o recebeu apenas com polidez. Mas o Reginaldo era fino e prático; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe os prodígios de negócio nos Estados Unidos, as hordas de moedas que corriam de um a outro dos dois oceanos. Falcão ouvia deslumbrado, e pedia mais. Então o outro fez-lhe uma extensa computação das companhias e bancos, ações, saldos de orçamento público, riquezas particulares, receita municipal de Nova York; descreveu-lhe os grandes palácios do comércio...
— Ouro só, não; háha muita prata e papel; mas alialli papel e ouro é a mesma coisacousa. E moedas de outras nações? Hei de mostrar-lhe uma coleçãocollecção que trago. Olhe; para vervêr o que é aquiloaquillo basta pôr os olhos em mim. Fui para lá pobre, com vinte e trêstres anosannos; no fim de sete anosannos, trago seiscentos contos. ▼
▲— Realmente, é um grande país, dizia o Falcão, de quando em quando. E depois de três minutos de reflexão: — Mas, pelo que o senhor conta, só há ouro?
Falcão estremeceu: — Eu, com a sua idadeedade, confessou eleelle, mal chegaria a cem. ▼
▲— Ouro só, não; há muita prata e papel; mas ali papel e ouro é a mesma coisa. E moedas de outras nações? Hei de mostrar-lhe uma coleção que trago. Olhe; para ver o que é aquilo basta pôr os olhos em mim. Fui para lá pobre, com vinte e três anos; no fim de sete anos, trago seiscentos contos.
Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que precisava de duas ou trêstres semanas, para lhe contar os milagres do dollar. ▼
▲Falcão estremeceu: — Eu, com a sua idade, confessou ele, mal chegaria a cem.
▲Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que precisava de duas ou três semanas, para lhe contar os milagres do dollar.
— Como é que o senhor lhe chama?
— Talvez não acredite que nunca vi essa moeda.
Reginaldo tirou do bolso do coletecollete um dollar e mostrou-lholh'o. Falcão, antes de lhe pôr a mão, agarrou-o com os olhos. Como estava um pouco escuro, levantou-se e foi até àá janelajanella, para examináexaminal-loo bem —bem— de ambos os lados; depois restituiu-o, gabando muito o desenho e a cunhagem, e acrescentando accrescentando que os nossos antigos patacões eram bem bonitos.
As visitas repetiram-se. Reginaldo assentou de pedir a moça. Esta, porém, disse-lhe que era preciso ganhar primeiro as boas graças do tio; não casaria contra a vontade deled'elle. Reginaldo não desanimou. Tratou de redobrar as finezas; abarrotou o tio de dividendos fabulosos.
— A propósitoproposito, o senhor nunca me mostrou a sua coleçãocollecção de moedas, disse-lhe um dia o Falcão.
— Vá amanhã àá minha casa.
Falcão foi. Reginaldo mostrou-lhe a coleçãocollecção metidamettida numn'um móvelmovel envidraçado por todos os lados. A surpresasorpreza de Falcão foi extraordináriaextraordinaria; esperava uma caixinha com um exemplar de cada moeda, e achou montes de ouro, de prata, de bronze e de cobre. Falcão mirou-as primeiro de um olhar universal e coletivocollectivo; depois, começou a fixáfixal-lasas especificamenteespecificadamente. Só conheceu as libras, os dollars e os francos; mas o Reginaldo nomeou-as todas: florins, coroascorôas, rublos, dracmasdrachmas, piastras, pesos, rupias, toda a numismáticanumismatica do trabalho, concluiu eleelle poeticamente.
— Mas que paciênciapaciencia a sua para ajuntar tudo isto! disse eleelle.
— Não fui eu que ajuntei, replicou o Reginaldo; a coleçãocollecção pertencia ao espólioespolio de um sujeito de FiladélfiaPhiladelphia. Custou-me uma bagatelabagatella: — cinco mil dollars.
Na verdade, valia mais. Falcão saiusahiu dalid'alli com a coleçãocollecção na alma; faloufallou delad'ella àá sobrinha, e, imaginariamente, desarrumou e tornou a arrumar as moedas, como um amante desgrenha a amante para toucátoucal-laa outra vez. De noite sonhou que era um florim, que um jogador o deitava àá mesa do lansquenet_lansquenet_, e que eleelle trazia consigocomsigo para a algibeira do jogador mais de duzentos florins. De manhã, para consolar-se, foi contemplar as própriasproprias moedas que tinha na burra; mas não se consolou nada. O melhor dos bens é o que se não possuipossue.
DaliD'alli a dias, estando em casa, na sala, pareceu-lhe ver uma moeda no chão. Inclinou-se a apanháapanhal-laa; não era moeda, era uma simples carta. Abriu a carta distraidamentedistrahidamente e leu-a espantado: era de Reginaldo a Virgínia.Virginia...
— Basta! interrompe-me o leitor; adivinho o resto. VirgíniaVirginia casou com o Reginaldo, as moedas passaram àsás mãos do Falcão, e eram falsas ...
Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral que, para castigo do nosso homem, fossem falsas; mas, ai de mim! eu não sou SênecaSeneca, não passo de um SuetônioSuetonio que contaria dez vezes a morte de CésarCezar, se eleelle ressuscitasseresussitasse dez vezes, pois não tornaria àá vida, senãose não para tornar ao impérioimperio.
[[Categoria:Machado de Assis]]
FIM DE UMA ANECDOTA PECUNIARIA.
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