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ANECDOTA PECUNIARIA
 
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— Fiz mal, dizia elle, muito mal. Tão minha amiga que ella era! tão amorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal... Ao menos, que seja feliz!
 
Se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de crer; se descer a definir o preço, dez contos de réis, voltar-me-hão as costas com desprezo e indignação. Entretanto, basta ver este olhar felino, estes dois beiços, mestres de calculo, que,
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ainda fechados, parecem estar contando alguma cousa, para adivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro. Entendamo-nos: elle faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que elle póde dar, mas pelo que é em si mesmo! Ninguem lhe vá fallar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem commenda. Não se ganha dinheiro para esbanjal-o, dizia elle. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação. Vai muitas vezes á burra, que está na alcova de dormir, com o unico fim de fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de titulos. Outras vezes, por um requinte de erotismo pecuniario, contempla-os só de
memoria. N'este particular, tudo o que eu pudesse dizer, ficaria abaixo de uma palavra d'elle mesmo, em 1857.
 
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— É falsa? perguntou com impaciencia um dos meninos.
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— Não; é verdadeira.
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Era assim que elle amava o dinheiro, até á contemplação desinteressada. Que outro motivo podia leval-o a parar, diante das vitrinas dos cambistas, cinco, dez, quinze minutos, lambendo com os olhos os montes de libras e francos, tão arrumadinhos e amarellos? O mesmo sobresalto com que pegou na nota de cinco mil réis, era um rasgo subtil, era o terror da nota falsa. Nada aborrecia tanto, como os moedeiros falsos, não por serem criminosos, mas prejudiciaes, por desmoralisarem o dinheiro bom.
 
A linguagem do Falcão valia um estudo. Assim é que, um dia, em 1864, voltando do enterro de um amigo, referiu o explendor do prestito, exclamando com enthusiasmo:— «Pegavam no caixão tres mil contos!» E, como um dos ouvintes não o entendesse logo, concluiu do espanto, que duvidava d'elle, e discriminou a affirmação:— «Fulano quatro
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centos, Sicrano seiscentos... Sim, senhor, seiscentos; ha dois annos, quando desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos; mas supponhamos quinhentos...» E foi por diante, demonstrando, sommando e concluindo:— «Justamente, tres mil contos!»
 
Não era casado. Casar era botar dinheiro fóra. Mas os annos passaram, e aos quarenta e cinco entrou a sentir uma certa necessidade moral, que não comprehendeu logo, e era a saudade paterna. Não mulher, não parentes, mas um filho ou uma filha, se elle o tivesse, era como receber um patacão de ouro. Infelizmente, esse outro capital devia ter sido accumulado em tempo; não podia começal-o a ganhar tão tarde. Restava a loteria; a loteria deu-lhe o premio grande.
 
Morreu-lhe o irmão, e tres mezes depois a cunhada, deixando uma filha de onze annos. Elle gostava muito d'esta e de outra sobrinha, filha de uma irmã viuva; dava-lhes beijos, quando as visitava; chegava mesmo ao delirio de levar-lhes, uma ou outra vez, biscoitos. Hesitou um pouco, mas, emfim, recolheu a orphã; era a filha cobiçada. Não cabia em si de contente; durante as primeiras semanas, quasi não sahia de casa, ao pé d'ella, ouvindo-lhe historias e tolices.
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Chamava-se Jacintha, e não era bonita; mas tinha a voz melodiosa e os modos fagueiros. Sabia ler e escrever; começava a aprender musica. Trouxe o piano comsigo, o methodo e alguns exercicios; não pôde trazer o professor, porque o tio entendeu que era melhor ir praticando o que aprendera, e um dia... mais tarde... Onze annos, doze annos, treze annos, cada anno que passava era mais um vinculo que atava o velho solteirão á filha adoptiva, e vice-versa. Aos treze, Jacintha mandava na casa; aos dezesete era verdadeira dona. Não abusou do dominio; era
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— Vamos a ellas, dizia o Chico Borges ao entrar, pouco depois de ave-marias.
 
As cartas eram o chapéu de sol dos dous namorados. Não jogavam a dinheiro; mas o Falcão tinha
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tal sêde ao lucro, que contemplava os proprios tentos, sem valor, e contava-os de dez em dez minutos, para ver se ganhava ou perdia. Quando perdia, cahia-lhe o rosto n'um desalento
incuravel, e elle recolhia-se pouco a pouco ao silencio. Se a sorte teimava em perseguil-o, acabava o jogo, e levantava-se tão melancolico e cego, que a sobrinha e o parceiro podiam apertar a mão, uma, duas, tres vezes, sem que elle visse cousa nenhuma.
 
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Foi o mesmo que, se de repente, começasse a fallar turco. Falcão parou, embasbacado, sem entender. Que lhe desse a sobrinha? Mas então...
 
— Sim; confesso a vossê que estimaria muito
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casar com ella, e ella... penso que tambem estimaria casar comigo.
 
— Qual, nada! interrompeu o Falcão. Não, senhor; está muito criança, não consinto.
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Chegou á casa irritado e aterrado. A sobrinha afagou-o tanto para saber o que era, que elle acabou contando tudo, e chamando-lhe esquecida e ingrata. Jacintha empallideceu; amava os dous, e via-os tão dados, que não imaginou nunca esse contraste de affeições. No quarto chorou á larga; depois escreveu uma carta ao Chico Borges pedindo-lhe pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Christo, que não fizesse barulho nem brigasse com o tio; dizia-lhe que esperasse, e jurava-lhe um amor eterno.
 
Não brigaram os dois parceiros; mas as visitas foram naturalmente mais escassas e frias. Jacintha não vinha á sala, ou retirava-se logo. O terror do Falcão era enorme. Elle amava a sobrinha com um amor de cão, que persegue e morde aos extranhos. Queria-a para si, não como homem, mas como pai. A paternidade natural dá forças para o sacrificio da separação; a paternidade d'elle era de emprestimo, e, talvez, por isso mesmo, mais egoista. Nunca
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pensara em perdel-a; agora, porém, eram trinta mil cuidados, janellas fechadas, advertencias á preta, uma vigilancia perpetua, um espiar os gestos e os ditos, uma campanha de D. Bartholo.
 
Entretanto, o sol, modelo de funccionarios, continuou a servir pontualmente os dias, um a um, até chegar aos dois mezes do prazo marcado para a entrega das acções. Estas deviam baixar, segundo a previsão dos dois; mas as acções, como as loterias e as batalhas, zombam dos calculos humanos. N'aquelle caso, além de zombaria, houve crueldade, porque nem baixaram, nem ficaram ao par; subiram até converter o esperado lucro de quarenta contos n'uma perda de vinte.
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— Não, não...
 
Não quiz; recusou tres e quatro vezes. A primeira impressão fôra de alegria, eram os dez contos na algibeira. Mas a idéa de separar-se de Jacintha
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era insupportavel, e recusou. Dormiu mal. De manhã, encarou a situação, pesou as cousas, considerou que, entregando Jacintha ao outro, não a perdia inteiramente, ao passo que os dez contos iam-se embora. E, depois, se ella gostava d'elle e elle d'ella, porque razão separal-os? Todas as filhas casam-se, e os pais contentam-se de as vêr felizes. Correu á casa do Chico Borges, e chegaram a accordo.
 
— Fiz mal, muito mal, bradava elle na noite do casamento. Tão minha amiga que ella era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha... Fiz mal, muito mal.
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— Fiz mal, muito mal...
 
Para remediar o mal feito, transferiu as cartas
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para a casa da sobrinha, e ia lá jogar, á noute, com o Chico Borges. Mas a fortuna, quando flagella um homem, corta-lhe todas as vazas. Quatro mezes depois, os recem-casados foram para a Europa; a solidão alargou-se de toda a
extensão do mar. Falcão contava então cincoenta e quatro annos. Já estava mais consolado do casamento de Jacintha; tinha mesmo o plano de ir morar com elles, ou de graça, ou mediante uma pequena retribuição, que calculou ser muito mais economico do que a despeza de viver só. Tudo
se esboroou; eil-o outra vez na situação de oito annos antes, com a differença que a sorte arrancára-lhe a taça entre dous goles.
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— Esta ha de fechar-me os olhos, dizia elle comsigo.
 
Não era facil. Virginia tinha dezoito annos, feições
Não era facil. Virginia tinha dezoito annos, feições lindas e originaes; era grande e vistosa. Para evitar que lh'a levassem, Falcão começou por onde acabara da primeira vez:— janellas cerradas, advertencias á preta, raros passeios, só com elle e de olhos baixos. Virginia não se mostrou enfadada.— Nunca fui janelleira, dizia ella, e acho muito feio que uma moça viva com o sentido na rua. Outra cautella do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cincoenta annos para cima ou casados. Emfim, não cuidou mais da baixa das acções. E tudo isso era
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Não era facil. Virginia tinha dezoito annos, feições lindas e originaes; era grande e vistosa. Para evitar que lh'a levassem, Falcão começou por onde acabara da primeira vez:— janellas cerradas, advertencias á preta, raros passeios, só com elle e de olhos baixos. Virginia não se mostrou enfadada.— Nunca fui janelleira, dizia ella, e acho muito feio que uma moça viva com o sentido na rua. Outra cautella do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cincoenta annos para cima ou casados. Emfim, não cuidou mais da baixa das acções. E tudo isso era
desnecessario, porque a sobrinha não cuidava realmente senão d'elle e da casa. Ás vezes, como a vista do tio começava a diminuir muito, lia-lhe ella mesma alguma pagina do _Saint-Clair das Ilhas_. Para supprir os parceiros, quando elles faltavam, apprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava de ganhar, deixava-se sempre perder. Ia mais longe: quando perdia muito, fingia-se zangada ou triste, com o unico fim de dar ao tio um accrescimo de prazer. Elle ria então á larga, mofava d'ella, achava-lhe o nariz comprido, pedia um lenço para
enxugar-lhe as lagrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez minutos, e se algum cahia no chão (eram grãos de milho) descia a vela para apanhal-o.
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No fim de tres mezes, Falcão adoeceu. A molestia não foi grave nem longa; mas o terror da morte apoderou-se-lhe do espirito, e foi então que se pôde vêr toda a affeição que elle tinha á moça. Cada visita que se lhe chegava, era recebida com rispidez, ou pelo menos com sequidão.
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Falcão sorria e bebia a droga. Ella sentava-se ao pé da cama, contando-lhe historias, espiava o relogio para dar-lhe os caldos ou a gallinha, lia-lhe o sempiterno _Saint-Clair_. Veiu a convalecença. Falcão sahiu a alguns passeios, acompanhado de Virginia. A prudencia com que esta, dando-lhe o braço, ia mirando as pedras da rua, com medo de encarar os olhos de algum homem, encantavam o Falcão.
 
— Esta ha de fechar-me os olhos, repetia elle comsigo mesmo. Um dia, chegou a pensal-o em voz
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alta:— Não é verdade que você me ha de fechar os olhos?
 
— Não diga tolices!
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Comquanto estivesse na rua, elle parou, apertou-lhe muito as mãos, agradecido, não achando que dizer. Se tivesse a faculdade de chorar, ficaria provavelmente com os olhos humidos. Chegando á casa? Virginia correu ao quarto para reler uma carta que lhe entregára na vespera uma D. Bernarda, amiga de sua mãi. Era datada de New-York, e trazia por unica assignatura este nome: Reginaldo. Um dos trechos dizia assim: «Vou d'aqui no paquete de 25. Espera-me sem falta. Não sei ainda se irei ver-te logo ou não. Teu tio deve lembrar-se de mim; viu-me em casa de meu tio Chico Borges, no dia do casamento de tua prima...»
 
Quarenta dias depois, desembarcava este Reginaldo, vindo de New-York, com trinta annos feitos e trezentos mil dollars ganhos. Vinte e quatro horas depois visitou o Falcão, que o recebeu apenas com polidez. Mas o Reginaldo era fino e pratico; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe os prodigios de negocio nos Estados-Unidos, as hordas de moedas que corriam de um a outro dos dous oceanos. Falcão ouvia deslumbrado, e pedia
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mais. Então o outro fez-lhe uma extensa computação das companhias e bancos, acções, saldos de orçamento publico,
riquezas particulares, receita municipal de New-York; descreveu-lhe os grandes palacios do commercio...
 
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— Talvez não acredite que nunca vi essa moeda.
 
Reginaldo tirou do bolso do collete um dollar e mostrou-lh'o. Falcão, antes de lhe pôr a mão, agarrou-
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o com os olhos. Como estava um pouco escuro, levantou-se e foi até á janella, para examinal-o bem— de ambos os lados; depois restituiu-o, gabando muito o desenho e a cunhagem, e
accrescentando que os nossos antigos patacões eram bem bonitos.
 
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Falcão foi. Reginaldo mostrou-lhe a collecção mettida n'um movel envidraçado por todos os lados. A sorpreza de Falcão foi extraordinaria; esperava uma caixinha com um exemplar de cada moeda, e achou montes de ouro, de prata, de bronze e de cobre. Falcão mirou-as primeiro de um
olhar universal e collectivo; depois, começou a fixal-as especificadamente. Só conheceu as libras, os dollars e os francos; mas o Reginaldo nomeou-as todas: florins, corôas, rublos, drachmas, piastras, pesos, rupias, toda a numismatica do trabalho, concluiu elle poeticamente.
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— Mas que paciencia a sua para ajuntar tudo isto! disse elle.
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— Basta! interrompe-me o leitor; adivinho o resto. Virginia casou com o Reginaldo, as moedas passaram ás mãos do Falcão, e eram falsas...
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Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral que, para castigo do nosso homem, fossem falsas; mas, ai de mim! eu não sou Seneca, não passo de um Suetonio que contaria dez vezes a morte de Cezar, se elle resussitasse dez vezes, pois não tornaria á vida, se não para tornar ao imperio.