Encarnação (José de Alencar)/VII: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:Encarnação (José de Alencar)|Capítulo 07]]
 
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Desde aquele dia, que se pode chamar de sua conversão, Amália ocupou-se com a casa vizinha, que
dantes não lhe merecia a menor atenção.
 
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Agradava-lhe a chácara, o edifício, as árvores. Achava-lhes alguma coisa de particular, embora não
tivessem realmente de notável senão a solidão e o silêncio que os cercavam.
 
Acompanhava os movimentos da habitação. Ligava aos mais casuais e ordinários alguma significação.
Uma janela que se abria, um rumor qualquer, eram como o gesto ou a palavra do edifício, que para ela tinha uma
vida, uma história, uma individualidade.
 
Por Hermano, Amália sentia um indefinível respeito. Parecia-lhe que via nele pela primeira vez um
homem,. bem diverso da gente que povoava as salas e ruas. Nesse habitava uma alma; e era uma alma superior
ao mundo, que tinha o seu mundo em si.
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Ela, que dias antes ria do espiritualismo de Henrique Teixeira, a propósito do amigo, enlevou-se depois
numa ideologia ainda mais abstrata; e achava simples, naturais, evidentes, os fatos que sua imaginação fantasiava.
Julgara a princípio uma demência, essa ilusão em que vivia Hermano. Entretanto que exagerava agora
aquele fenômeno moral, e atribula uma intenção misteriosa aos menores incidentes.
 
Por quem Amália, porém, mais se interessava era pela pessoa que já não existia: pela mulher que
Hermano amava. Ela a considerava já como uma irmã sua; evocava a sua imagem; falava-lhe, e ficava contente
de vê-la feliz por ter inspirado ao marido aquele amor indelével.
 
Avivava-se-lhe o pesar de não a ter conhecido, e de não lembrar-se de suas feições. Desejava tanto
contemplar-lhe a beleza, ainda que fosse de memória! Hermano possuía necessariamente um retrato fiel de sua
Julieta. Que não daria ela para vê-lo?
 
Essa mulher que havia merecido um amor tão puro, completamente desprendido dos interesses e misérias
sociais; que expressão, que encanto especial, que magia celeste possuía a sua beleza!
Às vezes Amália tinha uma vaga reminiscência
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da alvura deslumbrante de sua tez; do brilho sereno dos
olhos; da suave inflexão do talhe.
 
E insensivelmente comparava-se a esse modelo; e sorria-se com desvanecimento, porque achava em si
uns traços de semelhança.
 
A sociedade começou a mostrar-se à moça por um novo aspecto.
 
As futilidades brilhantes que dantes a alegravam e que ela chamava as flores da vida, tornaram-se para
seu espírito mais calmo, flores do vento, rosas efêmeras e sem perfumes; e foi assim que a pouco e pouco se
isolou do mundo. Sentia um tédio indefinível pelos divertimentos, e só achava prazer na solidão.
O Sr. Veiga havia colhido acerca de Henrique Teixeira boas informações. Era médico de talento e
podia contar com um brilhante futuro, se não lhe faltasse a qualidade preciosa de saber-se apresentar.
Essa qualidade não é tão comum como se pensa; o que se encontra a cada passo e em todas as profissões
é o abuso dela, o vício muito conhecido com o nome de charlatanismo. Não se trata, porém, desse grosseiro
arremedo, que está ao alcance de qualquer sujeito desembaraçado, ainda mesmo ignorante e medíocre.
Os processos e fórmulas do charlatanismo já
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se aperfeiçoaram de tal modo, que os adeptos não carecem
mais de gênio inventivo; tudo está feito, desde o anúncio até a celebridade artificial.
 
Aquele que precisa do petrecho completo, médico, advogado ou artista, não tem mais do que pagar.
O que faltava a Henrique Teixeira não era pois essa fanqueria a que o seu caráter não se prestava; era
sim a verdadeira e fina arte social que ensina o homem a pôr em relevo o seu merecimento e atenuar os seus
defeitos, sem hipocrisia, unicamente pela simples reserva e discrição.
 
Os painéis dos melhores mestres carecem de uma posição favorável para mostrarem todas as suas
belezas; colocados contra a luz ou de esguelha desmerecem completamente e confundem-se com qualquer pintura.
Assim são os homens na sociedade A atitude é tudo: quase sempre decide de uma carreira.
 
O Sr. Veiga era homem prático e muito conhecedor do seu mundo. Apreciou pois no justo valor a
observação do amigo que lhe prestava esta informação; mas também sabia ele que a riqueza supre perfeitamente
na sociedade a virtude, o talento, o saber, e até a afeição.
 
O marido de Amália com duzentos contos
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de réis de dote, e o dobro em perspectiva, não precisava de
apresentar-se; estava apresentado pela sua fortuna. Tinha um pedestal; todos o haviam de ver. Nenhuma
necessidade teria ele de insinuar-se, de agradar por suas maneiras, quando podia impor-se. Que melhor anúncio
e mais pomposo elogio do que um lindo carro tirado por formosa parelha de cavalos do Cabo, a percorrer as ruas
da cidade e a excitar a atenção pública?
 
Em conclusão, o Sr. Veiga calculou que o Dr. Henrique Teixeira lhe convinha para genro, especialmente
pela circunstância mui importante de mostrar Amália por ele uma inclinação decidida.
 
Depois da noite da apresentação, o médico fizera à família a visita de rigor; e nessa ocasião ainda
Amália o acolhera com a maior afabilidade, insistindo para que não faltasse às partidas. Além disso D. Felícia,
que se incumbira de sondar as disposições da filha, não teve necessidade de usar de sua diplomacia. A moça,
espontaneamente e sem reticências, manifestou a impressão agradável que o médico deixara em seu ânimo.
À vista disso não restava senão entabular a negociação que o Sr. Veiga queria terminar logo e de pronto
com a decisão que punha em suas transações. D. Felícia, porém, foi de opinião que
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se deixasse as coisas seguirem
o seu curso natural, facilitando-se apenas o seu casamento.
 
Este último alvitre prevaleceu. O Sr. Veiga pagou a visita ao Dr. Henrique Teixeira, e convidou-o para
o jantar de família, combinação lembrada pela mulher para introduzir na intimidade da casa o suposto pretendente
que não era realmente senão um pretendido.
 
O doutor foi assíduo às partidas. Amália continuou a distingui-lo com uma atenção especial, deleitando-se
na sua conversa. Falavam acerca de Hermano; a moça interrogava a miúdo e ouvia com avidez.
Não precisou o médico de grande perspicácia para conhecer que esse interesse tão vivo da moça
denunciava uma afeição nascente, mas profunda. Hermano ainda ignorava naturalmente; mas quando viesse a
conhecê-la poderia ele partilhá-la?
 
Henrique era um tanto fisiologista. Ele acreditava que a natureza amante e apaixonada de Hermano
carecia de uma forte expressão de afeto; e por isso revivia Julieta, para adorá-la. Desde, porém, que outra mulher
o impressionasse, ele transportaria aquela adoração para o novo ídolo e continuaria neste o mesmo amor romanesco.
E que mulher estava mais nas condições de causar essa impressão viva do que Amália, cuja beleza
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luminosa e esplêndida raiava dentro d´ alma como uma aurora de amor?
 
O médico afagava esta esperança. Ele compreendia a necessidade de subtrair o amigo à constante
preocupação que lhe consumia parte da vida. Esse estado em todo caso não era natural; cumpria que cessasse.
Para isso o primeiro passo era aproximar Hermano da mulher, que o podia salvar.
 
Entretanto, parecendo a D. Felícia muito lenta a marcha dos acontecimentos, resolveu ela provocar
uma explicação. Mandou chamar o médico para consultá-lo sobre a saúde da filha, cuja mudança já a inquietava.
Expôs o desejo que ela e o marido tinham de ver Amália casada. Descreveu o tipo do noivo que
preferiam; e apesar de sua modéstia Teixeira foi obrigado a rever-se naquele retrato físico e moral, como em um
espelho do melhor aço. Finalmente rematou dando ela uma consulta matrimonial ao médico, em vez da consulta
profissional que devia pedir a este.
 
-- Amália gosta de alguém, doutor. Tenho a certeza.
 
-- É natural, D. Felícia, e até muito provável.
 
-- E o senhor sabe quem é?
 
-- Não devia entrar em assunto tão delicado;
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mas a sua confiança, minha senhora, a estima que consagro
a toda a sua família, e o desejo de concorrer para a felicidade de duas pessoas que tanto merecem impõe-me esse
dever.
 
Henrique revelou o segredo de Amália. D. Felícia caiu das nuvens. Não podia crer. Apenas retirou-se
o médico, ela dirigiu-se ao aposento da filha.
Amália, de pé junto à janela, com a fronte apoiada na aba da porta, tinha os olhos presos na casa
vizinha; e tão absorta nessa observação, que a mãe aproximou-se e ficou muito tempo a fitá-la, sem que ela
percebesse.
 
D. Felícia não duvidava mais. Teixeira tinha razão. Amália amava Hermano e era um amor veemente
que se lia em seu formoso semblante como em uma página aberta.
 
-- Queres casar com ele? perguntou a senhora afetuosamente.
 
Amália estremecera a essa voz. Com as faces inflamadas pelo pejo e os olhos em pranto, atirou-se nos
braços da mãe e escondeu o rosto no seio dela.
 
D. Felícia acariciou-a com ternura e repetiu a pergunta que a moça escutara da primeira vez.
 
-- Casar?... Com quem?... interrogou ela atônita.
 
--Com ele? Com o Hermano.
 
Uma palavra prorrompeu do seio da moca, como a explosão de sua alma.
 
-- Nunca!
 
E desprendeu-se dos braços da mãe, com uma violenta expressão de pavor.
Amália passava pelo mesmo espanto que teria se sua mãe lhe acabasse de propor para marido um
h
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omem casado.