A Bella Madame Vargas/I: diferenças entre revisões

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''O esplêndido terraço da vila de Mme. Vargas. Á direita, avançando sobre o terraço entre grinaldas de rosas e trepadeiras floridas, a fachada da linda casa, com varanda e escadaria. Para essa varanda dão a larga janela e a porta do salão de música. No fundo balaustrada de mármore. Do terraço domina-se um maravilhoso panorama de florestas, deslizando para a baía em baixo, ao fundo. Em baixo os jardins do palacete.''
 
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''Entretanto, são cinco horas de um dia de inverno e há nesse terraço um chá ao ar livre. As pequenas mesas já estão dispostas, com gosto e com muitas flores. Os criados dão os últimos cuidados a organização geral. Ouve-se no salão de música risos, e pedaços de uma cançoneta parisiense. Quando abre o pano estão em cena de casaca, a arrumar as mesas Antônio e Braz.''
 
Antônio - A idéia de tomarem chá no terraço c'est três bien.
 
Braz - Pois sim. Desde que te dêem ares e haja palavras estrangeiras, ficas satisfeito.
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Eu é que não. Estou aqui, estou a deixar isto. Olha que é trabalho. Chá no salão, chá nos quartos, chá no terraço, chá em toda a parte, chá a toda hora...
 
Antônio - É a civilização, rapaz...
 
Braz - Mas de dinheiro, nem cheta. Preferia menos chá e mais massa. Tu a olhar-me com esses modos superiores. Não sou eu só. Na copa todos se queixam.
 
Antônio - Mas ficam?
 
Braz - A ver se recebem...
 
Antônio - C'est très bien. As casas assim, ainda não são as melhores. De repente vem o dinheiro. Olha, eu enquanto houver tapetes, música, chá, comedorias - vou esperando. Ça me vá. Nasci para o luxo.
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Braz - Palerma!
 
Neste momento aparece no alto da escada, vindo do salão de música, D. Maria Miraflor.
 
D. Maria - Então, meus rapazes. Tudo bem?
 
Antônio - Como V. Exa. vê muito bem. O homem das flores é que não as queria deixar.
 
D. Maria - Muda aquela mesa para o canto. Mas deixou?
 
Antônio - Assim? Deixou. Prometi ir logo lá.
 
D. Maria - Braz, arranja o samovar.
 
Braz - Que samovar?
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D. Maria - O aparelho de chá. Digo-lhe todos os dias a mesma coisa. Ainda não sabe?
 
Braz - E eu também, senhora D. Maria, digo-lhe todos os dias o mesmo sem ser atendido.
 
D. Maria - Braz, que é isso? Comigo? Vá, olhe que sou eu...
 
Braz parece resignar-se.
 
De resto, chega nervoso e alacre Carlos Vilar.
 
Carlos - Boa tarde.
 
D. Maria - Oh! Carlos...
 
Carlos - Muito ocupada?
 
D. Maria - Dando os últimos toques ao chá.
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Carlos - Sala cheia, não?
 
D. Maria - Os de costume.
 
Carlos - Parece estar contrariada.
 
D. Maria - Quem sabe?
 
Carlos - Comigo?
 
D. Maria - Ainda ontem no Lírico você parecia um detetive americano, sempre de binóculo a varejar o nosso camarote. Por que faz isso?
 
Carlos - Não tinha razão?
 
D. Maria - Não tinha o direito. São coisas tão diferentes a razão e o direito, que o
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direito foi feito para dar razão a quem não a tem. Você não só tem direito, como não tem razão, nem juízo.
 
Carlos - Má.
 
D. Maria - Conheço-o muito bem.
 
Carlos - Oh! D. Maria, seja minha amiga. Sinto qualquer coisa que parece me anunciar uma grande transformação das coisas.
 
D. Maria - E o mundo que vai acabar.
 
Carlos (pensativo) - Quem sabe?
 
D. Maria - Apenas comigo esses ares são menos úteis. Seria muito melhor que não tivesse o desejo de prejudicar os outros.
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Carlos - Está insuportável!
 
D. Maria - E você então!
 
Os risos no jardim interrompem o diálogo. Entram Julieta Gomes, Carlota Pais, Gastão Buarque, en coup de vent.
 
D. Maria - Sejam bem-vindos os retardatários!
 
Julieta - Já acabou o chá?
 
Carlota Pais - Good evening! Não há mais ninguém?
 
D. Maria - Como vocês vêm!
 
Julieta - Oh! Uma corrida louca pela montanha. O automóvel do Gastão é tão doido como o dono!
 
Gastão - Fala de prazer.
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Carlota - Devo estar descabelada, pois não?
 
Carlos - Está ainda mais bonita!
 
Carlota - Obrigada. Sempre amável.
 
D. Maria - Todos no salão de música, jogando o puzzle.
 
Carlota - Vamos ver isso. (Sobe a escada e sai)
 
D. Maria - E há também a Baby ensaiando o Elle était souriante.
 
Carlos - Entremos. A Baby ensaiando! Deve estar aflita para que a interrompam.
 
O grupo sai subindo a escada. Há risos.
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Depois palmas. A cançoneta continua dentro. E no terraço um momento deserto aparecem o Barão André de Belfort, José Ferreira.
 
Belfort - Chegamos no melhor momento, meu caro José. As mesas de bridge, já devem estar organizadas e não falta ninguém. Nas recepções cariocas só é prudente entrar quando a dona da casa já não precisa de parceiros para o bridge, nem de figuras para os flertes.
 
José - Oh! Barão, recepções! Que grande palavra para um chá simples, na mais simples intimidade;
 
Belfort - Mas onde viu você uma festa no Rio que não fosse íntima? Como somos sempre os mesmos, ainda não fomos apresentados e já nos conhecemos intimamente. Mesmo um grande baile é uma festa íntima.
 
José - Maldizente!
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Belfort - De resto, vamos assim muito bem. A única intimidade possível hoje em dia é fingir que sabemos da vida alheia. Com os amigos escapamos de logros e com os indiferentes nada há que melhor nos coloque. A maioria das pessoas a quem cumprimento não me foi apresentada. Acontece a muitos o mesmo. E é esplêndido. Um homem que trata toda a gente de você e pergunta pela família dos desconhecidos é um tremendo valor. Por isso nós nos tratamos todos por você.
 
José - É o que se chama exagerar.
 
Belfort - O exagero é a personalidade da observação.
 
José - Quando a observação é a de um espírito tão superior...
 
Belfort - Jovem lisonjeiro!
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José - Se entrássemos?
 
Belfort (sentando-se) - um minuto ainda. Mas que orgia floral, que encanto! Estamos de fato muito bem. Decididamente Hortência tem gosto.
 
José - Perdão...
 
Belfort - Hortência ou a tia.
 
José (acentuando) - Mme. Vargas tem de fato muito chic.
 
Belfort (encara-o um segundo) - Quê? Então é verdade? O meu jovem amigo está apaixonado?
 
José - Oh! Barão! Também?
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Belfort - Perdão. Não quero com isso ofender ninguém. Mas conheço Hortência há largos anos e vejo-a sempre vitima de paixões. (Gesto de José) Vítima é o termo, porque as recebeu sempre com a mais glacial indiferença.
 
José (alegre) - Com efeito?
 
Belfort - Talvez por isso seja levado a estimá-la mais, como quem a defende. Não tem culpa a probezinha de causar paixões. Mas quanto mais gélida se faz, mais amores. Provoca Amores? Não são amores, são loucuras. Já lhe contaram que antes de casar com o Vargas, Hortência foi a causa de duas mortes?
 
José - Duas?
 
Belfort - A do estudante Theotônio Rodrigues, que se precipitou de um pedreira, e a
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do velho conselheiro Gomide, que tomou lisol.
 
José - Mas o conselheiro não morreu.
 
Belfort - Acha você que um conselheiro, mesmo não morrendo, possa sobreviver a um suicídio por lisol? O enterro é no caso um epílogo sem importância - como aliás todos os enterros.
 
José (rindo) - Pelo menos para os que são enterrados.
 
Belfort (continuando, tom de narrativa) - A terceira morte de Hortência foi causa involuntária...
 
José - Quê? Mais uma?
 
Belfort - Aquela da qual ninguém fala. o casamento.
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José - O barão está sempre a brincar.
 
Belfort - O fato é que Hortência nunca amou o marido. Creio que o pobre Vargas partiu para o outro mundo, descorçoado de realizar o impossível. Era o bastante? Parece que não. A epidemia sentimental continua. Teremos mais algum desastre.
 
José - E Hortência a dizer-me que o senhor é o seu melhor amigo!
 
Belfort - Hortência é inteligente, percebe que, sendo eu o único a não lhe fazer declarações, devo ser o mais amigo.
 
José - Oh! Barão!
 
Belfort - Claro. Já viu você desastre maior do que uma pessoa que tem amor por outra?
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Quando não é a desgraça de ambos, é pelo menos o desastre de um.
 
José - Do que ama ou do que é amado?
 
Belfort - Do que tiver menos sorte. Hortência, por exemplo, é sempre obrigada ao papel de Vênus destruidora, numa época que é a negação da mitologia.
 
José (grave) - Como o barão labora em erro. Hortência é Tão boa?
 
Belfort - Não digo ao contrário.
 
José - Deve saber melhor do que eu, que se ela casou, casou por conveniência de família e soube apesar disso honrar o nome de seu marido. (Pausa)
 
Belfort - Como o sinto diferente, José, desta sociedade!
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José - Ela então é muito má, para que me admire tanto?
 
Belfort - Não. Todas as sociedades são mais ou menos assim. A única sociedade sem perigo seria a da própria pessoa, se não acabasse por aborrecer, o que leva ás vezes ao suicídio. Acho-o diverso, entretanto, porque se abstém das intrigas, das calúnias, do debinage - por esta larga força de afirmar...
 
José - Cheguei há quatro meses apenas. Ainda não tive tempo de ser mau.
 
Belfort - Porque não chegou todo ele senão para ver Hortência.
 
José - Como não a compreendem! Hortência é um coração puro, meigo, capaz de amar.
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Belfort - Muito bem!
 
José - Falo sério.
 
Belfort - Eu também. Quando me falam com tamanha solenidade, tenho a impressão de que me vou aborrecer. Então digo muito bem. Digo muito bem, para refletir no que as palavras escondem. Ora, neste momento sou capaz de jurar que já declarou a sua paixão e que ela foi bem recebida.
 
José - De fato.
 
Belfort (retraindo-se) - Ah!
 
José - Parece-lhe extraordinário?
Belfort - Só as coisas sem importância são extraordinárias.
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José - Não sou como os outros, barão. Há muito tempo guardava em segredo o meu amor. Só depois de pensar muito, declarei-me. E quando pedi a mão de Hortência, ela estava comovida; o seu olhar foi tão profundo, que nunca mais esquecerei esse instante imenso.
 
Belfort - Pobre Hortência!
 
José - Não acha que se enganava?
 
Belfort - O amor vem quando menos o esperamos. Para quando o casamento?
 
José - Espero hoje falar a minha mãe. Sou maior, formado como toda a gente, possuidor de uma fortuna não pequena. O casamento será logo que queira Hortência. Procurarei ser apaixonado, mas amigo.
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Belfort - Será espantoso se realizar essas duas coisas contraditórias - ao mesmo tempo.
 
José - Mas barão, peço-lhe o maior sigilo. Uma frase comprometer-me-ia. Hortência fez­me jurar segredo. Quer partir. Quer casar fora daqui. Também tem medo da sociedade em que vive. É de um nervoso. Tem sofrido tanto!
 
Belfort - Acho que faz bem.
 
José - Em esconder um ato honesto?
 
Belfort - É que ela o julga por demais grave. Que vê o José aqui, em redor do seu amor? Senhoras, meninas, rapazes, a rir e a fletar. Parecem-lhe inofensivos? São perigosíssimos, feitos de desrespeito, de invejas, de egoísmos. É uma sociedade
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que se forma de aluvião em torno do dinheiro, - que a maioria tem por hipótese. Há gente rica hoje e amanhã sem real continuando a viver como quem tem dinheiro; há damas que caçam o amante como quem caça borboletas e meninas que caçam maridos como quem caça a raposa. Os rapazes, alguns parecem milionários, numa idade em que poderiam jogar a pelota, e outros não tem profissão no momento em que e preciso trabalhar.
 
José - E de que vivem?
 
Belfort- Os que parecem ricos?
 
José - Os outros.
 
Belfort - Do crédito dos que parecem ricos, do nome das famílias, da complacência geral. São esses rapazes encantadores, bem lavados, bem vestidos, bem perfumados,
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que não renunciam a nenhum prazer devem a todos, e cometeriam crimes para beber champanha nos clubes, fletar, ter amantes, gozar - se não tivessem medo ao código. Toda essa gente acumula despeitos contra os que encontram a felicidade. Hortência defende-se do ataque há muito tempo, a espera do Lohengrin. Tape os ouvidos e fujam.
 
José - O senhor é fulminante.
 
Belfort - Digo apenas o que todos sabem. Sou banal; (mudando de tom) - Mas estas flores: As flores anunciam sempre o desejo que tem a gente de ser ou parecer feliz. estas são mais denunciadoras que uma declaração.
 
José - Entretanto, só agora percebeu.
 
Belfort - É que eu só compreendo logo o que
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não é possível. Entremos, meu caro José, a conversar com essas damas.
 
Do alto da escada aparece D. Maria. Ouve-se a cançoneta sem compasso.
 
D. Maria - Oh! Aqui? Por que não entram?
 
José - Acabamos de chegar. (Apertos de mão)
 
D. Maria - Bem?
 
Belfort - Pessimamente bem.
 
D. Maria - Fala da cançoneta ou da sua saúde?
 
Belfort - De ambas.
 
D. Maria - Pois perdeu em não entrar. Fizeram um puzzle tout a fait réussi.
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José - Quem acertou mais?
 
D. Maria - A Renata d'Azambuja. (Ao criado Braz que entra com o aparelho de chá) - Ponha o samovar na mesa do centro. Bem. Leve os chapéus dos senhores. (Braz executa as ordens e sai). É preciso repetir todo o dia a mesma coisa. Os criados são cada vez menos inteligentes.
 
Belfort - A razão é simples: os inteligentes mudaram de profissão.
 
D. Maria - Deram em vagabundos?
 
Belfort - Não, deram em patrões. A profissão de patrão ainda é a menos desacreditada das profissões, mesmo quando não paga. Um criado deve desejar o que parece mais sério.
 
D. Maria (Rindo) - Onde está o seu juízo barão?
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Belfort - No bolso, D. Maria. O juízo traz a gente no bolso para não incomodar os conhecidos.
 
D. Maria - Então, peço-lhe que o mostre agora. Temos no chá meninas e velhas rabugentas.
 
Belfort - Que me diz? E a senhora ainda não perdeu o seu juízo em tão respeitável companhia?
 
D. Maria - Não perdi e vou chamá-las até.
 
José - Parece não ser preciso.
 
De fato. Entram Hortência de Vargas, D. Eufrosina Gomensoro, Baby Gomensoro, Carlota Pais, Julieta Gomes, Carlos Villar, Gastão Buarque, deputado.
 
Guedes - Essas pessoas vão entrando aos poucos, saídas do salão, a conversar com animação. apertos de mão. Beija-mão. Trocam-se as primeiras frases, ao sentarem-se segundo as simpatias. Os dois criados fazem discretamente o serviço. Há nos gestos de Carlos lima permanente inquietação.
 
Madame Vargas -
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Como vai o meu caro amigo?
 
Belfort - Receoso de perturbar a bela companhia.
 
José - Ficamos de fora a ouvir.
 
Madame Vargas - Oh! Dr. Ferreira!
 
Belfort - O José, a Maria e eu. Um quadro romântico: a beira do palácio, na estrada deserta, a Mocidade, a Velhice e a Mulher ouviam a canção do prazer.
 
D. Maria - Neste caso a mulher é também a velhice.
 
Belfort - Nunca. A mulher está sempre para aquém da idade.
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D. Eufrosina - Dr. Ferreira, bons olhos o vejam.
 
José - Minha senhora, encantado.
 
Baby - Então ouviu a cançoneta?
 
José - Logo vi que não era a senhora.
 
D. Eufrosina - Minha filha tem o mau vezo de cantar cançonetas.
 
Julieta - Que tem isso mal?
 
D. Eufrosina - Não foi a educação que lhe dei. No meu tempo as meninas não cantavam cançonetas.
 
Baby - E lucraram muito com isso!
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Carlos - Eu gostei imenso! Tem até filosofia.
 
Baby - Não minta. Imaginem que era o Fiorelli o acompanhador. Fiorelli só gosta de acompanhar músicas aborrecidas: a ária do suicídio da Gioconda o dueto da Tosca. A cada passo atrapalhava-se. Ri todo o tempo.
 
Deputado Guedes - - Mademoiselle canta com grande expressão. Eu preferiria contudo que deixasse o gênero francês.
 
Baby - Por que?
 
Belfort - Como havia de ser se ninguém mais compreende o português?
 
Carlos - Só se cantasse em inglês.
 
Deputado Guedes - -
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Perdão. apesar da invasão das línguas estrangeiras ainda há muita gente que resiste.
 
D. Eufrosina - Sou da mesma opinião.
 
D. Maria - Mas que gente é essa?
 
Belfort - Onde encontrá-la? Na Câmara, no Senado, na Academia? (Risos, conversa).
 
Madame Vargas - (A José, baixo) - Veio tão tarde...
 
José - A tanta gente, hoje...
 
Madame Vargas - Que importam os outros?
 
Julieta - Com que então teremos o deputado
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Guedes - batendo-se a favor da língua portuguesa na Câmara?
 
Belfort - Será de certo o único. Vai ser uma tremenda campanha. Os seus colegas fazem o contrário: batem-se sem tréguas contra a gramática. É a luta no próprio reduto.
 
Deputado Guedes -- Os senhores esquecem que eu sou apenas candidato ao reconhecimento.
 
Gastão - Mas foi eleito?
 
Deputado Guedes - - A eleição é uma formalidade sem importância.
 
Gastão - Está enganado. No meu club e definitiva.
 
Belfort - Mas no club da política depende do banqueiro.
 
Carlos - D. Maria...
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D. Maria (baixo) - Deixe de olhar assim Hortência!
 
Carlos - Eu?
 
D. Maria - Está a enegrecer uma vida digna de melhor sorte.
 
Carlos - Mas são todos contra mim!
 
D. Maria - A seu favor, Carlos. Que interesse tem em aborrecer Hortência!
 
Carlos - Veja como conversa com o riquíssimo Ferreira.
 
D. Maria - Você perde a cabeça. Não seja infantil.
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José - Onde se senta?
 
Madame Vargas - Sente-se do outro lado.
 
Belfort (olhando Gastão cada vez mais magro) - Então Gastão, como vamos de esporte?
 
Gastão - Cada vez melhor, senhor barão. Não me viu domingo no time de futebol?
 
Belfort - Francamente? É extraordinário o que este esporte tem feito de bem aos rapazes. Dá-me a aparência de que não faz exercício.
 
Gastão - As aparências enganam.
 
Belfort - Talvez não... O exercício é o esporte que se pratica para a própria higiene. E o esporte é o exercício que se faz para
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dar que falar da gente. O senhor ao que parece só faz esporte.
 
D. Eufrosina - Se esporte é isso, então barão não há quem não seja esportivo agora.
 
Carlos - Todos mais ou menos tocam para o poste do vencedor.
 
José - Eu gosto imenso de esporte.
 
Belfort - E faz algum?
 
José - Nenhum.
 
Belfort - Imagine o Gastão se o imitasse com que corpo estaria.
 
D. Eufrosina - Estes bolos são muitos bons. Como os faz D. Hortência?
 
Madame Vargas -
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Os bolos? Oh! isso é com a tia Eufrosina.
 
D. Maria - Mandamo-nos buscar fora.
 
Baby - Mamãe com idéias de bolos feitos em casa!
 
Julieta - Eu não sei nem os de palmatória.
 
Carlota - Que coisa pouco chic.
 
Belfort - Claríssimo. A única diferença entre a sociedade d'agora e a que representa D. Eufrosina, é que a de D. Eufrosina fazia os bolos em casa e a atual como todos os bolos sem saber onde são feitos.
 
Deputado Guedes - - E um progresso.
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Carlos - Ou pelo menos um aumento de despesa.
 
Belfort - E também a origem da neurastenia. Os bolos fazem a dispepsia, a dispepsia a neurastenia, a neurastenia a extravagância. Enfim, procurando bem, o mal fundamental está em não saber fazer bolos em casa. Mas tomemos o chá. O amor é como o chá, dizia Ibsen.
 
Carlos - Por isso é que tantas senhoras gostam de chá.
 
D. Maria - Por que?
 
Carlos - Para mudar de xícara; sempre que podem.
 
Carlota - Não me canso nunca de admirar este
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panorama do terraço de Hortência. Não acha bonito dr. Guedes -?
 
Deputado Guedes - - Muito. Eu gosto do mar...
 
Julieta - E eu!
 
José - E Hortência?
 
Madame Vargas - Mais do que eles, acredite..
 
Belfort - É impossível deixar de ter uma grande paixão pelo mar. Principalmente de terra, o mar é um sugestionador poderoso. Basta olhar para o mar para cair uma pessoa no largo domínio das idéias vagas. E nada mais agradável do que sonhar sentado num rochedo, como os poetas das holografias românticas, ou mesmo na areia como faz a maioria dos contemplativos, no Leme. Um sujeito
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sem idéias até sem ter tido a idéia de ter idéias, chega a beira da praia, olha o mar e tem logo meia dúzia de pensamentos. É fatal. O mar é um laboratório de imaginação e é por isso que eu explico a superprodução de poetas nacionais pela extensão das costas...
 
Madame Vargas - Tia, manda servir o chá aos que ficaram no salão. (D. Maria vai até a porta do salão).
 
José - Muita gente?
 
Madame Vargas - Uma mesa de bridge e outra de pocker.
 
D. Eufrosina - À mesa do pocker, sempre a ganhar aquele insuportável senhor Jesuíno.
 
José - Mas o senhor Jesuíno é, segundo me disseram, seu parente afastado.
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D. Eufrosina - Infelizmente;
 
Carlos - E é muito rico?
 
Baby (rindo) - É um parente afastado que quanto mais rico fica mais afastado.
 
D. Maria (voltando) - Como todos os parentes ricos.
 
D. Eufrosina - Acho o gracejo, menina de muito mau gosto...
 
Baby - São opiniões. Mamãe tem sempre opiniões que eu não tenho.
 
Belfort (perto de Mme. Vargas) - Perece-me nervosa, Hortência.
 
Madame Vargas - Realmente, um pouco.
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Belfort - Tenha calma e prudência.
 
Madame Vargas - Preciso de seu apoio, meu amigo.
 
Belfort - Pode contar com ele.
 
Baby - (indo ao grupo de Carlos e D. Maria) - Que conversam vocês?
 
Belfort (deixando Mme. Vargas) - A apostar que conspiram contra a tranqüilidade de alguém?
 
Carlos - Estamos a ver por quem se decide o Gastão. Se pela Julieta se pela Baby.
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Baby - É uma pilhéria sem graça. Nesses casos eu e que decido e por ti é que não me decidiria nunca.
 
Carlos - Muita pena.
 
Baby (rindo) - A não ser que o barão quisesse... (Carlos afasta-se)
 
Belfort (a Carlota Pais) - Está hoje um pouco pálida, D. Carlota.
 
Carlota - Palavra? Diga-me então alguma coisa que me faça corar.
 
Belfort - Não posso. D. Maria recomendou-me que tivesse juízo.
 
D. Maria - Mas as suas inconveniências são sempre interessantes.
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Belfort - Reputação atroz.
 
Carlota - Parece-me que D. Maria foi de uma delicadeza...
 
Belfort - Ao contrário. Coopera conscientemente para me criar uma reputação. A reputação é a opinião alheia que só nos cria embaraços, mesmo quando é lisonjeira. Todos nós somos, graças a ela, vítimas uns dos outros. Só um homem cumpriu o seu dever na terra porque ainda ignorava a reputação.
 
Julieta - Quem?
 
Belfort - Adão! Horas depois tinha uma tal reputação que não fez mais nada digno de nota. E depois de Adão, D. Carlota, a reputação é que nos faz.
 
Deputado Guedes -
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/49]]==
Não apoiado.
 
Carlos - Ninguém concorda com o barão.
 
Carlota - É um monstro!
 
José - Que diz Hortência?
 
Madame Vargas - Eu nunca sou da opinião do barão.
 
Belfort - Mas no dia em que eu tiver a vossa opinião, deixo de ter a vossa simpatia. O acordo foi sempre a trégua da antipatia...
 
Gastão - Pelo menos numa coisa o _senhor barão -concordará conosco. Está. uma tarde linda!
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D. Eufrosina - De fato. Uma beleza. Também esta Tijuco é um encanto.
 
Deputado Guedes - - Um tanto perigoso para as famílias agora.
 
Julieta - Como assim?
 
Deputado Guedes - - Muito mal freqüentada a noite.
 
Carlos - Gatunos?
 
D. Maria - Qual! O Dr. Guedes - refere-se aos automóveis, às ceias em más companhias.
 
Carlos (ironia) - Cocotes! Ceias! Automóveis? Horror!
 
Baby - Como deve ser interessante!
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/51]]==
 
D. Eufrosina - Menina!
 
Baby - Que tem de mal? Eu até agora só falei com uma cocotte na minha vida. Mas gostei muito. Era uma senhora séria.
 
Todos - Oh! Qual! Não! Não!
 
Baby - Palavra. Foi no carnaval.
 
D. Eufrosina - Menina, não conte isso.
 
Baby - Que tem mamãe, se já passou tanto tempo? D. Jesuina Praxedes com várias outras senhoras nossas amigas teve a idéia de passar uns trotes e de entrar nos clubes e bailes, onde os maridos pintam o sete. Mas precisávamos de um guia e D. Jesuina não queria homem.
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/52]]==
Então Carlota Pais lembrou a Argentina.
 
Carlota - Eu, não!
 
Baby (teimando) - Você sim. Você tinha lido o nome dela nos jornais e D. Jesuina exclamou até : "uma mulher que tem vinte amantes e trezentos contos é de confiança"...
 
Vozes - oh! oh!
 
Madame Vargas - Baby, você está dizendo inconveniências.
 
Baby - Mas se não tem nada de mal; D. Hortência?
 
Belfort - E a Argentina foi?
 
Baby - Foram propor o caso ao palacete que ela
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/53]]==
habita. Ela custou muito a aceitar. Mas afinal acedeu. Saímos todos de dominó preto fazendo "A Mão Negra". Como nos divertimos! Pois quando uma de nós brincava de mais, a Argentina dizia! ninãs tengan modos! e ferrava-nos um beliscão. Parecia mais uma professora.
 
Guedes - (no riso geral) - Caspité!
 
Belfort - Para mostrar como a moral e uma coisa, de que fazemos questão - nos outros...
 
Baby - Estão a rir? Pois a única que não foi reconhecida foi a Argentina...
 
Belfort - Como o nosso caro Guedes. Sabidamente eleito e não reconhecido!
 
Madame Vargas - Essa brincadeira tem feito o sucesso da estação.
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/54]]==
 
Julieta - E a Argentina?
 
Carlota - Vai casar. Li os proclamas.
 
Carlos (a Hortência) - Que pena!
 
Madame Vargas - Acha?
 
Carlos (impertinente) - Acho!
 
Madame Vargas (aos outros, nervosa) - Começa a cair a noite. Se entrássemos?
 
Carlota - Eu parto. Tenho hoje a ópera.
 
Baby - Eu prefiro descer ao jardim. Gastão acompanha-me.
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/55]]==
 
D. Eufrosina - Olha o sereno, minha filha. (Baby e Gastão saem para o jardim).
 
Madame Vargas - Não quero que partam sem ouvir um pouco de música. É Tão cedo ainda. Se fôssemos ver os jogadores? Dr. Ferreira o seu braço. (Baixo). Hoje a noite no teatro.
 
José - Muito obrigado.
 
Movimento geral. Vão saindo aos poucos, animada conversa. Ficara D. Maria e Carlos.
 
Carlos - Bem. Vou-me embora.
 
D. Maria - Já devia ter feito isso.
 
Carlos - A senhora viu o convite, a provocação com que Hortência? pediu o braço ao dr. Ferreira?
 
D. Maria - Carlos, você
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é desolador. Leva a contrariar-se, contrariando os outros. Hortência? estava irritadíssima.
 
Carlos - Não era por mim.
 
D. Maria - Não, era por mim.
 
Carlos - E se eu lhe falasse, D. Maria?
 
D. Maria - Se você não é doido, faz o possível por parecer. Para que falar a Hortência?
 
Carlos - Porque ela está zangada.
 
D. Maria - Vá-se embora, Carlos. É melhor.
 
Carlos - A senhora sabe tão bem que eu não
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vou! Não vou enquanto não falar com Hortência. Não me olhe assim. É cá uma coisa.
 
D. Maria - Paixão ou pedido?
 
Carlos - É cá uma coisa que me deu. Hortência? é outra. Eu não vivo bem desde que apareceu esse homem. É idiota, bem sei, mas não posso. Se a senhora soubesse como me incomoda! Hoje não me continha. Hortência? zangou-se. Vá chamá-la. Um minutinho. Estão a conversar. Não repararão. Diga-lhe que venha.
 
D. Maria - E se eu não disser?
 
Carlos (mais impertinente) - Chamo eu mesmo. Não acha que fica mal?
 
D. Maria - Julgou-o capaz de mais. Vamos ver. (Ao entrar no salão). Ainda não se decidiu esse
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bridge? (Rumor de dentro. Carlos encosta-se ao balaústre. Um minuto. Depois aparece Mme. Vargas).
 
Madame Vargas (para dentro) - descanse, D. Eufrosina. Vou vê-los (Alto) Oh! Senhor Carlos.
 
Carlos (Alto) - Retiro-me D. Hortência. A sua festa esteve encantadora.
 
Madame Vargas (baixo) - Que me queres tu?
 
Carlos - A boas horas!
 
Madame Vargas - Temos alguma nova desagradável?
 
Carlos - Não.
 
Madame Vargas - Ora temos. Devemos ter. O ar de censura, a impertinência, a frase de dúvida...
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Carlos - Deve ser impressão sua Anda nervosa demais!
 
Madame Vargas - E não tenho razão?
 
Carlos - Sei lá!
 
Madame Vargas - Levas-te a vigiar-me a tarde inteira.
 
Carlos - Talvez.
 
Madame Vargas - Só não viu quem não quis.
 
Carlos - Eu, por exemplo, por que tinha de a ver a vigiar-me a mim.
 
Madame Vargas - Não me enerves, Carlos. Precisamos de tanta prudência. Tu bem sabes que não deves proceder assim!
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Carlos - Mas não faço nada, olho quando muito.
 
Madame Vargas - Compromete-mes de um modo perigoso. Todos reparam, hoje ninguém duvida!
 
Carlos - Salvo os que a viram comprometer-se com outro.
 
Madame Vargas - Eu?
 
Carlos - Nada de surpresas. Com o Ferreira.
 
Madame Vargas - Com o José?
 
Carlos - Com o José? Como as coisas caminham! Já o trata por José...
 
Madame Vargas - Mas acreditas que depois desta loucura contigo, eu arrisquei outra loucura?
 
Carlos - Por que
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não? Nada de ilusões. É a vida. Preciso saber ao justo o grau dos seus
 
sentimentos por mim.
 
Madame Vargas - Se fazes o possível para me desgostar!
 
Carlos - Parece-lhe?
 
Madame Vargas - Tu é que te mostras mudar. Tomaste-me de assalto, creio que só para me fazer sofrer! Não dou um passo, não faço um gesto, que não te sinta a chamar-me, a dominar-me, a impor-me as tuas mais loucas extravagâncias.
 
Carlos - É que não gostei nunca de mulher nenhuma como de ti.
 
Madame Vargas - Meu Deus!
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Carlos - Deploras!
 
Madame Vargas - Sinto como é superior essa frase de amor...
 
Carlos - Fazes ironia às minhas frases: Realmente. Não devem ter literatura como as do Ferreira.
 
Madame Vargas - Por que falas assim, Carlos? Agora, a cada instante, volta o José à discussão. Tem tão pouca importância.
 
Carlos (Num ímpeto) - tem tão pouca importância o que? O José? Eu? A minha loucura? Talvez tudo isso junto. Ninguém pode adivinhar a intenção das tuas palavras. Continuas a mesma, a fazer sofrer, a torturar, a desgraçar...
 
Madame Vargas - Oh! Não me fales de fazer sofrer! É
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tempo de acabar com essa legenda. E tu bastas para redimir as maiores faltas!
 
Carlos - Queres dizer que sou eu quem te tortura?
 
Madame Vargas - Vamos a saber. Carlos, que queres?
 
Carlos - Eu?
 
Madame Vargas - Mandaste chamar-me e não posso demorar. Que queres?
 
Carlos - Mas por que esses ares de inimiga?
 
Madame Vargas - Pelo amor de Deus, dize o que desejas.
 
Carlos - Desejo apenas que expliques claramente a situação.
 
Madame Vargas -
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Que situação?
 
Carlos - A nossa. Não terás coragem de acabar logo com isso, e dizer francamente: aquele idiota comvém-me, tem dinheiro. Ponha-se fora você!
 
Madame Vargas - Carlos! Estas provocando uma cena _perigosa.
 
Carlos - Tu gostas dele, sim, tu gostas. Nada de subterfúgios. Nada de medo. Sim. tens a certeza de que eu perco a cabeça, e adias. Mas eu te forçarei.
 
Madame Vargas - Tu?
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Carlos - Não é possível que em três meses tenha acabado um amor tão grande. Lembras­te daquele teu bilhete, o único que me escreveste? Já o li tanta vez, que até o decorei. "Espero-o hoje á noite. Deus perdoe a minha loucura. Venha à 1 hora." Essa loucura passou? Não podia ter passado! Nunca mais me escrevestes, mas as loucuras não acabam de repente. E estas cenas que reprovas, que te contrariam, estes ciúmes são do amor que te tenho. É sempre assim quando a gente gosta.
 
Madame Vargas - Em que sociedade?
 
Carlos - Em todas. Em amor somos sempre os mesmos. Quando a gente ama não há diferenças, não, convence-
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te. Mas se queres com isso fazer alusões aos clubes, aos meus hábitos antigos, enganas-te. A minha vida de alegria passou. Desde que te amei, nunca mais voltei a esses lugares. Só a ti amo e não quero, não quero que outro te tome. Só por isso, só por isso te chamei, só por isso endoideço.
 
Madame Vargas - Mas tu me falas como se eu fosse qualquer. Tu duvidas de mim. Não te bastou o que fiz por ti?
 
Carlos - Perdoa. É a doidice, é sem querer. Devo-te parecer muito mau?
 
Madame Vargas - Um pouco.
 
Carlos - Que queres? Bem procuro conter-me, mas não posso. Sei que não tenho e quanto mais te tenho, mais receio de perder-te.
 
Madame Vargas -
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E fazes-me sofrer.
 
Carlos - É tua a culpa. Sim. Tratas-me mal, não me vês diante dos outros. Principalmente quando aparece esse moço rico, que aparece agora todos os dias.
 
Madame Vargas - Porque te fazes inconveniente! Ah! Carlos, não me contraries. Sabes lá como vivo neste meio em que se espia com volúpia a falta alheia. Se soubesses! estás estragando a minha vida. É só por isso, ouves, é só por isso que me desgosto.
 
Carlos - Hortência!
 
Madame Vargas - Sim, sim. A nossa loucura deve ficar secreta. Dizes que me amas?
 
Carlos - Duvidas?
 
Madame Vargas -
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Não, mas reflito. Ignoras por acaso a nossa situação? Sabes tão bem! Não podes casar comigo. Nem queres.
 
Carlos - Tu é que não querias.
 
Madame Vargas - Não é possível. Nem tu, nem eu podemos - ou falha, cada vez mais falha de recursos. Não é justo que me queiras exibir como tua amante, para que eu veja todas as portas fechadas. Não é justo nem digno.
 
Carlos - A tua frieza a refletir na loucura. Eu não faço tal, eu não quero nada!
 
Madame Vargas - Reflito como a vítima que se defende. E tu fazes tudo isso talvez sem querer, mas fazes.
 
Carlos - Estás arrependida do nosso amor, Hortência?
 
Madame Vargas -
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Tu, insistindo num ponto que conheces, é que me fazes arrepender. Tu é que me apontas o arrependimento.
 
Carlos - Não, não! Faço tudo sem sentir, sem querer. Tens razão, tens muita razão. Perdoa. Não posso casar, porque não tenho nem situação, nem dinheiro. Mas sabes? É instintivo. Quando te vejo com outros, que te cobiçam, que te acham bela, perco a cabeça, desconfio. Sou capaz de tudo.
 
Madame Vargas - Mas não tens razão de desconfiar.
 
Carlos - Se se casares?
 
Madame Vargas - Se eu casar?
 
Carlos - Sim.
 
Madame Vargas -
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Creio que não vais proibir que eu me case?
 
Carlos (num ímpeto quase alto) - Mas então é verdade tudo quanto desconfio! É verdade que queres o outro, é verdade que me afastas, que me aborreces?
 
Madame Vargas (assustada) - Carlos, por piedade, não insistas, nesta triste situação nossa, o teu cavalheirismo é, deve ser ajudar-me. Queres perder a minha vida, porque cedi aos teus desejos? Não pode ser bonito, não pode parecer digno.
 
Carlos - Só pela maneira que falas, vejo a tua indiferença.
 
Madame Vargas - Sou indiferente e dei-te o que não dei a nenhum outro homem, e faço conscientemente a loucura de te amar, e recebo-
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te aqui com risco de perder-me. Sou indiferente e entrego-me dou-me. Eu!
 
Carlos - Hortência!
 
Madame Vargas - Sou indiferente, e sou o teu objeto, a tua vibração e ando no medo constante de ver que um dia acabas com tudo, e confio-te aquilo que uma mulher preza mais que o corpo; a própria reputação. Tens razão. E por que? Porque queres estragar aos olhos de todos, egoistamente, por vaidade, a minha salvação!
 
Carlos - Não, Hortência, não.
 
Madame Vargas - Sabes as coisas, não ignoras nada da minha vida. Ainda ontem à noite eu te dizia pela milésima vez.
 
Carlos - Ainda ontem...
 
Madame Vargas -
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Ainda ontem. Eu te expliquei claramente. Não há outra solução. Não é possível. O verdadeiro amor é aquele que se sujeita. Diante desse rapaz...
 
Carlos - Não! Não! não me fales nele, ao recordar a nossa noite de ontem. Dou-te razão, aceito a frieza do teu bom senso, faço o que quiseres! Mas não me fales nele.
 
Madame Vargas - Mas se és tu que o lembras?
 
Carlos - Oh! Hortênsia, odeio-o tanto!
 
Madame Vargas - Para que? Por que? Não desejo ouvir essas palavras. Nunca te falei dele, não te falo. És injusto. E não te falarei nunca mais.
 
Carlos - Mesmo que venha ocupar na tua vida um grande lugar?
 
Madame Vargas -
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Na minha vida só ocupa lugar quem eu amo.
 
Carlos - E vê tu. Eu sinto que sou covarde, que sou um pobre diabo. Quero reagir, quero ser homem, gritar. E diante de ti não sou mais nada. Hei de fazer o que tu quiseres!...
 
Madame Vargas - Chamas a isso fazer o que eu quero!
 
Carlos - Sempre, sempre, irresistivelmente. O amor faz outros os homens. O Carlos que tu conheces, é um Carlos que ninguém ouvistes? Ninguém, nem minha. mãe conhece.
 
Madame Vargas - É uma criancice...
 
Carlos - O amor fez-me criança, assim tolo,
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/74]]==
assim nervoso. Quero-te tanto porque o meu desejo é muito maior que o teu. Mas consolo-me porque aos outros ainda queres menos.Não? Não? (Aproxima-.se) Dize. Pois não? Ainda agora. Quanta crueldade! Quanta frieza! Quanto bom senso! E enquanto tu falas, eu sinto apenas o desejo, um desejo imenso que aumenta. Estás tão bonita! este teu vestido... Este teu cabelo... Hortência! Perdoa. Escuta. Se hoje fosse como ontem?
 
Madame Vargas - Oh!
 
Carlos - Eu esqueço tudo, eu farei o que quiseres. Se fosse como ontem, uma noite encantada, a noite em que adormeceste todas as minhas dúvidas.
 
Madame Vargas - Não! Carlos. Preciso voltar ao salão. Não insistas.
 
Carlos - Pareço-te muito miserável, não é?
 
Madame Vargas -
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Não. Sabia que havias de terminar por isso. Há uma semana fazes assim. Há uma semana exiges e me atormentas! Estou fatigadíssima.
 
Carlos - Mas então está tudo acabado entre nós? Queres deixar-me? Serias tu a primeira mulher que me abandonasse. Não!
 
Madame Vargas - Digo-te apenas que hoje não. Estou cansada.
 
Carlos - Mas dizes sempre não.
 
Madame Vargas - E ainda ontem cedi!
 
Carlos - Quero hoje. Quero ainda hoje. Hortência, concede.
 
Madame Vargas -
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/76]]==
Como me atormentas, Carlos!
 
Carlos - Dize de boa vontade: até logo.
 
Madame Vargas - Oh! Não!
 
Carlos - Hortência, não sejas assim. Eu não posso. Vem cá (de repente, na exaltação do desejo). Se não me deres um beijo, faço um escândalo.
 
Madame Vargas - Estas doido?
 
Carlos - Completamente. Faço o escândalo.
 
Madame Vargas - Deixa para outro dia! Hoje não.
 
Carlos - Assim por assim, é teu desejo acabar,
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/77]]==
amar o outro. Vê-se. Não queres, porque já amas outro. Mas eu grito, faço escândalo, e verás depois.
 
Madame Vargas - Carlos, por piedade.
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/78]]==
 
Carlos - Dá-me o beijo, então. (Agarra-a).
 
Madame Vargas - Mas é mau. É mau. Que horror! Não! Não!
 
Carlos (puxando-a) - Mas dá-me duma vez?
 
Madame Vargas (presa, debate-se com horror e medo nos braços do amante) - O que quiseres! O que quiseres! Eu
==[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/79]]==
não me pertenço mais. Sou tua. Continua a ser tua!
 
Carlos (esmagando-lhe a boca num beijo) - Sim, minha!
 
E o pano cai enquanto mais alto a voz abaritonada canta o desejo do “Madrigal”.