Laurinda Belfort: diferenças entre revisões

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Laurinda Belfort teve um sobressalto. O relógio de marfim, engastado discretamente no canto esquerdo do carro, marcava duas e cinco, e esse relógio, certo, incapaz de adiantamentos ou de atrasos, marcava sempre a hora precisa para que Laurinda Belfort pudesse regularizar com calma e tempo os múltiplos afazeres dos seus perfumados dias. Havia, pois, trinta e cinco minutos que o pobre Guilherme Guimarães a esperava, apaixonado e comum, numa casa solitária.
 
Laurinda recostou-se, hesitando entre a idéia de apressar o cocheiro e o desejo de lá não ir, de falhar mais uma vez. Vinha-lhe o guloso apetite de deixar sem o seu corpo a absorvente entrevista. Mas, certamente, à noite teria a acompanha-la numa queixa muda e feroz, o olhar de Guilherme, ou no teatro ou no ''raout'' da condessa de Souto; e, à proporção que se aproximava o carro, Laurinda sentia as mãos frias, uma vaga contrariedade, a esquisita negação de todo o corpo como a tem a gente antes de fazer um enorme sacrifício...
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Ah! Francamente já enfarava. No primeiro dia, na manhã em que correra à primeira entrevista, teria chicoteado o cocheiro para andar depressa, para voar; nesta maldita quinta-feira vestira-se devagar, conversara durante o almoço como toda a sua vida fora um resultado de imitações, fora um acompanhamento de figurinos. Em criança, imitava os gestos pretensiosos de altas linhagens de algumas das colegas de Sion; em menina e moça a sua linha fora sempre copiada de alguns tipos de romance, e quando a mamã lhe fez notar a necessidade de casar para satisfazer todos os apetites de luxo, imediatamente casou, inaugurando aquela grande vida artificial e custosa, com as salas compostas segundo desenhos de decoristas ingleses, os vestidos vindos de Paris e um ar de boneca social, que para sempre lhe tirara a idéia de amar alguém, além da sua prezadíssima pessoa. A grande vida um tempo fê-la mesmo esquecer quase o marido, porque era preciso passar o carnaval em Nice, estar no outono em Paris, passear os hotéis depravados do Cairo no inverno, dar opiniões sobre artistas e pintores, falar de viagens e manter o seu salão no Rio, o seu salão invejado, criticado, incomparável como Edmond Rostand, o campanilo de S. Marcos, a erosão inglesa do esporte e a graça parisiense. Fora nessa ocasião que tomara como dama de companhia uma velha inglesa esbelta, grande conhecedora de arte, que sabia versos de Morris de cor e se apaixonara pelos fados portugueses a ponto de acabar ''caissière''
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de hotel no Estoril. Laurinda tomou-a como quem consulta um pequeno Larousse, e as suas extraordinárias ''toilletes'', os seus adereços, feitos no Vevert da rua da Paz, em que as pedras brasileiras tinham rebrilhos inéditos cravadas em brilhantes, eram desenhos da velha inglesa. Grande época aquela! Época de excessos, de conquista, de triunfo. O grave Belfort de vez enquanto pasmava.
 
— Pois que! Tu agora fumas?
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— O marido não conta nunca, principalmente quando nos faz todas as vontades. Precisas de um homem que te preocupe, cuja paixão seja um ''piment'' para a tua vida, um ser violento. Nunca amaste?
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— Oh! Não!
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Ainda não tinha nenhuma. Mas viria a ter. Seria a última etapa de mundanismo e de puro sangue da sua já gloriosa carreira na alta sociedade, teria também o seu romance. E para realizar esse romance, entre muitos adoradores profissionais, o que já insistia de há muito era precisamente Guilherme. Que fazer? Torturada pela súplica de Guilherme o marido, ansiando pelo fato que lhe fosse pretexto para não ir -porque Laurinda, sem indagar de razões, sentia-se presa a esse dever, ao dever do amor. Afinal, sempre se decidira. Mais uma vez, Deus do céu! E lá ia sem compreender porque, para a casa à beira mar ouvir o marulhar do oceano e a voz do Guilherme!
 
Pobre Guilherme! Estava decerto à espera, torturando as pontas farpadas do bigode, chegara talvez
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cedo de mais. Também não fazia outra coisa agora, passava a vida amando-a; e, ela, decididamente, enfastiava-se. Tudo quanto é demais, aborrece.
 
Fora levada àquilo por mundanice, por cabriolice da alma, como diria a sra. de Souza Castro, titular em decadência, hoje dama de companhia. De ver as outras damas amadas por homens discretos e bem vestidos, achara aquilo ''smart'' e comprometedor, com um leve tom de crime consentido. Ir assim, no seu carro, no carro do seu marido, entregar-se à paixão do outro, do cavalheiro elegante, parecia-lhe uma nota essencial da moda, lembrava-lhe logo os romances de Paris, a psicologia passional das duquesas de alta linhagem, que às vezes tem dois, sem contar o esposo.
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De resto custara, e muito até. Acostumada ao louvor das costureiras e dos íntimos, intimamente convencida de que onde fosse a admirariam, muito risonha e muito audaz, quem a visse naquela vertigem de diversões inventando o prazer e o «flerte», não a julgaria no fundo tão profundamente temerosa das coisas positivas...
 
O pobre Guilherme vivera de platonismos longo tempo. Onde ela estivesse, ele lá se achava. Na rua dava-lhe cercos para lhe tirar o chapéu, curvar-se; em casa, valsando (depois de conversar com o marido, muito seu amigo), escorria-lhe no
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pescoço declarações de amor respeitoso. Era a sugestão, a tentação, a perdição... Ela ouvia-o, marcava-lhe o lugar da sua frisa para que ele comprasse uma poltrona fronteira, dizia-lhe com antecedência os bailes e os ''five-o-clock'' que teriam a sua presença. Quando Guilherme falou do grande acorde, sentiu um desejo surdo de se negar. Então era fatalmente preciso? O desejo fora, entretanto, muito forte, entontecera-a. Ela, que tinha o nome nos jornais mundanos, no livro das costureiras e no lábio de toda a gente, quis ouvi-lo pronunciado ternamente por um homem elegante. A curiosidade aguçou-se. Como seria emocionante desmaiar, tal qual o pintam nas gravuras e nos romances! Seria antes de tudo ''high-life''. Guilherme era chique.
 
Guilherme! que nome horrível! Mas, coitado, amava-a, estava sempre em toda a parte, tinha uma porção de roupas, andava à inglesa, trotando, com os braços meio abertos, repartia o cabelo ao meio como nos figurinos, e possuía um encanto inédito; limava as unhas, dava-lhe um brilho metálico, incrível, um lustro, que, quando movia os dedos, parecia ter nas pontas palhetas de nácar. Ah! as unhas desse Guilherme!
 
Quando o jovem afortunado lhe premia a mão, o contato envernizado daquelas unhas dava-lhe num arrepio a delícia de mais um ofertório à sua beleza tão aguda, tão clara, tão moderna e tão perturbadora. Fora talvez essa a única razão porque se entregara à sensualidade meio ''snob'', meio
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cerebral, de se sentir despir por aqueles pedaços de um vermelho especial e lustroso, o contato daquelas unhas artificiais e extra-humanas. E nos passeios, nos banquetes, as luminosas unhas de Guilherme preocupavam-na como o olhar invejoso de uma amiga, o luxo de mais uma renda, a volúpia de uma jóia, que se não pôde possuir senão à custa de um enorme sacrifício...
 
Fez concessões a princípio, foi só a trechos pouco frequentados conversar apenas, discutir os tenores da companhia lírica e as infâmias da sua roda. Mas, como de uma feita, ele, de mãos postas e joelhos em terra, sem se incomodar com a calça, rogasse a sua ida ao infalível ninho de amor, ela cedeu afinal, incapaz de resistir por mais tempo...
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Nesse dia foi meia hora antes, e agora, ali no carro, indo outra vez, ainda tinha na memória a exasperação sensual da tarde intensa. Guilherme, outro, rouco, e aquelas unhas brilhantes, coralisadas, que envermelheciam mais, que se machucavam desfazendo tecidos, que tocavam frias à sua epiderme, luziam nas ''batistes''como carapaças de pequenos monstros estranhos, para acabar empalidecendo, fenecendo de perpassar pela sua carne como fica sem cor um rosto sempre votado à oração... Naquele momento, toda a sua alma vibrara de um prazer como nunca tivera, o prazer sutil de gozar e desfazer o artifício máximo do outro. Mas, desde então, ficara de gelo, esfriara, diante da pertinácia alvar daquela paixão.
 
Pobre homem! não se contentara! Antes pelo contrário,
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parecia furioso depois do primeiro dia. Pedia-lhe entrevistas a todas as horas, em todos os lugares, tinha sempre nos olhos uma queixa, e obrigara-a a dias certos! Ela, uma senhora afinal, achava aquilo brutal, uma violência de quem paga e que a reduzia, que a humilhava.
 
Não havia duvida amava-a. Mas isso, não era razão e plausível para tamanhos excessos. Certamente era gentil esperava-a sempre com o quarto florido. Mas, em a vendo, era sempre aquele beijo, o beijo infalível e a frase:
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Uf! que banalidade! Era baboso, era de entorpecer. E, positivamente, estragar um dia por semana, roubar-se à admiração do próximo para ouvir aquele senhor soluçar queixas de amor, parecia até pouco sério. Depois, Guilherme nem sabia, nem tinha préstimo para vestir uma senhora. Os seus vestidos, complicados, com ligaduras difíceis e ousadias de corte, eram amarfanhados por ele, rasgados, e mesmo, num dia de frio, caindo do céu a umidade, diante do espelho, Laurinda suava de impaciência, tanto o idiota custava para lhe atacar o colete -já com as unhas quebradas; sem brilho de se roçarem e de a apertarem.
 
Antes de ir para essas sessões, Laurinda vestia-se lentamente com a dor de saber que se ia despir, demorava, imaginava afazeres, olhando o relógio. De repente, porém, quando já os ponteiros passavam da hora, não se continha. Mandava tocar à
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toda, corria ao ''rendez-vous''com a louca vontade de que ele não a esperasse mais. Porque ia então? Ora! porque ia! Por condescendência, por fraqueza, por não achar o meio sério de se livrar de vez. E só então Laurinda lembrou que ia, naquele momento, para o suplício! Pegou do tubo acústico, soprou desesperada:
 
— Mais devagar, José!
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De repente o carro parou.
 
Deus! ia começar a tortura, o desespero! As janelas estariam abertas, era certo. O imbecil ainda acabava morando lá! Lentamente, como se levantasse o mundo, suspendeu o ''store''de seda
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branca, e mais lentamente ainda ergueu os olhos tristes.
 
A casa estava totalmente fechada.
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Meteu-se outra vez no carro, bateu a portinhola.
 
Ah! não! nunca mais! estava acabado! O Sr. Guilherme queria o insulso, o idiota? Tanto melhor! Só assim não perderia mais o tempo, ela que tinha tanto que fazer, que ainda não fora ao costureiro e tinha teatro à noite, jantar, um ''five-o-clock'' das Teixeira impreterivelmente às quatro e meia!
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Que bom! E o cretino a pensar que a humilhava, que a incomodava! A rua do Ouvidor devia estar esplêndida. Se ao menos ela, Laurinda Belfort, não estivesse muito mal! Sempre que vinha àquela horrível casa vinha tão sem gosto... O seu vestido era de rendas brancas, sobre um fundo de ''liberty'' verde gaio. Abriu o estojo do ''coufé'', tirou um espelho, um pompon de pó de arroz, viu-se, achou-se bela com o seu chapéu que era uma rosa debruada de uma enorme pluma verde pálido. E, de fronte do espelho, a idéia de fugir à humilhação apuou-lhe de novo o cérebro. Não havia dúvida. Nada de cenas que demonstrem amor. Apenas, ao encontrar o mariola -uma frase triste:
 
— Ah! meu amigo, foi-me impossível ir hoje!
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— José, para a cidade, depressa!
 
O carro tornou a rodar, enquanto, reclinada na almofada de seda, Laurinda torcendo os dedos, sentia, por mais que não quisesse sentir, a falta daquela hora infame, daquelas frases tolas, a falta daquelas unhas que lhe davam a renovação
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de uma sensação toda cerebral, para ao menos quebra-las mais uma vez morde-las, despreza-las. Instintivamente, na imensa confusão dos seus desejos, olhava os transeuntes com ânsia, a ver se o via, a ver se o encontrava, para parar o carro, ou tocar à toda, ou cumprimenta-lo, ou fingir que não o via... Sabia lá! Mas para vê-lo um momento ao menos, o pobre diabo, com os seus bigodes e aquelas unhas da cor do nácar rosa... E nos seus olhos brotavam, de desespero e de desejo, lágrimas a fio -por não ter tido, apenas naquele dia, o brinquedo de um pobre ente para torturar e espezinhar, o brinquedo aborrecido uma hora antes.
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