A Carne/VI: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Carne|Capítulo 06]]
 
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Terminara a moagem, ia adiantada a primavera.
 
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A natureza mudara de toilette e entrara no período dos amores.
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Irrompia a florescência com todo o seu luxo de formas, com toda a sua prodigalidade de matizes, com todo o seu esbanjamento de perfumes.
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À lascívia da flora se vinha juntar o furor erótico da fauna.
 
Por toda a parte ouviam-se gorjeios e assobios, uivos e bramidos de amor.
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Era o trilar do inambu, o piar do macuco, o berrar do tucano, o grasnar gargalhado do jacu, o retinir da araponga, o chiar do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente, quase humano dos felinos.
 
A essa tempestade de notas, a esse cataclismo de gemidos cúpidos, sobrelevava o regougo áspero do cachorro-do-mato, o guincho lancinante, frenético do carácará perdido na amplidão.
 
A folhagem tremia agitada, esbarrada, machucada. Insetos brilhantes, verdes como esmeraldas, rubros como rubins, revoluteavam em sussurro, agarravam-se frementes. Os pássaros buscavam-se, beliscavam-se, em vôos curtos, fortes, sacudidos, com as penas arrufadas. Os quadrúpedes retouçavam perseguiam-se, aos corcovos, arrepiando o pêlo.
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Serpentes silvavam meigas, enroscando-se em luxúria aos pares.
 
A terra casava suas emanações quentes, ásperas, elétricas com o mormaço lúbrico da luz do sol coada pela folhagem.
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O ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar lufadas de tépida volúpia. Sobressaía a todos os perfumes, dominava forte um cheiro acre de semente, um odor de cópula, excitante, provocador.
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Lenita estava preguiçosa. Internava-se na mata e, quando achava uma barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava-se aconchegando o corpo na alfombra espessa de folhas mortas, entregava-se à moleza erótica que estilava das núpcias pujantes da terra. Voltava à casa, estendia-se na rede, com uma perna estirada sobre outra, com um livro que não lia caído sobre o peito, com a cabeça muito pendida para trás, com os olhos meio cerrados, e assim quedava-se horas e horas em um lugar cheio de encantos.
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Pensava constantemente, continuamente, sem o querer, no caçador excêntrico do Paranapanema, via-o a todo o momento junto de si, robusto, atlético como o ideara, dialogava com ele.
 
Ficara cruel: beliscava as criolinhas, picava com agulhas, feria com canivete
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os animais que lhe passavam ao alcance. Uma vez um cachorro reagiu e mordeu-a. Em outra ocasião pegou num canário que lhe entrara na sala, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma asa, soltou-o, findo com prazer íntimo ao vê-lo esvoaçar miseravelmente, com uma asa só, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa do terreiro.
 
O escravo, a quem ela fizera tirar o ferro do pé, fugira de fato, como tinha previsto o coronel: um dia voltou preso, amarrado com uma corda pelos lagartos dos braços, trazido por dois caboclos.
 
Que não havia remédio, disse o coronel, que dessa feita o negro tinha de tomar uma funda mestra por ter abusado do apadrinhamento de Lenita, que ia tornar a pôr-lhe o ferro, e que não o tiraria mais nem à mão de Deus Padre.
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Lenita, muito de adrede, não intercedeu. Sentia uma curiosidade mordente de ver a aplicação do bacalhau, de conhecer de vista esse suplício legendário, aviltante, atrozmente ridículo. Folgava imenso com a ocasião talvez única que se lhe apresentava, comprazia-se com volúpia estranha, mórbida na idéia das contrações de dor, dos gritos lastimados do negro misérrimo que não havia muito lhe despertara a compaixão.
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Passou a noite em sobressalto, acordando a todas as horas, receosa de que o sono imperioso da madrugada lhe fizesse perder o ensejo de ver o espetáculo por que tanto anelava.
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Cedo, muito escuro ainda, levantou-se, saiu, atravessou o terreiro, e, sem que ninguém a visse, entrou no pomar.
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A essa chegou-se Lenita, encostou-se e, tirando do seio uma tesourinha que trouxera, começou a abrir um buraco na parede, à altura dos olhos, entre dois barrotes e duas ripas, em lugar favorável, donde já se protraía um torrão muito pedrento, muito fendido, meio solto.
 
A tesourinha era curta, mas reforçada, sólida, de aço excelente, de Rodgers. A obra avançava, Lenita trabalhava com
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ardor, mas também com muita paciência, com muito jeito. O aço mordia, esmoía o barro friável quase sem ruído. Um rastilho de pó amarelado maculava o vestido preto da moça.
 
Deslocou-se o torrão, e caiu para dentro, dando um som surdo ao tombar no chão fofo, de terra mal batida.
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Passou-se um longo trato de tempo.
 
O brilho das estrelas empalideceu. Uma faixa de luz branca desenhou-se ao nascente, ruborizou-se, purpurejou inflamada com reflexos cor de ouro. O ar tornou-se mais fino, mais sutil e a
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passarada rompeu num hino áspero, desacorde, mas alegre, festivo, titânico, saudando o dia que despontava.
 
Ouviu-se o sino da fazenda vibrar muito sonoro.
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Lenita tomou a espiar: a casa do tronco já estava clara.
 
A um canto espalmava-se um estrado de madeira engordurado, lustroso pelo rostir de corpos humanos sujos. As tábuas que o constituíam embutiam-se em um sólido pranchão de cabriúva, cortado em dois no sentido do comprimento: as duas peças por ele formadas justapunham-se, articulando-se de um lado por uma dobradiça forte, presas de outro por uma fechadura de ferrolho. Na parte superior da peça fixa e na inferior da móvel havia piques semicirculares, chanfrados, que, ao ajustarem-se essas peças, coincidiam, perfazendo furos
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bem redondos, de um decímetro mais ou menos de diâmetro.
 
Era o tronco.
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Abriu-se a porta, e entrou o administrador seguido por um dos caboclos que tinham trazido o preto.
 
— Olá, seu mestre! gritou o caboclo, olhe o que aqui lhe trago: chocolate, café, berimbau. E a correia na ponta do pau.
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Vai chuchar cinquenta para largar da moda de tirar cipó por sua conta. Não sabe que negro que foge dá prejuízo ao senhor? Olhe só este pincel, está tinindo, está beliscando!
 
E sacudia ferozmente o bacalhau.
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Toma-se uma tira de couro cru, de três palmos ou pouco mais de comprimento, e de dois dedos de largura. Fende-se ao meio longitudinalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma, nem outra extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se torce e se estira em uma tábua, por meio de pregos, e põe-se a secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se um cabo a uma das extremidades, corta-se a outra, espontam-se as duas pernas a canivete, e está pronto.
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O administrador abriu o tronco, o negro ergueu-se bafo, trêmulo, miserável.
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— O senhor está deitado, não vem, não pode vir cá. Deixe-se de história, arreie as calças e deite-se.
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— Nossa Senhora me acuda!
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Curvou as pernas, pôs as mãos no chão, estendeu-se, deitou-se de bruços.
 
O caboclo tomou posição à esquerda, mediu a distância, pendeu o corpo, recuou o pé esquerdo, ergueu e fez cair o bacalhau da direita para a esquerda, vigorosamente, rapidamente, mas sem esforço, com ciência com arte, com elegância
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de profissional apaixonado pela profissão.
 
As duas correias tesas, duras, sonoras, metálicas, quase silvavam, esfolando a epiderme com as pontas aguçadas.
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O negro retorcia-se como uma serpente ferida, afundava as unhas na terra solta do chão, batia com a cabeça, bramia, ululava.
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— Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!
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— Agora uma salmorazinha para isto não arruinar.
 
E, tomando da mão do administrador
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uma cuia que esse trouxera, derramou o conteúdo sobre a derme dilacerada.
 
O negro deu um corcovo; irrompeu-lhe da garganta um berro de dor, sufocado, atroz, que nada tinha de humano. Desmaiou.
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O silvar do azorrague, as contrações os gritos do padecente, os fiar de sangue que ela via correr embriagavam-na, dementavam-na, punham-na em frenesi: torcia as mãos, batia os pés em ritmo nervoso.
 
Queria, como as vestais romanas no
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ludo gladiatório, ter direito de vida e de morte; queria poder fazer prolongar aquele suplício até à exaustão da vítima; queria dar o sinal, pollice verso, para que o executor consumasse a obra.
 
E tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de sangue.