A Carne/XII: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Carne|Capítulo 12]]
 
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O feitor preto viera dizer a Lenita que uma fruiteira na mata em frente estava ajuntando muito pássaro.
 
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Não tinha caído muito orvalho, e grande era a cerração.
 
O caminho coberto por uma camada veludosa de areia fina, amarelenta, embebia-
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se pela neblina espessa que afogava a terra. A selva formava um maciço negro, compacto. Uma ou outra árvore isolada no pasto transparecia por entre o nevoeiro, como um espectro gigantesco.
 
Sentia-se um frio seco, picante, sadio. De repente Lenita percebeu o que quer que era , retouçando na areia levemente úmida do carninho, a vinte metros de distância.
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Com efeito, um animal qualquer estrebuchava convulso, raspava a areia, atirava-a longe.
 
A rapariga aproximou-se cheia de
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receio, retraindo o corpo, estendendo o pescoço.
 
— E candimba! gritou jubilosa, e, baixando-se, apanhou uma soberba lebre que, ferida na cabeça, ainda não acabara de morrer.
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Ia clareando o dia; rareava o véu de neblina. O negror indeciso da mata transmutava-se em verdura. Distinguiam-se as moitas festivas das taquaras, os penachos luzidios dos palmitos, as copas opulentas das paineiras, revestidas literalmente de um tapete cor-de-rosa, pela infloração precoce.
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Perfumes agudos de orquídeas fragrantes, refrescados pelas brisas matutinas, deliciavam o olfato, sem irritar e sem atormentar os nervos.
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Os pulmões hauriam à larga o oxigênio puro, expirado da vegetação ambiente.
 
As duas companheiras caminharam pelo largo carreadouro, até que chegaram a uma peroveira alta, de junto a qual partia a picada, entranhando-se pelo mato, à
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esquerda. Por aí enveredaram, seguiram, até que pararam junto de uma caneleira esguia, em frutificação temporã.
 
Dominava o silêncio, quebrado apenas pelo gotejar manso e raro da orvalhada tênue.
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Por cima já luz, vida; por baixo ainda escuridade, mistério.
 
Uma sombra escura cortou veloz o espaço: era um jacuguaçu. Pousou,
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balançando-se, em um dos galhos baixos. Ao assentar colheu vagaroso as asas que trazia pandas, librou-se ainda nelas, fechou o leque formosíssimo da longa cauda, estendeu o pescoço, cauteloso à direita e à esquerda.
 
Após momentos de observação, trepou pelo galho, marinhou aos pulos por entre a folhagem, sumiu-se, surgiu no pino da copa, mostrando, banhada de sol, a sua barbela rubra.
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Não desfechou, não teve ânimo: retirou-a da cara, e pôs-se de novo a contemplar o alector.
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De repente seus olhos brilharam em um como relâmpago negro, contraíram-se-lhe as feições, seus dentes brancos morderam o lábio rubro, e, fria, resoluta, ela encarou pela segunda vez a espingarda, fez pontaria, puxou o gatilho, o tiro partiu.
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Lenita levantou o olhar.
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No mesmo galho, de onde derrubara o jacu, uma pomba legítima fazia brilhar ao sol em reflexos furta-cores o seu colo gracioso.
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— Silêncio!
 
No galho fatal um tucano acabava de pousar: virava e revirava, para um e para outro lado, o seu grande bico esponjoso. Era uma maravilha o efeito de suas penas dorsais a contrastarem negras com o alaranjado soberbo da gorja, com o vermelho-
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vivo do peito: ao vê-lo ostentando ao sol ardente do trópico os esplendores dos seus matizes, dir-se-ia um ente fantástico, uma flor animada, viva, que viera voando de uma região desconhecida, que se fixara naquela árvore.
 
Um tiro certeiro de Lenita fê-lo tombar, e depois a outro, mais outro e a araçaris, e a pavôs, e a aves de bico redondo - uma carnificina, uma devastação.
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Fazia calor.
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— São horas, já passa até de horas de almoçar, disse Lenita. Vamo-nos embora, amanhã voltaremos.
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— Que é isto, minha senhora; que é isto, Lenita? acudiu Barbosa, segurando-a solícito.
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— Tive um tal susto... murmurou a moça mal recobrada.
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— Não escreveu, não deu parte de que vinha...
 
— Eu não esperava terminar os negócios anteontem, como terminei. Os
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homens estavam teimosos, tinham-se encastelado na sua proposta. De repente, quando eu menos esperava, mudaram de acordo, cederam, aceitaram as minhas condições, e ficou tudo acabado.
 
— Satisfatoriamente?
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— Chamam-se sabiacis.
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— No Brasil os psitacídios serão representados somente por arás e papagaios?
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— Cansado, não; com algum apetite, sim.
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— Pois vamos, vamos almoçar.
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E seguiram. Era imensa a alegria de Lenita, a gratidão mesmo em que se achava para com Barbosa por tê-la vindo surpreender na mata, por não tê-la esperado em casa. Sentia-se lisonjeada em seu orgulho de mulher. E mais, Barbosa esquecera ou fingira esquecer os justos, mas injustificáveis arrufos da véspera da partida. Amava e adquirira a convicção de que era correspondida.
 
No percurso da picada que mundo, que infinidade de pequenos gozos! Aqui um tronco podre, deitado, a transpor; ali, um ramo espinhoso a evitar; uma ladeira íngreme, escorregadia a subir. Barbosa, nessas dificuldades, ajudava-a, tomava-lhe a espingarda, dava-
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lhe a mão. Ela deixava-o fazer, aceitava-lhe o auxilio, não porque se sentisse fraca, porque precisasse; mas para dar-lhe a ele o papel de forte, de protetor. Achava uma delícia inefável em ser mulher para que Barbosa fosse homem. A voz máscula, doce, de Barbosa acariciava-lhe o ouvido, acalentava-lhe o cérebro, envolvia-a em uma como atmosfera de harmonia e amor.
 
Insensivelmente, sem darem fé da distância chegaram à casa. Esperava-os na porta o coronel.
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Lenita corou até às orelhas.
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O coronel não se deu por achado da inconveniência.
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O coronel levantou-se, saiu a ver, aflito, trôpego. Barbosa e Lenita seguiram-no.
 
Na sala de entrada, sobre urna marquesa
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forrada de couro, encostando-se a um travesseiro de marroquim que fora encarnado, estava uma preta fula ainda moça.
 
Estertorava com a face tumefata, com os tendões do pescoço retesados; os olhos protraíam-se das órbitas; as pupilas enormemente dilatadas tinham feito desaparecer os limbos do íris. Das comissuras dos lábios contraídos e deformados escorriam fios de baba, viscosos, resistentes, translúcidos.
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— Veja isto, Manduca, que pensa você?
 
Barbosa aproximou-se por sua vez, procurou sentir o calor da preta na pele do rosto, encostando-lhe o dorso da mão, achou-a fria; tateou-lhe o pulso, encontrou-o débil, espaçadíssimo; beliscou-a, ela
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não pareceu dar acordo disso.
 
— Como principiou esta moléstia? perguntou ele à preta que tinha ido dar parte.
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— Não bebeu nada?
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— Bebeu café, uma meia tigela.
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A preta tentou sair do estado soporoso em que se achava, procurou levantar a cabeça, não conseguiu; deixou-a recair pesadamente no travesseiro, proferindo uns sons inconexos, semi-inarticulados. De sob as suas roupas exalava-se um cheiro fétido de matérias fecais.
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Barbosa, vendo que nada poderia obter, que a vontade estava ali aniquilada, passou o frasquinho ao coronel.
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— Engula! gritou Barbosa.
 
A negra fez um esforço, deu um safanão violento, a colher saltou longe, e o líquido, revessado, caiu sobre a marquesa,
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correu para o soalho. A deglutição era impossível.
 
— Não será bom mandar chamar o doutor Guimarães?
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Sentaram-se junto de uma uma janela abatidos: a moléstia da preta lançara-os em um desânimo profundo, em uma apreensão de vagas ameaça de perigos desconhecidos.
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Entreolhavam-se, não ousando arriscar um dito, uma palavra.
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— Não apresentaram eles os mesmos sintomas que apresentou e está apresentando agora a Maria Bugra?
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— Homem, com efeito! Apresentaram.
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— Também se tira da beladona.
 
— E onde encontrar a beladona?
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No Brasil só pode haver beladona em algum horto botânico.
 
— Meu pai não conhece aquilo que ali está? E Barbosa apontou para um vasto trato de terreno, coberto de plantas baixas, escuras, de folhas repicadas, de flores brancas, em forma de trombeta.
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— E a sua convicção é...
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— Que Maria Bugra morre envenenada por uma decocção fortíssima de sementes de datura, e, consequentemente, por atropina.
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— Joaquim Cambinda.
 
A esta acusação precisa, formal, convicta, o coronel baixou a cabeça. Pensava Barbosa tinha razão. Perdera a fazenda vários escravos mortos todos de uma moléstia esquisita, que apresentava invariavelmente o mesmo cortejo de sintomas. E isso começara depois de que viera Joaquim Cambinda. Esse preto, tinha-o ele recebido com outros em herança de uma tia, já velho, incapaz de trabalhar. Nunca exigira dele serviço; dera-lhe até para morar, a pedido seu,
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um paiol largado, independente, no fundo do terreiro. Tempos havia, morrera na fazenda um feitor branco: a viúva, lembrava-lhe bem, tinha feito um berreiro enorme, infernal, dissera que o marido sucumbira a coisa feita, acusara terminantemente a Joaquim Cambinda. Não dera ele, coronel, importância à acusação, e essa acusação ressurgia, feita agora por seu filho, homem inteligente, ilustrado, muito sisudo.
 
— Em que se estriba você para inculpar o negro velho? perguntou após minutos de meditação.
 
— Em muita coisa. Primeiro, os fatos, os envenenamentos indiscutíveis, e que só começaram de dez anos a esta parte, depois que Joaquim Cambinda veio para a fazenda: eu cá não estava, mas por informações acho-me ao corrente de tudo. Em segundo lugar a fama
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de mestre feiticeiro que tem ele em todo o município: várias pessoas de critério têm-se interrogado a esse respeito. Depois, surpreendi-o eu mesmo, outro dia, a secar cabeças de cobra, raízes de cicuta e de guiné, sementes de datura. E mais... ele tinha seus agravos de Maria Bugra... E Barbosa acentuou estas palavras, olhando para Lenita.
 
— É verdade, sei, até já tive de tomar providências por causa disso. Mas são presunções apenas...
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Realizaram-se as previsões de Barbosa: o estado soporoso de Maria Bugra passou para coma, e o coma para morte.
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À tarde, ao escurecer, depois da revista, o coronel mandou chamar Joaquim Cambinda.
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Por entre o cheiro acre de vinagre ferrado e o cheiro enjoativo da alfazema queimada, percebia-se um cheiro fétido, um fartum de carne podre, de decomposição cadavérica.
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Joaquim Cambinda entrou, olhou com indiferença para a defunta, dirigiu-se ao coronel que, junto com Barbosa, aí o esperava.
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— Como quer sinhô que eu saiba?
 
— Se você não confessar tudo o que
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tem feito, aqui, direitinho mando-o acabar a bacalhau, sô feiticeiro do diabo!
 
— Ah! Sinhô! Feiticeiro, negro velho, que não tarda a ir dar contas a Deus do feijão que ele comeu!
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Os dois pretos chamados abriram caminho, empurrando os companheiros, entraram na ante-sala.
 
— Segurem-me este tratante, conduzam-no à casa do tronco.
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casa do tronco.
 
Eu já lá vou. Levem o bacalhau e uma salmoura forte.
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— Porque ela comia o meu dinheiro, e me enganava com a crioulada nova.
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— E os outros, o Carlos, a Maria Baiana, o Chico Carreiro, Antônio Mulato?
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— Matar-me cinco escravos!
 
— Cinco! Só crioulinhos mandei eu embora dezessete. Negro grande, nem se fala: Manuel Pedreiro, Tomaz, Simeão,
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Liberato, Gervásio, Chico Carapina, José Grande, José Pequeno, Quitéria, Jacinta, Margarida, de que é que morreram? Fui eu que matei todos.
 
Ergueu-se grande sussurro de entre o grupo de negros. Ouviam-se gritos, imprecações.
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— E a mim nunca pretendeu você matar?
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— Matar, não: fazer penar só.
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— Minha mãe! bradava outro.
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— Meus três filhinhos tão bonitos, que entraram a inchar de repente, na cabeça e na barriga, a amarelar e que morreram com as perninhas finas como pernas de rã! lamuriou uma negra e, tomando do chão um caco de telha, bateu com ele na cara do feiticeiro.
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E numa confusão horrorosa foram arrastando o desgraçado.
 
Ao pé do paiol estava um montão de sapé seco, e junto dele uma mesa
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velha de carro, com uma roda só, desconjuntada, meio podre.
 
Em um momento amarraram o mísero sobre essa mesa de carro, apesar da resistência louca que ele então procurou fazer, a pontapés, a coices, a dentadas.
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Um moleque correu ao engenho, e de lá voltou com uma lata quase cheia.
 
Um preto tomou-lha, subiu à mesa do carro, começou a despejar petróleo sobre Joaquim Cambinda: o líquido corria em fio farto, claro, transparente, com reflexos azulados, ressaltava do peito piloso do negro, da sua calva lustrosa, embebia-se-lhe nas roupas imundas,
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misturado, confundindo com o suor que manava em camarinhas. Os olhos do miserável revolviam-se sangrentos, seus dentes rangiam, ele bufava.
 
— Fósforos! Fósforos! Quem tem fósforos? perguntou o preto, depois que esvaziou a lata, e que fez desaparecer Joaquim Cambinda sob um montão de sapé.
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O preto saltou abaixo, tomou-a, abaixou-se, riscou um fósforo, protegeu-lhe a chama com a mão em forma de concha, encostou-o ao sapé, junto do chão.
 
Ergueu-se uma fumarada espessa, azul-claro por cima, cor de ferrugem por baixo; a chama cintilou em compridas línguas gulosas, lambeu, rodeou
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a mesa do carro, chegou ao sapé de cima e ao corpo do negro. As roupas deste, embebidas em petróleo, fizeram uma como explosão, inflamaram-se repentinamente. Ele soltou um mugido rouco, sufocado, retorceu-se frenético...
 
Tudo desapareceu num turbilhão crepitante de fogo e de fumo.