A Carne/XVI: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Carne|Capítulo 16]]
 
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Lenita despedira a mucama, e ficara a dormir só no seu quarto. O coronel estranhou, não levou a bem tal resolução. Que era perigoso, que podia ficar doente, ter um ataque alta noite, sem que ninguém lhe acudisse.
 
Que não, respondeu Lenita, que estava perfeitamente boa, que não havia ataque a recear; e mais, que a rapariga ressonava forte, e que isso a impedia de dormir.
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Por volta das onze horas vinha Barbosa, mansamente, pé ante pé, entrava na sala, fechava a porta por dentro, a chave.
 
As ferragens cuidadosamente azeitadas funcionavam veleiras, em atritos macios, suaves, sem o mínimo rangido.
 
A fechadura era das portuguesas antigas, de chapas furadas coincidentemente: para evitar que alguém pudesse espiar pelo buraco o que se passava na sala, espionagem aliás improvável, Barbosa pendurava na chave o seu chapéu.
 
Em liberdade absoluta, perfeita, não se contentava com o prazer material de possuir Lenita. Queria o pecado mental inteligente, os mala mentis guadia de que fala Virgílio; queria contemplar, comer com os olhos a plástica soberba do corpo da moça, ora em todo o esplendor da incandescente nudez, ora realçado
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pelos atavios, pelas extravagâncias da moda.
 
Despia-a, punha-a na posição de Vênus de Milo, arranjava-lhe os braços, como conjecturam os sábios terem estado os da estátua; enrolava-lhe um lençol de volta aos quadris, arrufava-lho, em pregas suaves, em panejamentos artísticos.
 
Depois arrancava-lhe esse último vestuário, mudava-lhe a atitude: erguia-lhe o busto, avançava-lhe a arca do peito, fazia sobressair o relevo insolente dos seios erguidos e duros.
 
Por meio de um refletor poderoso focava, dirigia a luz branca de uma lâmpada belga, fazia cair sobre a moça uma toalha de reflexos suaves e vivos, cientificamente combinados.
 
Afastava-se, aproximava-se, tomava a afastar; mirava, estudava, gozava à
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Lenita, como Pigmalião à Galatéia, como Michelângelo ao Moisés.
 
Chegava um momento em que se não podia conter: com um grito rouco, áspero, sufocado, de bode em cio, atirava-se, ela atirava-se também, e ambos caíam sobre um sofá, sobre o assoalho, estreitando-se, mordendo-se, devorando-se.
 
Por vezes fazia com que Lenita se frisasse, se espartilhasse, se enflorasse, se enluvasse, com todo o capricho, com toda impertinência de uma leoa da moda, que se prepara para um baile do high-life, para um sarau diplomático.
 
Ele ajudava-a, servia-lhe de camareiro, orgulhoso, radiante.
 
Todo aquele aparato do mundus mulieris, toda aquela expansão de garridice era para ele, para ele só, para mais ninguém.
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E sentia o que quer que era do prazer exclusivista, egoístico, do rei Luís da Baviera, a assistir em um teatro vazio, como espectador solitário, único, a uma ópera de Wagner, majestosamente posta em cena, divinamente cantada por artistas de primor.
 
Adorava a macieza tépida, perfumosa, da pele nua de Lenita; mas, refinado em lubricidade, gostava de lhe premer as mãos quando calçadas de luvas de pelica ou de peau de Suede; gostava do contato quente dessas mãos, através das malhas das mitaines de retrós, gostava de lhe sentir a viveza do corpo por entre as asperidades brandas das rendas , por entre as flores relevadas do tule.
 
Em breve não lhe bastaram mais esses desbragamentos noturnos, de paredes a dentro, clandestinos: quis moldura mais larga para os seus quadros
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vivos, quis palco mais espaçoso para suas encenações carnais, quis o amor ao ar livre, à luz do dia, em liberdade plena. A pretexto de caçar, ia com Lenita todos os dias, afundava-se na mata.
 
Enquanto na estrada, deixava-a seguir, ficava alguns passos atrás, para ver-lhe o remoinho agitado dos calcanhares na fímbria roçagante do vestido de fazenda mole.
 
Esse movimento de saias estuoso, contínuo, que ia em ondulações confundir-se com o bamboar das cadeiras, causava-lhe uma excitação estranha, particularíssima.
 
Quando na mata se lhe deparava uma grota profunda, uma barroca sombria, uma clareira afestoada de creciúmas, de taquaras, parava.
 
Junto de um velho tronco, ao pé do leque esmeraldino e ainda baixo de uma
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palmeira nascente, bem sob a ação de um feixe de raios solares, colocava a moça despida, fazendo com gosto de artista, com perícia de devasso prático, que lhe destacasse a alvura da pele banhada de luz, no fundo verde da mata afogado na sombra. Lenita prestava-se a tudo com docilidade de rainha complacente, de deusa satisfeita; deixava-se adorar, recebia contente o culto de latria dirigido a sua carne.
 
Barbosa mirava-a, remirava-a, voltando-lhe em torno; os círculos concêntricos que descrevia iam-se estreitando como os de um açor em volta da preia: chegava-se, ajoelhava-se; e, trêmulo, com a respiração açodada, beijava-lhe as unhas róseas e a pele branca dos pés, erguia o busto, alteava-se ousado, osculava-lhe as coxas roliças, pousava a cabeça de encontro ao ventre liso,
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aspirando, sorvendo, de olhos semicerrados, as emanações sãs, provocantes, da carne feminina irritada.
 
Uma vez no coração da mata acudiu-lhe à lembrança a Aurora de Michelângelo, que vira no túmulo dos Médicis. Uma anfractuosidade de terreno fora a idéia acidentalmente associada, que lhe avivara a memória.
 
Perto estava uma árvore velha coberta de musgo: colheu-o às braçadas, fez um montão, alcatifou, alfombrou com ele a acidentação do terreno que lhe recordara o mármore florentino.
 
Nervosamente, brutalmente, foi despindo a Lenita: não desabotoava, não desacolchetava; arrancava botões, arrebentava colchetes. Quando a viu nua, fê-la reclinar-se sobre o musgo, dobrou-lhe a perna esquerda, apoiou-lhe o pé em uma saliência de pedra, dobrou-lhe também
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o braço esquerdo, cuja mão, em abandono, foi tocar o ombro de leve, com as pontas dos dedos; estendeu-lhe o braço e a perna direita em linha suave e frouxa, a contrastar com a linha forte, angulosa, movimentada, do lado oposto.
 
Desceu um pouco, deitou-se de bruços e, arrastando-se como um estélio...
 
Lenita desmaiou em um espasmo de gozo...
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Uma noite Barbosa não foi ao quarto de Lenita.
 
A moça passou em claro, ralada de cuidados. Pela madrugada ergueu-se e, sem se importar com a possibilidade de que alguém a visse, de que alguém a encontrasse, sem tomar precauções, foi ao quarto de Barbosa, empurrou a porta, entrou.
 
O pavio da vela, quase inteiramente gasta, afogava-se em um lago de estearina derretida, que se acumulara na açucena do castiçal: a chama vasquejava, bruxuleava, ora iluminando vivamente o quarto, ora desaparecendo, quase submergindo tudo em trevas.
 
Barbosa estirado de costas, na cama, com as mãos a comprimir as têmporas, gemia. Lenita debruçou-se.
 
&mdash; Que tem? Que é isto? Perguntou-lhe.
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&mdash; Não é nada, é a minha enxaqueca. Mas retire-se, olhe que a vêem, vai amanhecer.
 
&mdash; Retirar-me, eu? Deixá-lo assim sofrendo, só? Não me conhece.
 
&mdash; Conheço, conheço muito bem. Eu não a repeliria, se me fosse precisa, se me fosse mesmo útil a sua presença. Mas nada me pode fazer. Isto não é moléstia, é incômodo; eu não estou enfermo, tenho dores.
 
&mdash; Quero ficar, eu não posso vê-lo padecer sem ao menos procurar aliviá-lo.
 
&mdash; Nada conseguiria senão me afligir e me agravar o sofrimento. Isto passa com o tempo, só com o tempo. Vá, peço-lhe, vá.
 
Lenita foi, muito contrariada.
 
Eram horríveis as enxaquecas de Barbosa.
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Começavam por uma dor surda de cabeça. Pouco a pouco acentuava-se urna displicência inexplicável em tudo e para tudo; as forças abatiam-se, prostravam-se; o rosto ficava pálido, dilatava-se a pupila do olho direito.
 
Penoso qualquer movimento, impossível qualquer esforço: Barbosa tinha de procurar o leito forçosamente, fatalmente. Um suor gélido umedecia-lhe, banhava-lhe a fronte. Do lado direito a artéria temporal saltava tumefata, engurgitada: o globo do olho contraía-se, minguava e, como se estivesse contundido, pisado, era sensível à mínima pressão. No alto da cabeça havia um ponto doloso, a sensação como de um prego que aí estivesse fincado. Cada pulsação, cada jato de sangue nas artérias era uma manelada que parecia fazer estalar o crânio e afundar mais o prego.
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O estômago enchia-se de bile. Uma fraqueza extrema, uma necessidade imperiosa de alimentos se fazia sentir; mas à simples idéia da ingestão de qualquer coisa, exacerbavam-se os sofrimentos todos. Na retina havia cintilações, moscas luminosas, subjetivas; o menor ruído, como avolumado por um microfone infernal, tomava-se em fracasso, em cataclismo de estrondo e dores no ouvido hiperestesiado. Não havia concentrar a atenção, pensar. Se nesses momentos viessem dizer a Barbosa que um incêndio devorava os seus livros preciosos, que seu pai e sua mãe pereciam nas chamas, ele nada poderia fazer, nem sequer tentar um esforço: a vontade estava abolida.
 
E durava, ia sempre até à noite esse sofrer inenarrável, essa tortura de réprobo.
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Amanheceu.
 
Logo que se abriam as portas, que começou a vida da fazenda, voltou Lenita para o quarto de Barbosa, sentou-se-Íhe à cabeceira, inquirindo solícita do que havia a fazer, do que era possível aproveitar em casos tais.
 
Que nada, que nada mesmo havia de tentar, repetiu Barbosa impaciente; que aquilo era um estado nervoso especial, hiperestético, só passava com o tempo, que à noite havia de estar bom.
 
Lenita com o tato indizível, com o jeito especialíssimo que têm as mulheres para enfermeiras, arranjou-lhe as almofadas e a travesseirinha em uma posição que lhe deu alívio; foi ao armário, procurou entre mil frascos, achou um quase cheio de xarope de cloral, trouxe, fez-lhe tomar quase à força du
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as colheres de sopa, grandes, a transbordar.
 
Depois apalpou-lhe os pés, sentiu-os frios, mandou vir uma botija com água quente, envolveu-a em uma toalha, pôs-lha sob eles, enrolou tudo em um cobertor, habilmente, quase sem incomodá-lo, como se não fizesse movimentos.
 
Os gemidos de Barbosa foram esmorecendo em um como queixume flébil, indistinto; cessaram, ele adormeceu.
 
Foi um sono longo, de duas horas pelo menos.
 
A moça não arredou pé um minuto: sentada à cabeceira, imóvel; em silêncio contemplava-o a dormir.
 
De repente ele acordou, sentou-se rápido, fez sinal, ordenou-lhe com gesto impaciente, irritado que se retirasse.
 
Lenita não obedeceu.
 
Barbosa, pálido, com as feições desfeitas,
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curvou-se, abriu desordenadamente, atabalhoadamente o criado-mudo, tirou o vaso, colocou-o junto de si sobre a cama. Ajoelhou-se.
 
Abdome, estômago, diafragma, esôfago, contraíram-se em uma náusea violenta: os zigomáticos distenderam-lhe a pele descorada e macilenta do rosto, e um jato de bile amarela e espumosa golfou no fundo do vaso, tingindo-lhe as paredes com os salpicos peganhentos.
 
Seguiu-se outro jato, e outro, e outro, vinha a bile, sem esforço não mais amarela, não mais espumosa, porém verde, líquida, linda até em sua pureza transparente.
 
Lenita, com dó profundo debuxado nas feições, sustentava-lhe a testa mádida.
 
Extenuado, Barbosa deixou-se cair
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pesadamente nos travesseiros, gemeu por um pouco, tornou a adormecer.
 
Lenita mandou retirar, lavar, trazer o vaso: depois retomou o seu posto junto do enfermo, velando-lhe com amor o sono sossegado.
 
Quando a chamaram para almoçar, foi em bicos de pés, sem fazer o mínimo rumor.
 
À narração circunstanciada do incômodo do filho, fez observar o coronel que lhe não dava aquilo cuidado, que o rapaz era atreito a enxaquecas desde a meninice, que até tinha melhorado com a idade, que os acessos iam ficando mais quarteados.
 
Lenita voltou para o quarto.
 
Ao virar do meio-dia, Barbosa acordou. Estava bom, completamente restabelecido, sentia fome, mandou vir comida.