Encarnação (José de Alencar)/XIV: diferenças entre revisões

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[[Categoria:Encarnação (José de Alencar)|Capítulo 14]]
 
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Depois de pequena demora na sala, Hermano convidou as senhoras para verem o interior da casa.
 
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&mdash; Em primeiro lugar o toucador, disse D. Felícia. que pretendia aferir a ventura da filha pelo luxo desse aposento especial.
 
Amália que passara adiante dirigia-se para o lado do edifício em que ela sabia desde muito achar-se a sala que servia de toucador a Julieta. Hermano, porém, adiantou-se com visível precipitação e tomou-lhe a passagem.
 
&mdash; Por aqui, Amália, disse ele um tanto perturbado e indicando com o gesto a direção oposta.
 
Ai estavam efetivamente os aposentos da noiva, onde a arte reunira todas as comodidades domésticas sob a forma mais graciosa, dando à riqueza dos móveis os realces da elegância.
 
Enquanto D. Felícia. regozijava-se com esse luxo, que esperava encontrar, e distribuia os seus elogios a cada peça, Amália observava silenciosamente,
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estudando com uma prevenção que não podia vencer, o aspecto e arranjo do aposento que lhe estava destinado.
 
A primeira circunstância que provocou sua atenção, foi o contraste saliente deste toucador com o outro, o anterior, que ela vira a primeira vez quando menina, e tornara a ver ultimamente...
 
Apesar de corresponder exatamente a repartição das duas asas do edifício e de terem portanto as salas o mesmo plano e as mesmas dimensões, tão opostas eram no adereço e arranjo que denunciavam o propósito de torná-los o mais diferentes que fosse possível.
 
O antagonismo manifestava-se em tudo, na pintura, na tapeçaria, nos ornatos, nos móveis. As cores desdiziam inteiramente. O primeiro toucador era azul e branco; este rosa e ouro. Os trastes daquele, de erable; os deste, de ébano. A colocação dos objetos inversa.
 
Quando D. Felícia. passou ao quarto de dormir. a filha disfarçou para não entrar; mas de relance percebeu que ali havia dominado o mesmo intuito.
 
Para Amália esta antítese foi uma cifra do pensamento recôndito de Hermano; e ela embalde perscrutou-lhe na fisionomia o verdadeiro sentido. O noivo satisfeito e contente com os elogios de D. Felícia. e com o interesse que a moça
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tomava por seu toucador, não revelava no semblante a menor preocupação.
 
Todavia Amália persistiu em descobrir um desígnio naquela circunstância que podia ser casual. O susto que sentira a princípio, com a idéia de ocupar os mesmos aposentos de Julieta, acabava de transformar-se em uma fria suspeita é que transpassava-lhe o coração.
 
Pensativa, reservada, seguiu a mãe durante a visita minuciosa, que fez ao resto da casa. Hermano, ocupado em mostrar à senhora os vários objetos do trem doméstico, não teve ensejo de reparar na frieza da noiva Se alguma vez achou-a recolhida e silenciosa, atribuiu sua timidez ao recato natural da menina, ante esse prólogo da vida conjugal, que se desdobra aos seus olhos de virgem noiva.
 
Nesse dia, quando Amália só e em liberdade, pôde coligir suas impressões e refletir sobre o incidente da visita, a suspeita que se aninhara em seu espírito cresceu, e tornou-se em certeza. A alma de Hermano estava escrita naquele símbolo, que ela a princípio não pudera decifrar.
 
Julieta ainda tinha naquela casa um templo onde era adorada ainda ela dominava e possuía tão completamente o coração do marido que este, apaixonado por outra mulher a quem ia ligar-se
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eternamente e na véspera dessa união, não podia banir de si o passado e divorciar se do primeiro amor.
 
Era por isso, era para conjurar as recordações implacáveis que surgiam a cada instante; para iludir-se emprestando uma virgindade artificial a emoções já outrora sentidas, que Hermano recorrera calculadamente àquela diversidade dos objetos que deviam cercá-lo na fase nova de sua vida.
 
Tinha feito como o pintor que obrigado a repetir um quadro histórico, buscasse na divergência das cores e na mudança das posições, uma novidade que faltava ao assunto; e sem a qual a monotonia lhe matada a inspiração.
 
Amália recordava-se de uma observação anterior. pintava-se a casa, notou que a asa direita do edifício continuava fechada; mas não deu a isso nenhuma importância, distraída como andava com outros cuidados. Agora tinha a explicação. Essa parte da casa, que fora particularmente habitada por Julieta, ficara intata. Era uma relíquia.
 
&mdash; É preciso romper este casamento! disse então Amália consigo.
 
Tomada a resolução, ela espreitou o ensejo de levá-la a efeito de modo que poupasse a suscetibilidade
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de Hermano. Quando estava só fortalecia-se no seu intento; mas quando chegava o noivo e ela o via tão feliz e tão regenerado por seu amor, não tinha ânimo de precipitá-lo daquele faqueiro transporte, que também a arrebatava.
 
Uma vez o amante exprobrou-lhe a esquivança que ela mostrava acerca desses projetos de futuro, os quais não passam muitas vezes de fantasias, mas são para os noivos como uma antecipação da felicidade conjugal.
 
&mdash; Quer saber a razão? disse Amália.
 
&mdash; Não é preciso que o diga. Se me amasse como eu a amo, achada o mesmo prazer nestas futilidades.
 
A moça respondeu-lhe com uma expressão grave e um olhar repassado de tristeza:
 
&mdash; Se não o amasse, como o amo, achada decerto prazer em falar nessas esperanças e promessas de uma ventura que é o meu sonho. Mas ao contrário elas me entristecem.
 
&mdash; Por quê, Amália? perguntou ele surpreso e inquieto.
 
&mdash;Tenho um pressentimento.
 
&mdash; Não diga isto!
 
&mdash; Não serei sua mulher, Hermano.
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O amante adivinhou a razão dessa dúvida que afligia o espírito da moça; e respondeu-lhe com uma queixa:
 
&mdash;Mostrei-lhe acaso, Amália, o menor indicio de arrependimento e hesitação para que retire o consentimento que me deu?.
 
&mdash; Não o retiro; dei-lhe a mão; ela pertence-lhe.
 
&mdash; Mas então quem se oporá à nossa felicidade?.
 
&mdash; Não sei; mas tenho medo que ela não se realize.
 
&mdash; Faltam tão poucos dias!
 
&mdash; Até à hora, ninguém sabe o que pode acontecer.
 
Hermano esforçou-se por dissuadir Amália daquela idéia, e com tanta efusão falou-lhe de seu amor, que ela deixou-se convencer, e creu enfim na possibilidade de ser feliz.
 
Se a moça cogitasse em um meio de fascinar o seu amante, de o prender ainda mais a si, não poderia escolher melhor do que este receio sincero por ela manifestado Desde aquele diálogo Hermano redobrou de extremos; e se já havia resumido sua existência em Amália, não viveu mais senão das horas que passava junto dela.
 
Ao chegar interrogava ansiosamente o semblante da
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moça receoso de ler nele a sua condenação. Depois de retirar-se, inventava pretextos para voltar uma e mais vezes, como para certificar-se de que nenhum acidente ameaçava de novo a sua felicidade.
 
Esse tempo foi para ele um continuo sobressalto e para Amália o mavioso enlevo de sentir-se amada com todas as emoções e todas as energias dessa alma opulenta. As dúvidas e receios de seu espírito dissiparam-se completamente. Tinha agora a confiança de seu poder, e a convicção de que Hermano lhe pertencia, e a ela unicamente.
 
E não advertiu que essa impulsão era talvez o efeito de um anelo estremecido pelo temor, e ao qual talvez sucedesse uma reação violenta.
 
No dia marcado celebrou-se o casamento. Não sábado, dia tão impropriamente pelo uso para esse ato solene. É com efeito difícil atinar com a relação que possa haver entre a véspera do repouso e o instante em que principia para o homem a grave responsabilidade de família Saturno devorando os filhos é um mau signo para a fecundidade do matrimônio.
 
Amália estava deslumbrante com seu traje de noiva. Os esplendores de sua beleza ardente tomavam através dos cândidos véus uns tons suavíssimos.
 
Hermano era o mesmo cavalheiro fino e elegante,
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que seus amigos tinham conhecido dez anos antes Se a flor da primeira mocidade passara, a fisionomia, como o porte, ganhara em distinção e naturalidade.
 
O Sr. Veiga festejou o casamento da filha com um baile suntuoso. As duas horas começou uma dessas intermináveis quadrilhas que servem de remate ordinário a semelhantes reuniões dançantes.
 
A alegria era geral; e os noivos foram dos que mais se divertiram. Ambos eles renasciam para a vida brilhante dos salões da qual se tinham por algum tempo afastado; ela durante a sua tristeza, ele durante a sua viuvez.
 
Já o nascente bruxuleava, quando o baile formou-se em procissão para acompanhar os noivos à casa.