Encarnação (José de Alencar)/XX: diferenças entre revisões

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[[Categoria:Encarnação (José de Alencar)|Capítulo 20]]
 
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Amália tinha razão de assustar-se.
 
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Hermano deixara o baile, decidido a realizar a sua idéia fatal. Contava que o pretexto do esquecimento da carteira lhe daria Uma hora de liberdade, e tanto bastava para consumar o plano medonho que havia concebido.
 
Ele prometera à mulher e a si mesmo jurara, dar à sua morte aparências de acidente, de desastre casual. Escolhera o incêndio. Sempre fora sectário da cremação. O corpo abandonado da alma era para ele matéria em corrupção: o fogo a purificava e consumindo imediatamente a forma humana, evitava a sua profanação, pois outro nome não têm certas cerimônias fúnebres.
 
Mas o seguro de sua casa não estava findo; e a consciência não lhe permitia fraudar os seguradores com a indenização que teriam de pagar a seus herdeiros pelo dano do incêndio Por isso foi obrigado a adiar o seu projeto. O termo da apólice tinha expirado na véspera estava livre enfim.
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Ao sair do baile, tomou um tílburi que o levou a casa. O portão estava cerrado apenas, e o Abreu, que fumava sentado na escada, veio ao seu encontro, admirado de não ver a senhora.
 
&mdash; Esqueci a minha carteira e vim buscá-la para pagar uma divida de jogo mas sinto-me tão fatigado que não tenho animo de voltar ao baile vou escrever um bilhete à senhora.
 
Deste modo afastou o velho criado cuja vigilância temia que pudesse frustrar o plano. No bilhete que por ele enviara à mulher, depois de escusar-se de ter saído do baile e de não ir buscá-la, rematava com estas palavras.
 
"Agora, Amália, é que eu conheço quanto a amo: pois esta curta ausência de alguns instantes parece-me uma separação eterna.
 
Ficando só Hermano trancou-se no toucador de Julieta. Depois de fechar as portas e janelas abriu os bicos de gás, e sentou-se em face da figura de cera. O aposento era apenas esclarecido pela vela do castiçal colocado sobre a mesa.
 
Acreditava aquele visionário que era bastante a vontade de reunir-se a Julieta para que sua alma deixasse este mundo e se restituísse à sua metade. Nessa convicção, havia jurado a Amália não matar-se; e tinha consciência de respeitar o seu juramento.
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Quando o gás que se exalava dos bicos abertos, se fosse condensando no aposento quase hermeticamente fechado, e afinal se inflamasse à luz da vela produzindo uma explosão, o incêndio o acharia morto já, e não serviria senão para destruir o seu despojo e as relíquias de Julieta, que não devia abandonar à alheia profanação.
 
Ele e tudo quanto amara não seriam mais do que cinzas, dispersas pelo vento; e no dia seguinte ninguém suspeitaria da verdade. Um incêndio é fato comezinho e tão freqüente!
 
Em cima da mesa estava uma fotografia em ponto grande, cuja moldura inclinada em estante mostrava Um lindo retrato. Amália o havia tirado poucos dias antes; e naquela tarde, aproveitando-se de uma ausência do marido, o colocara ali para fazer-lhe uma surpresa.
 
Esse retrato não era a imagem fiel da beleza radiante de Amália, mas a cópia da transformação que sofrera a moça depois de seu casamento, e especialmente nos últimos dias. Assim como o louro brilhante de seus cabelos se ofuscara na sombra de uma renda preta, também os fulgores dos grandes olhos, e o sorriso cheio de graça, eram amortecidos por uma doce melancolia. Parecia que um véu de timidez apagara-lhe a formosura cintilante.
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A luz da vela dava de chapa sobre a fotografia. Hermano olhou e viu pela primeira vez o retrato. Reconheceu o vulto, a atitude, o gesto, as roupas as jóias e uns matizes indefiníveis que só ele talvez percebesse. Era Julieta: mas através da sombra de Julieta, ao longe, como uma estrela imersa no azul surgia a imagem luminosa de Amália.
 
Foi então que esse cérebro já tão exaltado precipitou-se na derradeira e mais violenta das alucinações que o tinham abalado. As duas mulheres que Hermano havia amado neste mundo, erguiam-se em sua alma, como duas soberanas em campo de batalha, para disputarem o seu despojo.
 
Quando já a consciência da realidade o ia abandonando, ouviu rumor na casa e teve Um rápido momento lúcido para recear que o viessem perturbar na consumação de sua idéia sinistra. Ergueu-se e saiu fora, lembrando-se de fechar a porta, para que não se escapasse o gás, já condensado no aposento.
 
Foi mesmo às escuras trancar a comunicação para o fundo da casa onde estavam os criados, e livre do receio, caiu de novo no delírio, que o havia acometido, e no qual se apagaram os últimos lumes da razão.
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Nos raptos da imaginação, viu outra vez as duas esposas, a quem havia jurado fidelidade. Às vezes, elas se aproximavam, perto, muito perto, uniam-se estreitamente, e fundiam-se numa só massa vaporosa, donde surgia afinal essa mulher dúplice, essa Julieta-Amália, que estava pintada no retrato.
 
Pouco depois a imagem da esposa gêmea também por sua vez apagava-se em uma sombra indecisa, da qual se destacavam as duas moças, cada uma no seu tipo distinto Julieta com a esquisita elegância, que vestia de uma graça divina a sua figura apenas regular e Amália com a deslumbrante beleza, que materializava a sua alma, vazando-a em formas esplêndidas.
 
Em face uma da outra Amália triunfava. Ela era a aurora: e sua rival o crepúsculo suave e encantador. Assim Julieta timidamente, envolta no seu perfume de modéstia, afastava-se: e a sombra gentil e melancólica ia-se desvanecendo até esvair-se no fulgor que derramava a formosura da rival.
 
Foi então que Hermano sentiu uma dor agudíssima, como se lhe arrancassem vivo o coração. Arrojou-se com todo o ímpeto de seu amor para chamar a esposa, que se separava dele pela eternidade. Era ela a primeira amada, e nesse momento
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a única. A ela devia pertencer exclusivamente por isso iam unir-se outra vez: a morte que os tinha apartado não tardaria em ligá-los de novo, revertendo-os um ao outro.
 
&mdash; Julieta! exclamou ele em um grito de ânsia.
 
A esposa o tinha ouvido ali. Ali estava ela a seu lado. A luz desaparecera e os seus raios se haviam transformado em estrelas. Foi ao trêmulo dessa luz celeste que ele divisou a sombra amada. Ela trazia o seu traje favorito de baile, o mesmo com que a viu da primeira vez.
 
Julieta lhe cingira o colo com o braço e ele sentia o doce contato do talhe gentil na sua espádua e no seu flanco. Depois a voz terna e queixosa da esposa murmurou-lhe ao ouvido como um arpejo:
 
&mdash; Ingrato!....
 
&mdash; Perdão, Julieta, perdão! confesso que Amália me fascinou: mas o que eu amei nela foi unicamente a tua lembrança, a tua alma que às vezes eu ouvia em seus lábios, e via em seus olhos. O que era ela, e só ela, a sua beleza, essa eu a admirava mas enchia-me de terror. Resistia à tentação, refugiando-me em teu amor: e se tu não me amparasses, teria sucumbido! Salvei-me, preservei minha alma ela está pura como a deixaste,
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e vai reunir-se à tua pela eternidade. Eis o momento. Recebe-me em teu seio; não me deixes mais um instante neste mundo, pois aqui mesmo, perto de ti, próximo a infundir-me no teu ser, eu a vejo, eu a sinto, a ela, a Amália: e tenho medo que venha arrebatar-me de b e separar-nos para sempre.
 
A voz de Julieta murmurava-lhe então ao ouvido:
 
&mdash; Não tenhas este receio, meu Hermano. Queres saber por que tu vês Amália, em mim, em tua Julieta? É porque ela te ama como eu te amei, com igual paixão. Ela e eu não somos senão a mesma e única mulher que tu sonhaste. Podes dar-te a ela: é como se te desses novamente a mim. Vi que estavas triste e só no mundo; que a minha lembrança não te bastava; e então revivi em Amália, transmiti-lhe minh' alma para que fosse tua esposa; para que tu me adorasses em uma imagem viva, que te retribuísse, e não em uma estátua de cera.
 
&mdash; Embora; estou cansado de viver; quero reunir-me a ti, em espírito, desprendendo-me dessa materialidade impura, que pode subjugar a alma, e arrasta-la ao crime. Amália é minha esposa perante os homens; e desde que nela está a alma de minha Julieta, ela é também minha esposa
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perante Deus; poderei pertencer-lhe legitimamente, porque te pertenceria a ti: mas essa poderosa sedução de sua beleza, se eu a sofresse de outra mulher?.. Não passaria de novo pelo martírio que me atormentou?... Melhor é nos reunirmos no céu recolhe a alma que deste a Amália, e leva-nos com ela.
 
A voz melodiosa suspirou outra vez:
 
&mdash; Queres morrer, meu Hermano? Queres deixar o mundo? Pois bem, dá-me tua alma: deixa-me absorvê-la na minha, e confundi-las que não formem senão uma só. Então abandonaremos a terra e iremos esconder-nos no seio de Deus, que nos criou.
 
Então Hermano sentiu uns lábios que se embebiam nos seus e hauriam-lhe a vida. Esse beijo ideal foi como a inalação do espírito que animara o seu corpo e que absorvido por Julieta, o desamparou. Desde esse momento ele não foi mais do que uma múmia.
 
E assim, como um corpo ermo de vontade e pensamento, seguiu Julieta, ou melhor diria, a alma gêmea em que se tinham condensado a sua e a da esposa. Atravessaram uma série de anos eram os de sua existência, cujo curso haviam remontado, e agora de novo repassam. Todas as fases de sua história, ele as reviveu com uma mulher que não
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era nem Julieta, nem Amália mas as duas vazadas em um só molde.
 
O passado e o presente se travavam e confundiam. O seu primeiro casamento que fora de manhã, e o segundo que celebrara à noite as noivas, de tipos diversos; aqueles dois toucadores, um azul e branco, e outro rosa e ouro; todas essas coisas se haviam identificado.
 
A mulher que ele amara tinha a beleza de Amália e a alma de Julieta. Com essa mulher percorreu toda a sua vida até aquele momento em que resolvera deixar o mundo para consumar o consórcio da eternidade.
 
Uma nuvem branca e nítida vendava-lhe o céu. Ali estava um objeto cuja forma não distinguia; parecia-lhe o corpo, depurando a alma e preparando-a para a bem-aventurança.
 
Ele estava só; junto dele não havia outro corpo, mas uma essência divina, em que se imergia; um resplendor que se condensava em formas voluptuosas para envolvê-lo de luz. As chamas dessa luz o abrasavam, mas com uma lava doce e inebriante, que lhe acrisolava o ser. Enfim ele sentiu que sua alma desprendendo-se das cinzas, remontava ao céu.
 
Nesse momento D. Felícia que voltava do
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baile com o marido soltou um grito de terror vendo o grande clarão que avermelhava o horizonte.
 
Um incêndio violento devorava a casa de Hermano.