A Mulher de Preto/IV: diferenças entre revisões

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[[Categoria:A Mulher de Preto|Capítulo 04]]
 
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Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai.
 
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A sociedade era luzida e numerosa; Estêvão, embora vivesse muito arredado, achou ali grande número de conhecidas. Não dançou; viu, conversou, riu um pouco e saiu.
 
Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos poetas da Arcádia; era a flecha do amor.
 
Do amor? A falar a verdade não se pode dar este nome ao sentimento experimentado por Estêvão; não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam
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nos príncipes errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.
 
A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna. Estêvão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava daquelas feições. Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar à casa não pôde dormir.
 
Como verdadeiro médico que era, sentia em si os sintomas dessa hipertrofia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas páginas de matemáticas, isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espírito alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espírito ia ter com a viúva.
 
O cansaço foi mais feliz que Euclides: sobre a madrugada Estêvão Soares adormeceu.
 
Mas sonhou com a viúva.
 
Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade.
 
Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorriu.
 
&mdash; Casar-me! disse ele. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espírito receoso e
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ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquela mulher... e boa noite.
 
Começou a vestir-se.
 
Trouxeram-lhe o almoço; Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde, e saiu para ir ver alguns doentes.
 
Mas ao passar pela Rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde? A viúva disse-lhe o número; o médico porém estava tão embebido em ouvi-la falar que não o decorou.
 
Queria e não queria; protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe pedisse para saber o número da casa naquele momento.
 
Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora.
 
No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela Rua do Conde a ver se descobria a encantadora viúva. Não descobriu nada; mas quando ia tomar um tílburi e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrara Madalena.
 
Estêvão já tinha pensado nele; mas imediatamente tirou dali o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viúva era uma coisa que podia traí-lo.
 
Estêvão já empregava o verbo trair.
 
O homem em questão, depois de cumprimentar ao médico,
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e trocar com ele algumas palavras, disse-lhe que ia à casa de Madalena, e despediu-se.
 
Estêvão estremeceu de satisfação.
 
Acompanhou de longe o amigo e viu-o entrar em uma casa.
 
"É ali", pensou ele.
 
E afastou-se rapidamente.
 
Quando entrou em casa achou uma carta para ele; a letra, que lhe era desconhecida, estava traçada com elegância e cuidado: a carta recendia de sândalo.
 
O médico rompeu o lacre.
 
A carta dizia assim:
 
<blockquote>
Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quiser vir passar algumas horas conosco dar-nos-á sumo prazer.
 
Madalena C...
</blockquote>
 
Estêvão leu e releu o bilhete; teve idéia de levá-lo aos lábios, mas envergonhado diante de si próprio por uma idéia que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o bilhete e meteu-o no bolso.
 
Estêvão era um pouco fatalista.
 
"Se eu não fosse àquele baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as coisas podem nascer deste encontro fortuito. Que será? Eis-me na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa dela? A cortesia pede que vá.
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Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas idéias, e continuar a vida tranqüila que tenho tido."
 
Estava nisto quando Meneses lhe entrou por casa. Vinha buscá-lo para jantar. Estêvão saiu com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas.
 
Por exemplo:
 
&mdash; Acredita no destino, meu amigo? Pensa que há um deus do bem e um deus do mal, em conflito travado sobre a vida do homem?
 
&mdash; O destino é a vontade, respondia Meneses; cada homem faz o seu destino.
 
&mdash; Mas enfim nós temos pressentimentos... Às vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deus benfazejo que no-los segreda?
 
&mdash; Fala como um pagão; eu não creio em nada disso. Creio que tenho o estômago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no Hotel de Europa em vez de ir à Rua do Lavradio.
 
Subiram ao Hotel de Europa.
 
Ali havia vários deputados que conversavam de política, e os quais se reuniram a Meneses. Estêvão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viúva, a carta e o sândalo.
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Assim, pois, davam-se contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estêvão.
 
Dizia por exemplo um deputado:
 
&mdash; O governo é reator; as províncias não podem mais suportá-lo. Os princípios estão todos preteridos, na minha província foram demitidos alguns subdelegados pela circunstância única de serem meus parentes; meu cunhado, que era diretor das rendas, foi posto fora do lugar, e este deu-se a um peralta contraparente dos Valadares. Eu confesso que vou romper amanhã a oposição.
 
Estêvão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto:
 
"Com efeito, Madalena é bela, é admiravelmente bela. Tem uns olhos de matar. Os cabelos são lindíssimos: tudo nela é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?... Contudo sinto que vou amá-la. Já é irresistível; é preciso amá-la; e ela? que quer dizer aquele convite? Amar-me-á?"
 
Estêvão embebera-se tanto nesta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estêvão entregue ao seu pensamento respondeu:
 
&mdash; É lindíssima!
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&mdash; Ah! disse o deputado, vejo que o senhor é ministerialista.
 
Estêvão sorriu; mas Meneses franziu o sobrolho.
 
Compreendera tudo.