A Viúva Simões/IV: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Viúva Simões|Capítulo 04]]
 
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O caráter de Ernestina ia-se transformando rapidamente. Depois da visita de Luciano, ela passou uns dias muito sombria e ríspida, indignada consigo mesma contra as idéias que lhe iam nascendo como rebentões novos em tronco maduro, diversas em tudo das antigas, que se despegavam como folhas secas... Enraivecia-a a lembrança da sua fraqueza e condescendência, deixando Luciano recordar coisas perigosas... Ah! se pudesse voltar atrás recomeçar todo o tempo da visita, como se faria impassível, serena e austera!
 
As coisas agora eram bem outras! Ainda há pouco tempo ela não saía de casa e impunha à filha, rigorosamente, todos os preceitos e tristezas
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do luto. Eram então baldados os convites da Georgina Tavares, que morava ao lado e que não faltava com os pais a instâncias e oferecimentos. Nada! Sara tinha muitas vezes desejo de ir a uma ou outra soirée, mas respondia gaguejando que não, à espera que a mãe consentisse.
 
Ernestina conservava-se muda e Georgina retirava-se desapontada e triste. No dia seguinte esta corria logo cedo a vazar nos ouvidos da amiga as suas impressões do baile ou do teatro, e era então um chilrear de risadinhas sufocadas e de exclamações por coisas apenas entrevistas por uma nas descrições muito falhadas e entrecortadas da outra.
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E as cenas atropelavam-se.
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Georgina ia e vinha muito ligeira, esquecia minúcias que ligavam o entrecho, voltava atrás, parava de repente para um detalhe, descrevia os vestidos das atrizes e atrapalhava-se a miúdo embrulhando cenas ou repetindo frases.
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- Que pena que você não ouça a Theodorini!
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- E a música?
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- Muito chic! Toda de branco, com pérolas no pescoço e violetas na cintura... o marido, que tolo! Deixava de olhar para ela para se derreter para a prima, que é uma lesma!
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- Que prima?
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Era o ponto final.
 
Ernestina, que fora sempre inflexível às solicitações
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da filha para saídas e divertimentos, mudara completamente de parecer depois da visita de Luciano.
 
Agora, ela não sabia mesmo por que, sentia necessidade de andar, divertir-se, num ambiente diverso do seu.
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Ernestina disse à filha que se não vestisse antes das duas horas, e dirigiu-se para o seu quarto. O diabinho da Simplícia é que sabia bem o lugar de todas as coisas, e veio pressurosa ajudar a ama, observando-a de esguelha, como se lhe estudasse os movimentos. Começou a dispor das roupas para a saída, com o maior esmero. Os crepes do luto passavam do guarda-vestidos para cima da cama, onde Ernestina os examinava com cuidado.
 
A Simplícia ia e vinha, sumindo as mãos magras nas gavetas, retirando as roupas brancas e os fichus,
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lenços e meias de seda. De vez em quando, num giro rápido, ocultava no seio, sutilmente, um rolo de fitas, sem que a viúva desse por tal, mas vinha logo estender na cama o leque, as luvas, o véu, a saia de seda, até o chapéu de sol, que ela escovava com minúcia. Tudo pronto, Ernestina mandou-a sair mas a rapariga achou jeito de se chegar para o guarda-vestidos, ainda escancarado, e de exclamar com modo lisonjeiro:
 
- Iaiá é a moça de mais gosto que há em Santa Tereza!... É preciso Iaiá se casar outra veiz para usá seus vestidos claros... Hi! Iaiá fica bonita com roupa clara!
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A Simplícia saiu e a moça fechou-se por dentro. Foi então para outro quarto contíguo, onde estava o toucador. Sentou-se em frente ao espelho e ensaiou penteados novos pacientemente, a ver se algum lhe ficaria melhor que o habitual; venceu por fim o costumado; o cabelo parecia ir tombando sozinho, nas ondulações naturais. A viúva curvou-se, observou de perto os dentes, perfumou-se muito, sorrindo para o espelho, achando bonito o seu rosto oval, onde as pestanas faziam sombra.
 
Em frente dela, sobre o mármore, o perfumista Guerlin parecia ter despejado, profusamente,
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os seus mais finos produtos. Potes de porcelana, vasos de cristal, bocetas de veloutine exalavam um aroma confuso, forte, entontecedor.
 
Sozinha naquele quarto em que a sua imagem se duplicava, Ernestina estudava os seus movimentos procurando ao mesmo tempo adivinhar qual seria, entre tantos, o perfume preferido de Luciano.
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Isso exacerbava a voluptuosidade da moça, irritando-a no mesmo tempo. Desmanchava com mãos nervosas, na água simples, as nuvens opalinas das essências e quedava-se depois observando os seus ombros delicados e nus, os seus formosos braços e a maciez do seu colo airoso.
 
Vestia-se devagar, demoradamente. A lã preta do luto repugnou-lhe; aquele trajo áspero e triste não era o que o seu corpo desejava. A pele
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bem tratada queria seda, um contato macio que caísse sobre ela como uma caricia...
 
Abriu a gaveta das jóias, apalpou os anéis de brilhantes e de pérolas, as pulseiras e o seu alfinete predileto, um botão de rubi e brilhantes. Mas sobre a lã do vestido as jóias iam mal, e o mundo impedia-lhe o prazer de as trazer com o luto.
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- É sim, vai descendo... eu já vou.
 
Sara descia o jardim quando sentiu os passos apressados da mãe. Ernestina impacientara-se com a espera do bonde para o elevador, e embaixo, com o outro que a levasse a S. Francisco. Falava em comprar carro, mudar mesmo de bairro, ir para Laranjeiras. Sara estranhava aquilo, fazendo objeções. Concordava com a aquisição do carro, mas opunha-se à troca de casa; aquela em que viviam estava cheia de recordações do pai: o escritório,
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sua varanda predileta... os cantos preferidos no terraço, na sala de jantar... até as plantas fora, árvores e roseiras cultivadas por ele! Suplicava que não falasse nisso.
 
Chegadas à cidade Ernestina procurava em não esconder o seu alvoroço. Sara fê-la entrar na Notre Dame, encantada pela exposição das vitrines. A mãe deixava-a perto do balcão, sozinha e dirigia--se amiudadamente à porta, numa ansiedade febril.
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Cansada de pedir conselhos à mãe, Sara passava sozinha do rayon das lãs para os das sedas, das capas, dos chapéus, das rendas, de tudo!
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Comprava aqui, ali, acolá, meio tonta, magnetizada por tantas coisas brilhantes e bem dispostas.
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As escomilhas, as gazes, as tules transparentes, as sedas muito claras, de tecidos mimosos lembravam-lhe bailes, acendiam-lhe desejos de valsas, cortadas por frases curtas ao som ritmado da música. As sedas pretas, os livros de missa, as grandes franjas do vidrilho, chamavam-na de repente a festas de igreja, muito solenes, onde o bispo abençoasse o povo... Dali saltava para o ménage; as toalhas de linho adamascadas com barras vermelhas, ouro velho e azul persa, sorriam-lhe, chamando-a para a sua alegre sala de jantar, cheirando as belas rosas - marechal Niel, que se enroscavam às janelas. E ela apalpava pelúcias cor de fogo e rendas cor de opala, pensava em toilettes de teatro, de baile, de recepção, de passeio, vendo as fitas desenroscarem-se dentre as mãos de um caixeiro, como serpentes multicores e tentadoras, e contemplando os grandes leques de plumas, que uma moça escolhia perto do balcão.
 
Queria comprar tudo; encontrava uma aplicação imediata para cada objeto. A moda sorria-lhe, chamava-a para fora daquele luto, daquela vida austera, concentrada e simples do seu chalet. Invejava as mulheres que freqüentam
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a sociedade arrastando capas de arminhos em corredores de teatros e caudas de veludo nos salões de baile.
 
Na ocasião do pagamento, Sara correu a mãe, que não saíra da porta. Ernestina entregou-lhe a carteira, que fosse sozinha à caixa, ela esperaria ali.
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De pé, na soleira da porta, a viúva olhava para a multidão que passava, esperando, a todos os minutos, o Luciano... Pela lã mole do seu vestido preto roçavam as saias de seda e as saias de chita das outras mulheres que passeavam devagar ou que passavam apenas, na pressa dos que trabalham.
 
Na esquina, perto, estacionavam os vendedores de flores; os seus ramos de cravos e violetas embalsamavam o ar; e era um encanto ver a variedade de rosas finas, brancas, amarelas, escarlates, cor de rosa, e os raminhos de miosótis,
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de um azul delicado, dormindo na concha verde e macia de uma folha de malva, mais as formosas camélias da Petrópolis de uma alvura puríssima...
 
No meio da rua, um homenzinho cor de folha seca atraía a criançada segurando pelos fios os alegres balões de gás, vermelhos e azuis, muito leves, que bailavam sobre a onda movediça dos chapéus escuros.
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- Por quê?!
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- Está com ar esquisito... tem alguma coisa?
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D. Candinha adorava o marido, negociante português, homem generoso, que lhe fazia todas as vontades e ainda pagava colégio de luxo às cunhadas e casa a duas tias velhas, irmãs do sogro.
 
Estiveram conversando algum tempo, até que
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Ernestina, muito impaciente, arrastou a filha consigo.
 
De longe em longe alguns conhecidos faziam-nas parar, manifestando espanto por encontrá-las na cidade, tão raro isso era. Sara ria-se, Ernestina respondia, seguindo com o olhar a turba que passava. Em uma dessas ocasiões conversavam com um velho, amigo do finado Simões quando Ernestina julgou ver Luciano ao longe.
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- Não!... respondeu Ernestina embaraçada; há muito tempo que não saio e esta bulha incomoda-me. Vou para casa.
 
Entretanto, seguiu caminho oposto e até as 6 horas subiu e desceu a rua do Ouvidor, deixando Sara comprar o que lhe aprouvesse, sem a mínima intervenção, num verdadeiro suplícioverdadeirosuplício.