A Reforma das Coristas: diferenças entre revisões

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[[Categoria:Crônicas brasileiras]]
[[Categoria:Cinematógrafo]]
 
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Naturalmente nós todos começamos a rir. A pequena tinha jeito para a coisa. Cada gesto seu era um modelo de topete e de cinismo, deste cinismo de bombonière em montra de confeiteiro, um cinismo que se oferecia, que se ofertava, que estava ali. No meio das outras, os cabelos louros repuxados para trás como a crina de uma poldra, o dorso cilhado pelas barbatanas do colete que lhe comiam o ventre, pondo em relevo a linha das ancas, o busto empinado, as mãos adejantes, a garota dançava como ninguém a vertigem do cake-walk. Fora Cinira Polônio, a estrela coruscante, que com seu faro de teatro descobrira na linha de vinte coristas aquele diabo.
 
- Olhem - fazia ela - por que não dançam vocês com a pequena?
 
Imediatamente, todos
Imediatamente, todos os olhos convergiram para o bichinho, minutos antes anônimo. O maestro parou: "- Homem, realmente, estou vendo isso mesmo!" O empresário coçou a cabeça, e todo o teatro, naquela hora de ensaio, em que a crua violência do sol do terraço tomava um esmorecido ar cerúleo para os lados do palco, esperou com um sorriso pregado na face. As coristas, algumas conservavam as mãos no ar e eram uma galeria de caras empapuçadas ainda do sono da manhã, mas bem moças, bem fortes. Cinira Polônio fez um gesto.
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Imediatamente, todos os olhos convergiram para o bichinho, minutos antes anônimo. O maestro parou: "- Homem, realmente, estou vendo isso mesmo!" O empresário coçou a cabeça, e todo o teatro, naquela hora de ensaio, em que a crua violência do sol do terraço tomava um esmorecido ar cerúleo para os lados do palco, esperou com um sorriso pregado na face. As coristas, algumas conservavam as mãos no ar e eram uma galeria de caras empapuçadas ainda do sono da manhã, mas bem moças, bem fortes. Cinira Polônio fez um gesto.
 
- Venha cá você.
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- Venho da casa de Chica Pereira, estou lá por causa de um sujeito que me queria explorar. Compreende, eu não sou dessas. Foi lá que eu aprendi o cake-walk com os ingleses, uns diabos, madame, que é chegar e é vestirem-se com a roupa da gente.
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- E que idade tens tu?
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Todo o pessoal do teatro, coristas e carpinteiros, atrizes e atores, não teve uma pilhéria. A pequena tomou o seu ar mais arrogante, desceu à platéia, sumiu-se no terraço com os agentes, como quem vai esbofetear alguém.
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- Mas que juiz esse que deseja moralizar uma pequena de tanta força.
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- O diabo é que a rapariga tem jeito. Bom! A postos, minhas senhoras. Maestro, repita.
 
De novo o piano começou o cake-walk e as mulheres de capa larga, com a face desbotada pela noite em claro, moveram-se num rumor de sedas roçadas. Eu, a um canto, vendo passar no palco aquele punhado de mulheres, que à noite acenderia desejos na platéia, pensava na vida curiosa das coristas nacionais. Ah, as coristas! Neste país em que as mulheres não têm grandes necessidades, o posto de corista era positivamente dado às infelizes. Os autores nada lhes faziam nas peças alegres, nem as punham em relevo. Eram damas ou muito gordas ou muito magras, lamentavelmente sem graça. Quando aparecia uma criatura mais moça, ou não demorava, ou morria, ou era logo artista empurrada pelos cômicos, jungida às ligações violentas. E era uma tristeza ver mulheres velhas com famílias numerosas, o ventre enorme, o corpo numa elefantíase de linhas, cambando os sapatos e sujando as gazes, clamarem nos revistões cariocas: "Nós somos as ninfas", ou outra qualquer afirmação ainda mais escandalosa, para ganhar cinco mil-réis... Era angustioso. Nos ensaios, os ensaiadores esgoelavam-se para fazê-las compreender um gesto comezinho, nos intervalos, algumas davam
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de mamar aos filhos enquanto as outras se remordiam numa inconsciente miséria entre os carpinteiros bastante maus para atirar-lhes cenários e maços de cordas. As coristas! Eram os canhões de bucha, enquanto a estrela mudava de roupa e o ator principal punha outro colarinho. E não havia quem quisesse ser corista. Algumas tinham vinte anos de trabalho efetivo, talvez mais. Algumas eram contemporâneas da primeira revista nacional.
 
E agora, com a transformação das ruas, a cidade escamava de súbito a indignidade e o vício, mostrava todas as furnas do caftismo e nós víamos, ao desejo do luxo, ao contato com o horror, uma flora precoce de pequenas depravadas, galgando o tablado com uma ânsia de bacanal e piscando de lá o olho, na idade em que deviam brincar o ciranda-cirandinha das estalagens onde nasceram... Era ou não a civilização, era ou não o Rio reflexo de Paris, era ou não a cidade igual a todas as outras cidades, com as mesmas necessidades, a coréia de cinismo e o mesmo apetite pelos frutos ácidos, pela mocidade que todas as cidades velhas possuem? De embrulhada, o teatro também se transformava, e no gênero alegre nós iríamos ouvir as graças (sim, as graças, tudo é possível...) dos revisteiros apimentadas, esquentadas por todo aquele excesso de provocações fesceninas...
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Mas que iriam fazer as outras, as velhas, as mães de família? Que iriam fazer esses bonecos de música desafinada, que durante decênios se estatelaram em cena, cantando como que a mesma coisa sempre? Como se alimentariam as pobres, agora, depois de uma vida inteira passada a dizer - "Nós somos, nós somos...", num coro vazio e lamentável, vestindo em cetins baratos todas as fantasias desde a de flor à de animal?
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- Mas o que é? - fiz, intervindo.
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- Que tem com isso? - indagou ele. Venho buscar minha mulher.