Os Livres Acampamentos da Miséria: diferenças entre revisões

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|obra=Os Livres Acampamentos da Miséria
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|autor=João do Rio
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|seção=Os Livres Acampamentos da Memória
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Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antônio, quando encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso - um soldado sem número no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um rapazola gigante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era no Largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia de operetas italiana e paravam a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia. Acerquei-me.
 
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Desafinadamente, os violões vibraram. Benedito cuspiu, limpou a boca com as costas da mão, e abriu para o ar sua voz áspera:
 
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O morro de Santo Antônio
Já não é morro nem nada...
</poem>
 
Vi, então, que eles se metiam por uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho, que serpeava descendo, era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão com cercados, indicando quintais. A descida tornava-se difícil. Os passos falhavam, ora em bossas em relevo, ora em fundões perigosos. O próprio bando descia devagar. De repente parou, batendo a uma porta.
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Há casas de casais com união livre, mulheres tomadas. As serenatas param-lhes à porta, há raptos e, de vez em quando, os amantes surgem rugindo, com o revólver na mão. Benedito canta à porta de uma:
 
<poem>
Ai! Tem pena do Benedito
Do Benedito Cabeleira.
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Mas também há casas de famílias, com meninas decentes. Um dos seresteiros, de chapéu panamá,. diz de vez em quando:
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Atrás, o bolo dos seresteiros berrava:
 
<poem>
O morro de Santo Antônio
Já não é morro nem nada...
</poem>
 
E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis. De repente, lembrei-me que a varíola cairia ali ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca dos variolosos. Então, apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na pérola da madrugada as estrelas palpitantes e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos.
 
''Vida vertiginosa - 1917''
 
 
[[Categoria:Contos (João do Rio)]]