Os Livres Acampamentos da Miséria: diferenças entre revisões

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Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antônio, quando encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso - um soldado sem número no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um rapazola gigante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era no Largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia de operetas italiana e paravam a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia. Acerquei-me.
 
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- Mas aqui no largo?
 
- Aqui foi só para comprar um pouco de pão e
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queijo. Nós moramos lá em cima, no morro de Santo Antônio...
 
Eu tinha do morro de Santo Antônio a idéia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a seresta morro acima, em sítio tão laboriosamente grave. Dei o necessário para a ceia em perspectiva e declarei-me irresistivelmente preso ao violão. Graças aos céus não era admiração. Muita gente, no dizer do grupo, pensava do mesmo modo; indo visitar os seresteiros no alto da montanha.
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- Seu tenente Juca - confidenciou o soldado - ainda ontem passou a noite inteira com a gente. E ele quando vem, não quer continência nem que se chame de seu tenente. E só Juca... Vossa Senhoria também é tenente. Eu bem que sei...
 
Já por esse ponto da palestra nós íamos nas sombras do Teatro Lírico. Neguei fracamente o meu posto militar, e começamos a subir o. celebrado morro, sob a infinita palpitação das estrelas. Eu ia à frente com o soldado jovem, que me assegurava do seu heroísmo. Atrás o resto do bando tentava cantar uma modinha a respeito de uns olhos fatais. O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade, no admirável noturno de sombras e luzes, e apresentando de outro as fachadas dos prédios familiares ou as placas de edifícios
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públicos - um hospital, um posto astronômico. Bem no alto, aclareada ainda por um civilizado lampião de gás, a casa do doutor Pereira Reis, o matemático professor. Nada de anormal e nem vestígio de gente.
 
O bando parou, afinando os violões. Essa operação foi difícil. O cabrocha que levava o embrulho do pão e do queijo, embrulho a desfazer-se, estava no começo de uma tranqüila embriaguez, os outros discutiam para onde conduzir-me. O soldado tinha uma casa. Mas o Benedito era o presidente do Clube das Violetas, sociedade cantante e dançante com sede lá em cima. Havia, também, a casa do João Rainha. E a casa da Maroca? Ah! mulher! Por causa dela já o jovem praça levara três tiros... Eu olhava e não via a possibilidade de tais moradas.
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Vi, então, que eles se metiam por uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei num outro mundo.
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A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho, que serpeava descendo, era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão com cercados, indicando quintais. A descida tornava-se difícil. Os passos falhavam, ora em bossas em relevo, ora em fundões perigosos. O próprio bando descia devagar. De repente parou, batendo a uma porta.
 
- Epa, Baiano! Abre isso...
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Abriu-se a porta lateral e apareceu primeiro o braço de um negro, depois parte do tronco e finalmente o negro todo. Era um desses tipos que se encontram nos maus lugares, muito amáveis, muito agradáveis, incapazes de brigar e levando vantagem sobre os valentes. A sua voz era dominada por uma voz de mulher, uma preta que de dentro, ao ver quem pagava, exigiu logo seiscentos réis pela garrafa.
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- Mas, seiscentos, dona...
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Mas, Benedito e os outros punham em grande destaque o pagador da passeata daquela noite, e, não resistindo à curiosidade, eles abriram a janela da barraca, que ao mesmo tempo serve de balcão. Dentro ardia, sujamente, uma candeia, alumiando prateleiras com cervejas e vinhos. O soldadinho, cada vez mais tocado, emborcou o corpo para segredar coisas. O Baiano saudou com o ar de quem já foi criado de casa rica. E aí parados enquanto o pessoal tomava Parati como quem bebe água, eu percebi, então, que estava numa cidade dentro da grande cidade.
 
Sim. É o fato. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá em cima. As casas não se alugam. Vendem-se. Alguns são construtores e habitantes, mas o preço de uma casa regula de quarenta a setenta mil-réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de Flandres, taquaras. A grande artéria da urbs era precisamente a que nós atravessávamos. Dessa, partiam várias ruas estreitas, caminhos curtos para casinhotos oscilantes, trepados uns por cima dos outros. Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida na entrada do arraial de Canudos,
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ou a funambulesca idéia de um vasto galinheiro multiforme. Aquela gente era operária? Não. A cidade tem um velho pescador, que habita a montanha há vários lustros, e parece ser ouvido. Esse pescador é um chefe. Há um intendente geral, o agente Guerra, que ordena a paz em nome do doutor Reis. O resto é cidade. Só na grande rua que descemos encontramos mais dois botequins e uma casa de pasto, que dá ceias. Estão fechadas, mas basta bater, lá dentro abrem. Está tudo acordado e o Parati corre como não corre a água.
 
Nesta empolgante sociedade, onde cada homem é apenas um animal de instintos impulsivos, em que ora se é muito amigo e grande inimigo de um momento para o outro, as amizades só se demonstram com urna exuberância de abraços e de pegações e de segredinhos assustadora - há o arremedo exato de uma sociedade constituída. A cidade tem mulheres perdidas, inteiramente da gandaia. Por causa delas tem havido dramas. O soldadinho vai-lhes à porta, bate:
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- Que admiração, gente!... Todo o mundo!
 
Há casas de casais com união livre, mulheres tomadas. As serenatas param-lhes à porta, há raptos e, de vez em quando, os amantes surgem
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rugindo, com o revólver na mão. Benedito canta à porta de uma:
 
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- Minha mulher.
 
Para cá da estopa, uma espécie de sala com algumas figurinhas nas paredes, o estandarte do clube, o vexilo
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das Violetas embrulhado em papel, uma pequena mesa, três homens moços roncando sobre a esteira de terra fria ao lado de dois cães, e, numa rede, tossindo e escarrando, inteiramente indiferente à nossa entrada, um mulato esquálido, que parecia tísico. Era simples. Benedito mudou o casaco e aproveitou a ocasião para mostrar-me quatro ou cinco sinais de facadas e de balaços no corpo seco e musculoso. Depois cuspiu:
 
- Epa, José, fecha...
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- Nós trouxemos ceia! - gaguejou um modinheiro.
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Aí é que lembramos o pão e o queijo, esmagados, amassados entre o braço e o torso do seresteiro. Havia, porém, cachaça - a alma daquilo - e comeu-se assim mesmo, bebendo aos copos o líquido ardente. O jovem soldadinho estirou-se na terra. Um outro deitou-se de papo para o ar. Todos riam, integralmente felizes, dizendo palavras pesadas, numa linguagem cheia de imprevistas imagens. João Rainha, com os braços muito tatuados, começou a cantar.
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- Pois está claro.
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Atrás, o bolo dos seresteiros berrava:
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E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis. De repente, lembrei-me que a varíola cairia ali ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca dos variolosos. Então, apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na pérola da madrugada as estrelas palpitantes e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos.
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