A Alma do Lázaro/I/I: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Alma do Lázaro|Primeira Parte, Capítulo 01]]
 
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Triste irrisão é a glória. Quantos engenhos sublimes, criados para as arrojadas concepções, que ficam aí tolhidos pelo estalão do viver banal, senão sepultos em vida na indiferença, quando não é no desprezo das turbas?
 
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E dizer que homens de são juízo labutam ou porfiam após esse fogo4átuo, e deslumbram-se a ponto de esquecerem afetos e bens, sacrificados em má hora à ilusão falaz!
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Lá volvem os anos; e um dia vem à flor da terra o crânio que foi um poeta, ou um herói. Quem se importa com o sobejo dos vermes? É um pouco de cal e nada mais. Não tarda que a pata do homem ou do bruto passando por aí triture esse pó, a que animou outrora o sopro de Deus, mens divinior.
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Muitas vezes sucedia-me nas vigílias do estudo apanhar o eu em flagrante delito de literatura, a idear romances e fantasiar dramas, enquanto lá o outro, o estudante de carne e osso, tressuava às voltas com o ''Corpus Juris Civilis''.
 
Qual é a alma que nas primeiras expansões da
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vida, a dilatar-se pelos largos horizontes desta terra do Brasil; a embeber-se nas ondas de luz que imergem essa porção mimosa da criação; a coar-se nas harmonias das brisas que passam pelas florestas, não solta o vôo e se arroja ao céu, embora o calor do sol lhe requeime as asas, precipitando-a num oceano, que é a dúvida!
 
Era poeta; posso confessá-lo agora que essa veleidade passou de uma feita e já agora não voltará mais.
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Olinda, a velha cidade em ruínas, abrigando no seio a mocidade rica de seiva e de vida; o passado com todas as suas gloriosas recordações, e o futuro com as suas brilhantes esperanças; essa aliança misteriosa de dois mundos, de duas gerações, uma apenas em flor, a outra já cinzas, separadas pelo tempo, e reunidas pelas vicissitudes da existência humana, me impressionava profundamente.
 
A descuidosa jovialidade da vida do estudante, o riso franco, o dito chistoso, a magra ceia que o prazer fazia lauta, o descante livre, tudo isto que em outra cena seria tão natural, me parecia
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uma profanação no meio desses muros aluídos, desses claustros ermos, sobre esse túmulo de uma população extinta, à face dessa cidade múmia.
 
Meu gosto era vagar à calada da noute por aquelas ruas solitárias, quando cessava o arruído, quando a palpitação e o resfolgar de emprestada existência já não galvanizava o cadáver da nobre e florescente vila de Duarte Coelho.
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O silêncio que pesava sobre aquela solidão era apenas interrompido pelo esvoaçar dalguma ave noturna no âmbito do claustro, pelo estalido das lendas que se abriam nos muros, e pelo atrito das escaras soltas das velhas paredes.
 
Às vezes a lua vinha dar a esta cena triste e grave traços fantásticos, e um toque de sua doce e suave melancolia. Os raios da luz pálida e alvacenta, esbatendo-se nas pedras do átrio, enfiando pelas largas frestas, e debuxando nos claros
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sombras esguias, criavam mil formas incertas e vacilantes.
 
Era por momentos como um vasto lençol que amortalhava as ruínas do antigo edifício; logo depois afiguravam-se vultos de carmelitas cobertos da alva estamenha, a percorrer o claustro solitário, e a murmurar as sagradas litanias; alguma vez parecia-me ver passar diante de meus olhos uma dessas lâmias, de que a imaginação popular em outras eras povoou os templos abandonados.
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Aí as recordações históricas, dormidas sobre este solo, em cada pedra que tombara das antigas construções, acordavam umas após outras no meu espírito, e me faziam reviver na memória os dous séculos que tinham volvido sobre as diversas gerações de homens e de casas, de que apenas restavam alguns nomes e alguns muros.
 
O mar a perder-se no horizonte lembrava-me a flotilha de Duarte Coelho, o donatário de Pernambuco, aportando aquela costa em 1535, e trazendo a seu bordo a colônia que nesse mesmo ano fundou a vila de Olinda, com o auxílio dos chefes índios, Miraubi, Itagipe e Itabira, e das suas tribos selvagens. Lembrava-me a grande armada holandesa comandada por Lecoq,
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que surgiu a 14 de fevereiro de 1631 diante da cidade, e em alguns dias assenhoreou-se dela com fácil vitória, pelo terror que se apoderou dos habitantes, apesar dos esforços de Matias de Albuquerque.
 
Lembrava-me os combates navais das forças espanholas e portuguesas contra os holandeses, especialmente o de 12 de setembro de 1631 em que Pater, depois de sete horas de peleja, batido por Oquendo, abandonado da tripulação em sua nau presa das chamas, preferiu à salvação, que tinha por desonra, uma morte gloriosa, e, envolvendo-se na bandeira nacional, sepultou-se no oceano, único túmulo digno de um almirante batavo.
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O istmo, os Fortes do Mar e de São Jorge, o antigo Colégio dos Jesuítas e o Convento de São Francisco, recordavam a resistência heróica dos poucos que não abandonaram o seu general na defesa da colônia, mas que afinal foram obrigados a ceder ao número.
 
Os edifícios em ruína ainda tinham gravados nos seus muros os vestígios do incêndio que em 1631 os holandeses lançaram à cidade, quando reconheceram a impossibilidade de conservá-la e
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a necessidade de concentrar-se no povoado do Recife. Além, a várzea que se estendia pela margem direita do Beberibe, semeada de quintas e de jardins, apresentava ainda o sítio desse Arraial do Bom Jesus, centro da resistência heróica, com que durante o espaço de cinco anos os pernambucanos fizeram esquecer por feitos e ações gloriosas, dignas da idade homérica, um momento de fraqueza e temor na rendição da colônia.
 
Enfim, aquela solidão e silêncio testemunhavam a decadência de Olinda, que a fundação da cidade Maurícia, mais do que o incêndio, apressara, sobretudo depois que a guerra civil dos Mascates roubou-lhe, para dar à sua rival, a primazia como capital de Pernambuco.
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E quando todas essas recordações tinham voado e revoado por meu espírito, interrogava os muros do convento e os cômoros de pedras; como para arrancar-lhes o segredo de algum fato interessante de que se perdera a tradição, ou a palavra de algum drama desconhecido, que o coração naturalmente representara a par com acontecimentos políticos.
 
A guerra, o incêndio, a luta das raças, as revoluções, não
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passaram por ai sem o cortejo infalível das paixões humanas. Os feitos de armas, as ações de heroísmo, o morticínio, o crime e a virtude em suas enérgicas manifestações, deviam prender-se necessariamente por um fio misterioso a alguma história de amor, ou a algum episódio de vingança.
 
Era justamente essa crônica do coração, esquecida pelos analistas do tempo, que eu pedia àquelas rumas.
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Mas o velho convento ficava mudo e impassível: os muros, levados pela chuva e pelo vento, estavam descarnados; as pedras já não conservavam os vestígios da mão do homem; e a eloqüência do silêncio, que plainava sobre o templo, dizia apenas a ruína.
 
Cansado, extenuado de corpo e espírito, partia-me depois de duas ou três horas de meditação e de investigações inúteis, trazendo ainda para a insônia as impressões várias, as reflexões
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profundas que despertava essa evocação do passado.
 
No dia seguinte voltava; não me podia resignar à idéia de que esse claustro não guardasse para mim alguma revelação poética; tinha um pressentimento, que mais tarde devia realizar-se, de um modo inesperado.