A Alma do Lázaro/I/III: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Alma do Lázaro|Primeira Parte, Capítulo 03]]
 
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Começou o velho:
 
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:''"Fazem, se quer que lhe diga, não sei quantos anos. Era eu tamanino como esta minha pá de remo.''
 
:''"O pai vivia da pesca, como o avô; porque isto de pescador parece que é oficio de família, que vai passando de filho a neto. Quase todas as noites ele me levava consigo quando ia ao mar; e pequeno como era sabia arrumar a canoa e botá-la ao largo.''
 
:''"Já então costumava o pai na volta da pescaria descansar aqui. Punha a canoa em seco; deixava passar o resto da noite, e lá pela madrugada íamos vender o peixe ao Recife, porque em Olinda, afora a clerezia, tudo o mais era miuçalha.''
 
:''"Havia ali assim no fundo do convento, bem na praia, uma casa velha, tão velha que estava cai, não cai. Também
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os donos, ninguém mais sabia deles. Nem viva alma ali morava.''
 
:''"Uma noite, lá do largo, a gente viu uma luz acesa na janela da banda do mar. Eram que horas! Não tardava um instantinho que amanhecesse.''
 
:''"&mdash; Estás vendo, Tonico?"''
 
A voz do pescador tornou-se trêmula; e á tênue claridade da lua encoberta vi-o que enxugava com a mão rude e calosa uma lágrima de saudade.
 
&mdash; Meu nome de bautismo é Antônio. Porém, o pai e a mãe chamavam a gente Tonico.
 
Essa emoção de um velho de oitenta anos, recordando-se do apelido familiar da meninice, essa memória poderosa do coração que através de uma longa existência cheia de vicissitudes e trabalhos refletia com todo o colorido os quadros singelos da infância, tocou-me.
 
Achei sublime isto, que outros acharão ridículo talvez.
 
O velho continuou, passada aquela primeira emoção:
 
:''"Eu nem respondi ao pai. Estava tremendo.''
 
:''"&mdash; Quem andará ali?... Há que tempos a casa velha está abandonada!... Não seja...''
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:''"O pai fez o pelo sinal Eu rezava baixinho uma Ave-Maria.''
 
:''"&mdash; Nossa Senhora de Nazaré nos defenda. Rema, rapaz, que o vento escasseou, e a vela está bamba!''
 
:''"A luz de vez em quando apagava-se como farol que naquele tempo inda nem sonhava...''
 
:''"Quando a gente chegou em terra, conheceu que a luz saía mesmo da janela da casa, e que o motivo de sumir-se e aparecer era uma figura preta que passava e tornava a passar por diante, como um homem que ia e vinha.''
 
:''"Mas, havia um poder de anos, a casa não tinha morador, nem criatura de Deus que ali entrava.''
 
:''"Na outra noite, na outra e na outra, sempre a mesma cousa, tanto que o pai não se pôde mais ter, e foi ao. sr. bispo e lhe contou tudo. O santo homem sossegou a gente: disse que era um pobre moço doente que veio morar na casa velha, porque todos fugiam dele, com medo da doença."''
 
&mdash; Que doença? perguntei eu.
 
&mdash; O moço era como o que foi ressuscitado pelo Cristo!
 
&mdash; Lázaro?...
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&mdash; Senhor, sim. Agora quantos andam por aí como ele? Mas naquele tempo não era assim: a gente pensava que aquilo era uma praga.
 
:''"Meu pai também cuidava, mas tinha bom coração; e ficou mais descansado sabendo quem era o morador da casa velha, do que antes quando pensava que ali andava cousa de bruxa.''
 
:''"Uma vez... já se tinham passado quantos dias depois da luz aparecida! Era pela madrugada; nós estávamos a tirar a canoa para terra. Eis senão quando vimos o moço em pé no adro do convento, como inda agora vi o senhor. E isto me fez alembrar!...''
 
:''"Esteve um pedaço bom; depois veio caminhando mansinho para cá.''
 
:''"O pai quis fugir. Ele que deu pela cousa, parou, mais que depressa, e foi dizendo:''
 
:''"&mdash; Não tenha medo... Não fuja que eu volto.''
 
:''"Disse estas falas, assim com uma voz tão doce e tão penada que o pai teve dó dele, e ficou com vergonha:''
 
:''"&mdash; Não fujo, não. Precisa de alguma cousa? Diga!...''
 
:''"&mdash; Não preciso de nada!... Saí porque este vento
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me faz bem!... Estou queimando! Não o tinha visto, senão... Sei que não devo chegar-me para os outros.''
 
:''"&mdash; A moléstia é para a gente ter medo; mas também falar só de longe, não faz mal, disse o pai.''
 
:''"&mdash; Oh! há quanto tempo que não troco uma palavra com um ser humano!''
 
:''"&mdash; E está-lhe doendo muito?''
 
:''"&mdash; Horrívelmente!... Porém o que dói no corpo é o menos!''
 
:''"Ele se assentou e nós continuamos a enxugar a canoa, sempre de olho nele.''
 
:''"&mdash; É para vender o seu peixe?...''
 
:''"&mdash; É senhor, sim.'''
 
:''"Foi ele, e disse então como um pobre que pede esmola:''
 
:''"&mdash; Se eu quisesse comprar um?... "O pai ficou arrepiado.''
 
:''"&mdash; Não sei!... dizem que a gente não deve tocar.''
 
:''"&mdash; Escute!... Deite o peixe ai, na pedra, e fuja com o pequeno. Eu vou buscá-lo e deixo o dinheiro. Deste modo...''
 
:''"&mdash; Não precisa! Ai tem o peixe. Quanto ao dinheiro há de carecer.''
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:''"Meu dito, meu feito. O moço foi, e deixou na pedra uma moeda de tostão. O pai, quem viu! Nem lhe quis tocar. Mas o menino bem se importa com doença! Tirante das almas d'outro mundo, não tinha medo de nada.''
 
:''"A lembrou-me que a mãe precisava de uma vela de cera benta. A dela, de tanto acender quando nós andávamos no mar e ventava rijo, já estava num toco. Mal que o pai começou de passar pelo sono, fui eu devagarinho, e zás! apanhei o dinheiro; lavei bem lavado, e escondi no seio para que ninguém visse.''
 
:''"No outro dia comprei a vela para a mãe. Foi preciso pregar uma mentira. Primeira e. derradeira. Era para não assustar a gente em casa. Deus deve me ter perdoado pelo motivo que foi."''
 
O velho fez uma pausa.
 
&mdash; Chove a valer!... Mau tempo de garoupas!...
 
&mdash; Talvez estie ao amanhecer.
 
&mdash; Se o vento rondar...''"Mas naquela noite, que eu dizia, quando o moço saiu, já o pai estava dormindo. Vou eu, dou-lhe. o peixe como da véspera, e ele deixou o dinheiro na pedra. A gente naquela
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idade gosta de saber tudo. Eu quis ver o que ele estava fazendo acordado até tão tarde, e pus-me a espiar pela fresta da porta. Jesus! O corpo me tremia que nem linha d'anzol quando o peixe fisga!''
 
:''"Ele... o moço, estava assando o peixe. Depois comeu sem farinha, sem nada. Bebeu água, só. Vai por fim, lava as mãos e começa de escrever num livro que. estava na caixinha..."''
 
&mdash; Que caixinha?... perguntei, interrompendo o velho.
 
&mdash; A caixinha de folha! retrucou surpreso da pergunta.
 
&mdash; Já sei...
 
&mdash; Ora! onde estava eu com a cabeça. Cuidava que já tinha dito... Mas não! Era uma caixa, assim por este tamanho. Também ele não tinha mais trastes senão aquele.
 
:''"Tive tanto dó... Apanhei o dinheiro, lavei como na outra noite, mas foi para comprar farinha. Trouxe ás escondidas do pai, que ralhava-me se soubesse.''
 
:''"Não sei como foi; mas no cabo duma semana eu estava tão amigo dele, que levávamos a conversar toda a noite de enfiada, e assim, perto um do outro. Tudo que precisava, era eu que
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comprava. A ele não vendiam: tinham medo do dinheiro. E o coitado, antes queria vela para estar escrevendo, que o bocado para comer.''
 
:''"Como são as cousas... Já entrava pela casa dentro, sem pinga de medo. Queria-lhe bem a ele; também ele me queria. Um dia perguntei como se chamava.''
 
:'''Sabe que respondeu?''
 
:''"&mdash; Não tenho nome!... Todos me chamam leproso.''
 
:''"&mdash; Mas seu nome de batismo?''
 
:''"&mdash; Era Francisco.''
 
:''"Outra vez, por meus pecados, disse:''
 
:''"&mdash; Por que passa todo o santo dia e mais a noite a escrever? Isto faz mal.''
 
:''"Que olhos que me deitou! Ainda me alembro.''
 
:''"&mdash; Estes livros são a minh'alma. O que tu vês em mim, Tonico, são os ossos que a lepra vai roendo.''
 
:''"Cruzes! Tive um medo... das falas e dos olhos com que me olhou.''
 
:''"E foi guardando os livros e desatou num pranto, num pranto... que. parecia um menino a chorar.''
 
:''"Por esse tempo a gente de Olinda já andava alvoroçada com a estada do moço na casa velha.
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Diziam, que falso testemunho! que ele andava empestando a cidade. O rebuliço foi crescendo, e um bando saiu a gritar pelas ruas, e foi e requereu ao juiz do povo que pusesse o leproso para fora, senão haviam de mandar procurador a El-Rei.''
 
:''"Dois dias, com tanto mar e vento que fez, o pai não saiu.''
 
:''"Fiquei banzando com a idéia que o pobre moço não tinha quem lhe comprasse a comida. De noite me veio um sonho, e me acordei soluçando.''
 
:''"&mdash; Que tens, Tonico?... De que choras?... perguntou minha mãe.''
 
:''"&mdash; Ele não tem que comer...''
 
:''"Isto me saiu sem querer, quando ainda estava tonto de sono.''
 
:''"&mdash; Ele quem?...''
 
:''"Vi que era sonho e calei a boca; porém não preguei mais olho.''
 
:''"Logo na outra noite, enquanto o pai descansava, corri ao quarto do moço; a porta estava cerrada; mas havia luz dentro.''
 
:''"Ele estava sentado junto da mesa com a testa encostada na caixa onde guardava os livros. A vela ia-se acabando. Pensei que estava chorando
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como às vezes costumava, e levantei a cabeça dele com pena.''
 
:''"Santo nome de Jesus! Soltei um grito! Estava morto! E tinha morrido de tome.''
 
:''"Quando foram à casa velha para deitá-lo fora, só acharam o corpo que enterraram na praia. A gente da cidade ficou descansada.''
 
:''"Mas eu, quem via que podia dormir! Era um sonho atrás do outro. Aqui então! mesmo acordado, estava vendo a cada passo aquele vulto de preto com seu rosto triste. Ele que me aparecia tão amiúdo, tinha cousa que me pedir.''
 
:''"O que era? .~.. Pus-me a parafusar!... Vai senão quando me alembrou aquele dito dos livros:''
 
:''"São a minh'alma."''
 
:''"E não era outra cousa! O corpo que saia da terra, é que a alma andava penando por este mundo! Queria que enterrasse a caixa para seu repouso e descanso dele.''
 
:''"Porém eu entrar mais na casa! Quem viu!''
 
:''"Só de me alembrar, os cabelos espetavam, e corria-me pelas costas um suor tão frio.''
 
:''"Foi Deus, que as paredes de fora caíram; e então um domingo, depois da missa, com os outros rapazes que andavam brincando na praia,
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fomos e puxamos a caixa; com uma vara cavou-se um buraco e enterrou-se."''
 
:''&mdash; Aonde? perguntei eu com ansiedade.''
 
:''&mdash; Por fora dessa parede em. que o senhor está encostado. Meu pai tinha-se deitado mais longe; e eu depois daquela noite não me animava a sair de perto dele.''
 
:''"Quando acabei de enterrar a caixa, pareceu. que me tiravam um peso do coração. Ele ainda me apareceu uma vez. Foi para agradecer... Depois não voltou.''
 
:''"Deus tenha sua alma."''