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A boa vontade dos Editores, que o ano passado deram à estampa o DEMÔNIO FAMILIAR, traz agora à luz da imprensa as ASAS DE UM ANJO, no momento em que tudo me afasta das lidas literárias.
 
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O muito que tinha a dizer e criticar sobre a minha obra e as censuras de que foi alvo, deixo-o pois à reflexão dos homens esclarecidos; bem como deixo aos metodistas da literatura e da arte a sua classificação de escola realista.
 
A realidade, ou melhor, a naturalidade; a reprodução da natureza e da vida social no romance e na comédia, não a considero uma escola ou um sistema; mas o único elemento da literatura; a sua alma. O servilismo do espírito eivado pela imitação clássica ou estrangeira, e os delírios da imaginação tomada do louco desejo de inovar, são aberrações
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passageiras: desvairada um momento, a literatura volta, trazida por força irresistível, ao belo, que é a verdade.
 
Se disserem, que alguma vez copiam-se da natureza e da vida, cenas repulsivas, que a decência, o gosto e a delicadeza não toleram — concordo. Mas aí o defeito não está na literatura, e sim no literato; não é a arte que renega do belo; é o artista, que não soube dar ao quadro esses toques divinos que doiram as trevas mais espessas da corrupção e da miséria.
 
Nas convulsões da matéria humana, no tripúdio dos vícios, na fase a mais torpe da existência social, há sempre ao fundo do vaso uma inteligência e um coração: é a razão e o sentimento em tortura; é a luz e o perfume a apagar-se: são as cores da palheta. Se com elas o pincel não desenha sobre o fundo negro um quadro harmonioso, é que falta-lhe a inspiração ou a mestria; os olhos não sabem ver, ou a mão não sabe reproduzir.
 
Censurem pois as ASAS DE UM ANJO porque lhes falte uma ou outra dessas condições: porque ou os reflexos ou as refrações das cenas sejam imperfeitas. Mas não censurem nela a tendência da literatura moderna — apelidando-a de realismo.
 
Sobre a acusação de imoralidade que lançaram à comédia, e que afinal traduziu-se em uma proibição
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policial, escuso defender-me depois do artigo que publiquei no Diário do Rio, e que servirá de prólogo ao livro impresso, como serviu de protesto ao drama retirado da cena.
 
A crítica sensata e judiciosa, já expressa no jornalismo pelo Sr. Dr. F. Otaviano, já discutida em conversa por companheiros de letras, pronunciou-se contra o epílogo. Um pensa que terminada a ação naturalmente no 4.° ato, tudo, quanto siga-se, é estranho ao drama. Outros entendem que a regeneração surde imprevista, e consuma-se rápida, deixando por isso de calar no espírito do espectador, fortemente impressionado pelas cenas anteriores.
 
Não contestarei essa opinião, a que aliás o público por algum daqueles motivos, parece ter dado razão. Direi somente que sem o epílogo o pensamento da minha comédia ficaria incompleto; ela seria apenas uma nova encarnação do velho tipo de Manon Lescaut: encarnação brasileira, é verdade; mas por isso mesmo desbotada e macilenta, porque a vida exterior da nossa corte não podia emprestar-lhe as cores e o brilho das grandes cidades europeias.
 
O livro nasce do espírito, como a planta brota da terra: simples borbulha a princípio, pulula, gemina, abrolha as folhas, esgalha, copa-se e floresce por fim. Se o cultor da planta, vai-lhe mondando os ramos enfezados, esladroando-lhe os renovos que podem minguar
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o tronco; a seiva criadora substitui quanto a mão do homem corrige; mas se descuidado deixa que a planta cresça com seus defeitos, pode cortar-lhe o galho rasteiro, forçar-lhe a haste arqueada; a árvore ficará mutilada, porém sempre mal parecida.
 
Assim é o livro: assim foi com as ASAS DE UM ANJO.
 
Depois de concluída a comédia e representada; depois de partido esse fio que prende a obra ainda inédita ao espírito que a criou, era possível matar o livro; mas torcer-lhe o molde, dar-lhe outra configuração, excedia à vontade e às forças do autor. Creio mesmo que tudo quanto saísse dessa superfetação literária seria monstruoso e disforme.
 
Prefiro pois — embora reconheça até certo ponto a justeza da crítica — deixar a comédia com os seus defeitos, mas com a espontaneidade de sua invenção. As criações da imaginação também têm a sua virgindade: e muitas vezes a razão não se anima a corrigi-las, com receio de murchar-lhes a flor.
 
As alterações que fiz no original, levado à cena, e aprovado pelo Conservatório, são unicamente de estilo; castiguei a frase quando não me pareceu natural; dei em alguns pontos melhor torneio ao diálogo; mas na ação dramática, e no pensamento que ela exprime, nem de leve toquei.
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Entretanto se algum dia, o que não espero, cessar o interdito policial, e entenderem que o epílogo pode prejudicar o efeito cênico, não me oporei à semelhante supressão; antes estimarei que ela se faça, porque será a solução prática da questão de arte que aventou o desenlace da comédia.
 
 
29 de novembro de 1859.
 
 
J. DE ALENCAR.