O Cortiço/XIV: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Cortiço|Capítulo 14]]
 
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Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele: apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquela palha.
 
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— Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo.
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— E que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! Não há de ser com o que levo daqui!
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Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma palavra porca.
 
Pela rua, durante o caminho, jurava que "aquela caro pagaria a mulata!" Um sôfrego desejo de castigá-la, no
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mesmo instante, o atraía ao cortiço de São Romão, mas não se sentiu com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até à noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele domingo sem pagode. Às duas horas da tarde entrou no botequim do Garnisé, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no "Cabeça-de-Gato", veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a noticia de que na véspera o Jerônimo, tivera alta do hospital.
 
Firmo acordou com um sobressalto.
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— É! não há dúvida! Por isto é que a perua ultimamente me anda de vento mudado!...
 
E um ciúme doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu logo como a sede de um ferido. "Oh! precisava vingar-se dela! dela e dele! O amaldiçoado resistiu à
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primeira, mas não lhe escaparia da segunda!"
 
— Veja mais um martelo de parati! gritou para o portuguesinho da espelunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petrópolis no chão:
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Piedade levou o seu homem para o quarto.
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— Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda não estás de todo pronto...
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Jerônimo sacudiu os ombros com desdém.
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— Coitada!... resmungou depois. Muito boa criatura, mas...
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— Que esperança! Não tenho, nem quero mais ter homem!
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— Por que, Rita?
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— Os banhos frios é que são bons para isso. Põem duro o corpo!
 
A outra, embesourada, atravessou em silêncio a pequena
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sala, foi ter com o marido e comunicou-lhe que o Zé Carlos queria falar-lhe, junto com o Pataca.
 
— Ah! fez Jerônimo. Já sei o que é. Até logo, Nhá Rita. Obrigado. Quando quiser qualquer coisa de nós, lá estamos.
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— Aquele botequim ali ao entrar da Rua da Passagem, onde está um galo à tabuleta.
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— Ah! Defronte da farmácia nova...
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— Mas o teu pau está forte! E além disso cá estamos nós dois. Tu podes até ficar em casa, se quiseres...
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— Isso é que não! atalhou aquele. Não dou o meu quinhão pelos dentes da boca!
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— Fazes mal em andar por ai com este sol!... repreendeu Piedade, ao vê-lo entrar.
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— Pois se o doutor me disse que andasse quanto pudesse...
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Mas recolheu-se à casa, estirou-se na cama e ferrou logo no sono. A mulher, que o acompanhara até lá, assim que o viu dormindo, enxotou as moscas de junto dele, cobriu-lhe a cara com uma cambraia que servia para os tabuleiros de roupa engomada, e saiu na ponta dos pés, deixando a porta encostada.
 
Jantaram daí a duas horas. Jerônimo comeu com apetite, bebeu uma garrafa de vinho, e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados à frente de casa, formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno deles a liberdade feliz do domingo punha alegrias naquela tarde. Mulheres amamentavam o filhinho ali mesmo, ao ar livre, mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, tão depressa rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digestão dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava grávida de sete meses, passeava solenemente o seu bandulho, levando um outro filho ao colo. O Albino, instalado defronte de uma mesinha em frente à sua porta, fazia, à força de paciência, um quadro, composto de figurinhas de caixa de fósforos, recortadas a tesoura e grudadas em papelão com goma-arábica. E lá em cima, numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão para as galinhas
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do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera, e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procriar.
 
Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepé. Os outros dois já lá estavam. Infelizmente, havia mais alguém na tasca. Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em voz surda numa conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas com as outras.
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— Bom! aprovou Jerônimo, esgotando o copo com um último gole. Agora onde vamos nós! Parece-me ainda cedo para o Garnisé.
 
— Ainda! confirmou o Pataca. Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco e ao depois então seguiremos. Eu entro no botequim e vocês me esperam fora no lugar que marcamos... Se o cabra não estiver lá, volto logo a dizer-lhes, e, caso esteja, fico... chego-me para ele, procuro entrar em conversa, puxo discussão e afinal desafio-o pra rua; ele cai na esparrela, e então vocês dois surgem e metem-
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se na dança, como quem não quer a coisa! Que acham?
 
— Perfeito! aplaudiu Jerônimo, e gritou para dentro: — Olha mais um martelo de parati!
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— Preferia um trago de vinho branco, contraveio o terceiro.
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— Tudo o que quiserem! franqueou aquele. Eu tomo também um pouco de vinho. Não! que o que estamos a beber não é dinheiro de navalhista, foi ganho ao sol e à chuva com o suor do meu rosto! É entornar pra baixo sem caretas, que este não pesa na consciência de ninguém!
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— Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho, advertiu o companheiro, indo buscar junto às pipas o embrulho dos cacetes.
 
— Em todo o caso vamos seguindo, resolveu Jerônimo, impaciente, nem se temesse que a noite lhe fugisse de súbito.
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Pagou a despesa, e os três saíram, não cambaleando, mas como que empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para a frente alguns passos mais rápidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e tomaram depois a direção da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. Só pararam perto do Garnisé.