O Coruja/I/IX: diferenças entre revisões

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O Coruja ia pela primeira vez em sua vida assistir a um baile, e essa idéia, longe de o alegrar, trazia-lhe uni fundo ressaibo &3 amargura, como se o desgraçado estivesse à espera de uma terrível provação.
 
O fato de perturbarem a calma existência da fazenda, só por si já não lhe era de forma alguma agradável; quanto mais a idéiaideia de ter de acotovelar-se com pessoas inteiramente estranhas, a quem sem dúvida não iria ele produzir bom efeito com a sua triste figura desengraçada.
 
Oh! se fosse possível ao Coruja presenciar toda aquela festa, sem aliás ser descoberto por ninguém!... se ele pudesse, por um meio maravilhoso, tornar-se em puro espírito e estar ali a ver, a observar, a ouvir o que dissessem todos, sem que ninguém desse pela presença dele -— oh! então conseguiria desfrutar, e muito!
 
Chegou entretanto a véspera do grande dia, e de todos os pontos começavam a surgir, desde pela manhã, convidados a pé, a cavalo e de carro.
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Um enorme telheiro, que se havia engendrado de improviso nos fundos da casa, ficou cheio de cavalgaduras, troles, carroções e seges das que se usavam no tempo.
 
A fazenda apresentava um aspecto magnífico. Emílio, como homem de gosto que era, procurou afestoá-la quanto possível. Por toda a parte viam-se florões de murta engranzados com as parasitas mais caprichosas; jogos dágua formando esplendidosesplêndidos matizes à refração das luzes multicores das lanternas chinesas. Defronte da casa o fogo de artifício, que seria queimado pelo correr da noite.
 
Às seis horas da tarde uma salva de vinte tiros de peça anunciou que estava terminada a cerimoniacerimônia religiosa do casamento e que principiava o banquete. Os noivos foram tomar a cabeceira da mesa acompanhados por mais de quinhentas pessoas.
 
Como nenhum dos aposentos da casa podia comportar tanta gente, o barão fez levantar no vasto terreiro da fazenda uma enorme tenda de lona, sustentada por valentes carnaubeiras, engrinaldadas de verdura.
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— E, quando fores completar os teus estudos na corte, juras que..
 
Não podepôde ir adiante. A idéia da separação que já se avizinhava a passos largos, tolheu-lhe a fala com uma explosão de soluços.
 
— Então, Santa, então, que é isso? murmurou Teobaldo, erguendo-se e chamando para sobre o seu peito a cabeça da baronesa -— Não chores! não te mortifiques!...
 
Emílio acudiu logo, afastou o filho com um gesto e, tomando o lugar deste, segredou ao ouvido da esposa:
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Coruja, ignorado a um canto da sala, viu e ouviu tudo isso, e ao ver aquelas lágrimas de mãe e ao ouvir aquelas palavras de tanto amor e aqueles beijos mais doces do que as bênçãos do céu, que estranhas amarguras sua alma não carpiu em silenciosilêncio!...
 
Amargura, sim, que, por menos egoísta, por menos homem que fosse ele, do fundo do seu coração havia de sair um grito de revolta contra aquela injustiça da sorte, que para uns dava tudo e para outros nada!
 
Aquele espetáculo de tamanha felicidade havia fatalmente de amargurá-lo. Ainda se Teobaldo, possuindo muitos dotes fosse ao menos feito como ele, o Coruja; ainda se fosse miserável ou estúpido, -— vá! Mas não! Teobaldo era lindo, era rico, era talentoso e, além de tudo -— amado! amado por tantas criaturas e, principalmente, por aquela adorável mãe, cujos beijos e cujas lágrimas eram o bastante para lhe adoçar todos os espinhos da vida.
 
E André, assim considerando, via-se perfeitamente, tinha-se defronte dos olhos, como se estivesse em frente a um espelho. Lá estava ele -— com a sua disforme cabeça engolida pelos ombros, com o seu torvo olhar de fera mal domesticada, com os sobrolhos carregados, a boca fechada a qualquer alegria, as mãos ásperas e curtas, os pés grandes, o todo reles, miserável, nulo!
 
O desgraçado, porém, em vez de dar ouvidos a estes raciocínios, voltou-se todo para uma voz íntima, uma voz que também lhe vinha do coração, mas toda brandura e humildade.
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E essa voz lhe dizia:
 
— Pois bem, miserável! ingrato! tu, que és órfão; tu que não tens onde cair morto; tu, que és feio, que és o Coruja; tu, que não tens nenhum dote brilhante, que não és distinto, nem espirituoso, nem possuis mérito de espécie alguma; tu, mal agradecido! -— és amado por Teobaldo, que dispõe de tudo isso à larga e que te faz penetrar sua sombra no santuário de corações onde nunca penetrarias sem ele.
 
E o Coruja, saindo da sala para respirar lá fora mais à vontade, pôs-se a caminhar, a caminhar à toa entre as sombras das árvores, sentindo-se arrebatado por um inefável desejo de ser bom, um desejo de ser eternamente grato a quem, possuindo todas as riquezas, o escolhia para seu íntimo, para seu irmão -— a ele, que nada possuía sobre a terra.
 
Ser "bom"!
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Quem poderá afirmar que aquele enjeitado da natureza não se queria vingar da própria mãe fazendo de si um monstro de bondade? Sim. Vingar-se, fugindo da esfera mesquinha dos homens, fugindo às paixões, às pequenas misérias mundanas e procurando refugiar-se no próprio coração, ainda receoso de que o céu, cúmplice da terra, lhe negasse também a graça de um abrigo.
 
Ou quem sabe então se o ambicioso, vendo-se completamente deserdado de todos os dotes simpáticos a que tem direito a sua espécie, não queria supri-los por uma virtude única e extraordinária -— a bondade?
 
A bondade, esse pouco!
 
Visionário! Não se lembrava de que a bondade, áà força de ser esquecida e desprezada, converteu-se em uma hipótese ou só aparece no mercado social em pequenas partículas distribuídas por milhares de criaturas; como se dessa heróica virtude houvesse apenas uma certa e determinada porção desde o começo do mundo e que, de então para cá, à medida que se multiplicaram as raças., ela se fora dividindo e subdividindo até reduzir-se a pó.
 
[[Categoria:O Coruja|Primeira Parte: Capítulo 09]]