O Coruja/II/XI: diferenças entre revisões

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Pelo corredor viam-se entrar e sair negros e galegos carregados de móveis; ao passo que um formigar de homens sem bigode, cabelo curto, de jaqueta, sem gravata e sem colete, enchia todos os aposentos da casa.
 
E"É um leilão! não há dúvida!... considerou o rapaz, subindo até ao primeiro andar, e o seu raciocínio foi confirmado logo pela presença de um sujeito que, de martelo em punho, apregoava o preço dos móveis a um grupo de arrematantes:
 
— Vinte mil réis pelo espelho! É de graça, meus senhores! Vinte e cinco mil réis! Ninguém dá mais?.
 
Teobaldo, com esta música a perseguir-lhe os ouvidos, atravessou a sala e depois os quartos, até encontrar o criado que o recebera naquela noite do Lírico.
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Não parecia a mesma, tal era a transformarão porque passara; até a sua própria fisionomia parecia outra.
 
Trazia um singelo vestidinho de chita, apertado à cintura, que mal deixava perceber uma pequena parte do colo; os braços, porém, mostravam-se livres por entre a largura das mangas e o cabelo, enrodilhado sobre a nuca e seguro por um simples pente de tartaruga, já lhe não caía na testa como dantes, mas ao contrário dividia-se-lhe em dois bandós naturais fazendo ver uma fronte cor de mármore, cujos sutis reflexos de ouro mais pálida a torravamtornavam.
 
Por únicas jóias trazia ao pescoço a medalha que lhe dera Teobaldo e no dedo anular da mão esquerda uma aliança de casamento; em vez de caprichosos sapatos de peito aberto e grande salto, que ela até aí usava, tinha agora uma honesta botina, preta, de duraque, apenas guarnecida por um laço de fita da mesma cor.
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Teobaldo olhava para tudo aquilo, como se assistisse à representação de uma comédia; afigurava-se-lhe que, uma vez caído o pano do teatro, Leonília tornaria logo ao primitivo estado.
 
— Então? perguntou esta, -— não me dizes nada? Ficas assim, mudo, como se nada disto te interessasse?.
 
— É que ainda não voltei a mim, filha. Estou pasmo!
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— É admirável! respondeu o rapaz.
 
— Ora, prosseguiu Leonília, o Gabardan há muito que me fala em entrar para a casa dele; hoje lhe mandei dizer que aceito e, do princípio do mês que vem cmem diante, é natural que...
 
— De sorte que tencionas fazer uma completa regeneração...
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— Não me conheces!
 
— Oh! se conheço!... Vocês, pobres filhas do viciovício, são como os ingleses: por mais que viagem, por mais que se demorem nos países estrangeiros, tem sempre o sentido, a alma e o pensamento voltados para a pátria! Veio-te agora a fantasia de dar um passeio pelo amor, mudaste de roupa, tiraste as jóias, tomaste para disfarce esse modesto vestidinho de chita, e desferiste afinal o vôo; mas, se quiseres falar com franqueza, hás de confessar, minha querida, que a tua alma não se prende a esta pobre casinha sem espelhos, sem tapetes e sem as fosforescências do luxo; tua alma ficou lá donde partis-tepartiste! Apenas trouxeste a imaginação para uso da viagem! Eu seria capaz de apostar a cabeça em como a tua primeira idéiaideia, quando resolveste fazer tudo isto, não foi o amor, nem a ambição, mas pura ée simplesmente calcular o efeito que semelhante fantasia iria produzir sobre as tuas companheiras e sobre os teus admiradores!... -— Que dirá fulana quando souber?... Que dirão fulanos e beltranos?... Com certeza hão de achar-me original, caprichosa, uma verdadeira heroína de romance..." E, se manhã suceder que as tuas companheiras e os teus amantes, em vez de enxergarem na tua regeneração uma fantasia original, entendam que te regeneraste por necessidade, que te fizeste sóbria e modesta por já não poderes ser extravagante e opulenta; se eles julgarem assim, filha, juro que a tua mal-entendida vaidade de cortesã despertará furiosa, e então tu, para provares que não és inferior a nenhuma das tuas competidoras, voltarás fatalmente ao primitivo estado!
 
— Cala-te!
 
— Ah! bem sabes, minha Leonília, que as recaídas são sempre muito mais perigosas do que a própria moléstia!...
 
— És cruel!
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— Nem no meu amor?
 
— Nesse acredito. Não que ele dure muito tempo, mas acredito que ele exista agora. Toda a mulher ama sempre; algumas dedicam-se a um só homem durante a vida -— são as constantes; outras gostam de variar -— são as do gênero a que pertences. Mas, no fim de contas, todas elas amam, naturalmente, sem esforço, por uma fatalidade orgânica, sem haver nisso outro mérito mais do que se obedecessem a qualquer uma das funções fisiológicas do seu corpo.
 
— Pois então no amor que te consagro, cujas provas reais acabo de dar-te, pãonão há mérito algum?...
 
— Não digo isso, filha! há um mérito relativo no que acabas de fazer; apenas sustento que o amor, qualquer que ele seja, não me causa entusiasmo nem admiração de nenhuma espécie. Se não me amasses, amarias a outro; amas-me, não porque eu seja forte, inteligente ou bom., mas sim por uma razão multo simples -— porque és mulher! O caso seria para espantar., se em vez de te apaixonares por mim, te apaixonasses por uma estatuaestátua ou por uma árvore ou por um elefante ou por esta bengala!
 
— Enganas-te! Amo-te, não pelo simples fato de ser mulher., mas porque tu reúnes em ti todos os dotes que nos seduzem; és nobre e altivo como um príncipe; és forte e corajoso como um homem; és belo como uma estátua; original como um gênio; e espirituoso como um parisiense; e tudo isso reunido: força, altivez, beleza, espírito e 0riginalidadeoriginalidade, tudo Issoisso é o que eu amo e o que faz de mim a tua escrava!
 
— Logo, se eu fosse feio, estúpido e fraco, não me amarias?
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— Não, decerto.
 
— E é esse amor que entendes tu, deve me entusiasmar?... Tem graça'!
 
— Por que?
 
— Nada conheço mais egoístico, mais buxo e mesquinho do que semelhante amor! No fim de contas não é a mim que amas, é a ti própria; não é a mim a quem pretendes contentar, é ao teu próprio gosto, e ao teu próprio coração! Se te sacrificas por mim, se me preferes a tudo e a todos, não é porque eu goze muito com isso, mas sim porque tudo isso é necessário para a tua felicidade; e se me desejas o bem, é ainda para que a minha ventura se reflita sobre ti; é para que tu a possas desfrutar, para que a possas saborear com delícia!., Não achas que isto é exato?...
 
— E conheces porventura algum amor que não esteja nessas condições? perguntou Leonília. Olha em ternotorno de ti; procura em todos os corações um amor que não tenha sempre por base o mesmo egoísmo!
 
— O amor materno... respondeu Teobaldo, transpondo com a amante o portão da chácara e indo assentar--se ao lado dela sob um caramanchão. A mãe ama sempre o filho, seja este feio, estúpido ou mau.
 
— Mas só ama o próprio, o seu, ée esta idéiaideia de propriedade só por si é já egoísmo. Vai dizer a qualquer mãe que faça pelos filhos dos outros o que a natureza lhe inspira por aquele que lhe saiu das entranhas; ela te responderá que "quem pariu Mateus que o embale". E se há uma dedicação sem a menor sombra de altruísmo é essa justamente, porque a mãe nunca ama o filho pelas qualidades que ele possui, mas tão somente porque ele é uma continuação dela, porque ele é um pouco de sua carne e porque é a conseqüênciaconsequência palpitante, por bem dizer a personificação do amor de quem a possuiu. No filho ela se vê a si e vê também o homem a quem amou; isto é, vê todos os gozos, todas as egoísticas venturas de que há pouco falavas; e, meu amigo, se penetrares no âmago de todas as outras afeições, hás de sempre encontrar lá dentro a mesma mola feita de egoísmo.
 
— E o amor filial?