Correspondência ativa de Euclides da Cunha em 1905: diferenças entre revisões

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Linha 147:
 
:Euclides da Cunha
 
==Manaus, 20 de março de 1905==
 
:Rangel (10 1/2 da noite)
 
Só — inteiramente só — na saleta estreita da tua bucólica tebaida… Ou melhor, eu e algumas sombras: frei João de São José, o estrênuo Ricardo Franco, o meticuloso Lacerda e Almeida e não sei quantos outros mais… Calcula, se puderes, a nossa grande orgia silenciosa e formidável —
de velhos sucessos acabados e estupendos lances para todo o sempre extintos. O velho frade, castamente voltaireano, com o seu belo dizer
castíssimo conta-me os casos antigos da Amazônia velha; o impávido tenente-coronel de engenheiros; as suas quatro ou cinco odisséias sertanejas; e o maior explorador de todos os tempos e de todos os países, o molde secular de todos os Livingstones e de todos os Stanleys, a sua peregrinação maravilhosa do “equador visível” aos últimos rebentos meridionais da Mantiqueira!
 
E vão-se lentamente escoando as horas nesta palestra esquiliana e sem palavras… O Firmo saiu: está neste momento prosaicamente decaído sob o olhar adoravelmente fulminante de uma noiva. Lá dentro o Manuel, cotovelos fincados na mesa, cabeceia deploravelmente sobre uma cartilha de ABC, amarrotada — e um grande, um misterioso silêncio rendilhado de fugitivos rumores de folhagens agitadas de leve — torna mais solene esta esmagadora quietude. Certo, se de momento em momento, um angustiado espirro da bronquite crônica do teu galinho, o “louquinho” no diagnóstico do Firmo, não me chamasse à realidade chatamente térrea, eu veria abrir-se misteriosamente a tua estante da esquerda e dela irromper o torturado Rollinat, de braço dado com
 
<blockquote>…l’éternelle dame en blanc
qui voit sans yeux et rit sans lèvres,</blockquote>
 
tal augusta placidez que nesta hora morta avassala inteiramente a tua encantadora vila…
 
Então lembro-me de ti —, imagino-te ao lado do melhor entre os melhores corações que te idolatram — e toda a minha saudade se extingue numa grande e nobilizadora inveja — tão grande que só este pecado de invejar a tua felicidade de filho bastaria para que se me abrissem todos os céus (se os céus existissem) — com toda a minha incorrigível impiedade.
 
A nossa partida está próxima. Chegaram ontem as instruções — e desde que se realize a reunião dos comissários — iremos rumo feito para o desconhecido.
 
A minha frota: duas lanchas (uma ainda problemática), um batelão e seis canoas — flutua triunfalmente ao extremo do igarapé de São Raimundo — e teve ontem o batismo de uma tempestade.
 
Nunca imaginei que este rio morto escondesse, traiçoeiramente, ondas tão desabridas. Uma rajada viva de sudoeste imprime-lhe as crispações ensofregadas de um mar — e que mar! Um mar entre barrancas em que as vagas desencadeadas se desatam em corredeiras impetuosas de torrentes…
 
Felizmente resistiram galhardamente os meus ''navios''. É que dentro deles está a “fortuna de César”. Realmente. Creio tanto no meu destino de ''bandeirante'', que levo esta carta de prego para o desconhecido com o coração ligeiro. Tenho a crença largamente metafísica de que a nossa vida é sempre garantida por um ideal, uma aspiração superior a realizar-se. E eu tenho tanto que escrever ainda…
 
Li na ''Província do Pará'' as tuas generosas palavras a meu respeito. És um coração! Não exultou, lendo-te, a minha vaidade — uma infeliz sacrilegamente apedrejada em toda a parte e que nem sei como ainda vive! — mas o orgulho, o grande orgulho de possuir a tua simpatia.
 
Um favor, mas favor sacratíssimo, de irmão. Na rua do Cosme Velho 91 (atual Rua de Francisco Octaviano), Laranjeiras — moram as minhas 4 enormes Saudades — a minha mulher e os meus três pequenos. Peço-te que os procures e lhes dês notícias minhas.
 
Antes de seguir, hei de escrever-te outra vez. Responda-me.
 
Receberei a carta mesmo em caminho, por intermédio do Firmo, que a enviará.
 
Adeus, Rangel. Apresenta os meus respeitos à tua boa mãe; peço-te que me recomendes aos amigos (não terás grande trabalho nisto) — e que te não esqueças nunca do
 
:Euclides da Cunha
 
P.S — O Firmo é o que desde o primeiro dia imaginei: um companheiro adorável.
 
Mas sob outros pontos de vista — um paradoxo, o mais estranho paradoxo vivo que tenho encontrado: atravessa os dias a esbravejar, à maneira
de Schopenhauer, contra o sexo frágil — e invariavelmente, das 7 às 10, todas as noites entoa o mea culpa do noivado, contrito, sob o olhar
carinhoso e vigilante da futura sogra… Magnífico!
 
==Manaus, 11 de maio de 1905==