No País dos Ianques/X: diferenças entre revisões

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|seção=Capítulo X
|obra=[[No País dos Ianques]]
|autor=Adolfo Caminha
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Um belo povo, o de Nova Orleans -— jovial, comunicativo hospitaleiro e sincero. A ele devemos os melhores dias dessa longa Viagem ao país sugestivo e excepcional dos ianques, universalmente querido e respeitado por sua grandeza industrial e por suas belas tradições de energia e patriotismo.
 
E entanto aproximava-se o dia da partida: íamos embora rumo de norte, levando conosco a imorredoura lembrança do Meschasebé, "le roi des fleuves", e das legendárias terras que Chateaubriand poetizara nas suas inimitáveis viagens. Restava-nos, porém, o consolo de que ainda iríamos à sonhada Nova Iorque dos trens aéreos e das empresas colossais.
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A saudade, porém, não é uma simples figura de retórica, pelo amor de Deus! É um estado d'alma como a nostalgia, como o amor, como a tristeza, como a dor.
 
A saudade existe, é um fenômeno perfeitamente real e determinado na ordem dos fatos psicológicos. Não nos venham dizer outra cousa os senhores neologistas fin de siècle. Por ter sido cantada em prosa e verso, nem por isso a saudade deixa de ser o que é na verdade -— uma comoção nervosa interessando o mais delicado e sensível do coração humano, uma dolência vaga, flutuante n'alma, intraduzível como um sonho nebuloso, tocada de doçura e ungida de tristeza...
 
Por que uma pessoa tem barba no rosto e já passou dos vinte anos, segue-se que não deve ter mais saudade, que deve ser um insensível, uma massa inabalável?
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A lágrima há de existir per ommia secula, e a saudade terá sempre a sua lágrima, como sentimento superior às nossas forças.
 
Chorar sobre o túmulo de um amigo é tão natural, tão humano como chorar porque nos separamos de um ente querido. Não desejo agora, por uma veleidade de rabiscador sentimentalista, fazer a psicologia da lágrima. O que eu quero é confessar, embora disso me advenha o qualificativo de piegas, que não podíamos -— eu e a maior parte dos meus colegas -— pensar em deixar Nova Orleans sem um demorado frêmito de pálpebras e uma névoa úmida no olhar triste.
 
E, dizendo isto, está dito o que nos merecia a hospitaleira população daquela cidade.
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Cruzavam-se os pares, num turbilhão impetuoso, ao som das valsas americanas e dos galopes à brasileira.
 
Nessa noite, e pela primeira vez, conversei longamente com uma créole, Mile... já me não lembra o nome, um tipo ideal de Valquíria de olhos negros com um extraordinário brilho nas pupilas -— microscópica, delgada, flexível, cintura extremamente fina, certo jeito adorável de pender a cabeça para os lados, num abandono irresistível... Toda de preto.
 
Dançamos uma quadrilha e ela convidou-me a passear no Prado.
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Despedi-me para tomar o trem, e ela, a dama dos olhos negros, disse-me um good bye tão sentido e tão sugestivo que eu não tive leito senão perder o trem.
 
Good-bye! Nada mais doce e expressivo que estas simples palavras em boca de americana. Uma inglesa talvez que as não pronuncie com tanta suavidade, com tão sonora flexão, com tanto sentimento. Good-bye... Há qualquer coisa de aveludado no timbre cantante com que elas, as misses da Nova Inglaterra, dizem a sua frase sacramental de despedida. O nosso adeus, aliás tão lacônico e singelo, não exprime tanto, não caracteriza tão bem esse estado d'alma que se denomina -— saudade.
 
E, a propósito de -— Good-bye, vem-me à memória um episódio de uma simplicidade primitiva e comovente que a minha indiscrição de observador tagarela não deixa calar.
 
Esqueçamos a rapariga de olhos negros e narremo-la em toda a sua verdade.
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Entre os nossos companheiros de viagem havia um, cuja vida estava cheia das mais interessantes aventuras amorosas. Chamava-se Manuel..., o apelido de família não nos interessa. O jovem oficial de marinha, moço de bela aparência e excelente coração, apaixonara-se por uma Eva Smith muito conhecida nos cafés-concertos de Nova Orleans. Até aqui nada mais natural. Ela vira-o uma vez diante de um bock, seus olhos se encontraram, e, desde logo, Manuel ficou sendo a menina dos olhos de Eva. Amaram-se por muitos dias, gozaram todas as delícias imagináveis, ele proibiu-a de andar nos cafés, ela proibiu-o de olhar para outras raparigas, e assim corresponderam-se de comum acordo, sem que nunca houvesse entre eles a menor desavença.
 
-— Leva-me para o Brasil, Manuel... (ela só o tratava por Manuel.)
 
-— Sim, filha, depois havemos de ver isso.
 
-— 1 love you very much...
 
-— Oh! yes... I think so...
 
Viviam felizes como um casal de noivos, longe da cidade, num quarto de hotel, onde havia do melhor vinho e da melhor sopa.
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Um belo dia:
 
Ele -— Olha, sabes? O Barroso suspende ferro amanhã.
 
Ela (surpreendida) -— What do you say?!
 
Ele (trincando um rabanete) -— É o que estou lhe dizendo. Amanhã, por estas horas, o Manuel vai sulcando o golfo do México.
 
Ela (cruzando o talher) -— Impossível! Por que já não me disseste?
 
-— Para te poupar o desgosto.
 
-— Oh! não, meu querido Manuel, é história, tu não vais amanhã...
 
-— Assim é preciso. São coisas da vida.
 
-— Não, não, meu amor (my love) tu não vais, porque eu não quero, do contrário faço escândalo, estás ouvindo?
 
-— E, ao dizer estas palavras, a pobre Eva deixou cair uma lágrima...
 
Silêncio. Manuel continuou a jantar sem interrupção, muito calmo, com uma fleuma verdadeiramente britânica. Eva, coitada, abriu a soluçar baixinho, fungando a mais não poder, sem se aperceber de que estava fazendo de um guardanapo um lenço.
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E, no silêncio da tarde que a névoa melancoliza, repercutem estas palavras tocadas de saudade:
 
-— Good-bye!
 
-— Good-bye! repete a mesma voz aveludada como um carinho.
 
Olhamos uns para os outros comovidos.
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E quando o Barroso desapareceu na primeira curva do rio, ainda ouvíamos, tomados de uma tristeza infinita, a mesma voz cheia de desespero, agora abafada pela distância, soluçada e plangente:
 
-— Good-bye, Manuel! Good-bye!...
 
E dizer que a Dama das Camélias é uma exceção na vida sentimental das filhas de Eva!.
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O nosso Armando, que aliás nunca pretendeu regenerar ninguém, deixou-se cair numa saudade profunda, num longo adormecimento da alma, de que só acordou no alto-mar, quando já não se avistava um ponto sequer da costa americana.
 
[[Categoria:AdolfoNo CaminhaPaís dos Ianques]]