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CARAMURU POEMA ÉPICO DO DESCOBRIMENTO DA BAHIA
|obra=Caramuru
[[José de Santa Rita Durão]]
|autor=José de Santa Rita Durão
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CANTO I
* [[Caramuru/Reflexões|Reflexões prévias e argumentos]]
* [[Caramuru/I|Capítulo I]]
* [[Caramuru/II|Capítulo II]]
* [[Caramuru/III|Capítulo III]]
* [[Caramuru/IV|Capítulo IV]]
* [[Caramuru/V|Capítulo V]]
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* [[Caramuru/VI|Capítulo VI]]
* [[Caramuru/VII|Capítulo VII]]
* [[Caramuru/VIII|Capítulo VIII]]
* [[Caramuru/IX|Capítulo IX]]
* [[Caramuru/X|Capítulo X]]
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[[Categoria:1781]]
I
[[Categoria:José de Santa Rita Durão]]
 
[[Categoria:Caramuru| ]]
De um varão em mil casos agitados,
[[Categoria:Arcadismo brasileiro]]
 
[[Categoria:Epopeias]]
Que as praias discorrendo do Ocidente,
 
Descobriu recôncavo afamado
 
Da capital brasílica potente;
 
Do Filho do Trovão denominado,
 
Que o peito domar soube à fera gente,
 
O valor cantarei na adversa sorte,
 
Pois só conheço herói quem nela é forte.
 
II
 
Santo Esplendor, que do Grão Padre manas
 
Ao seio intacto de uma Virgem bela,
 
Se da enchente de luzes soberanas
 
Tudo dispensas pela Mãe donzela;
 
Rompendo as sombras de ilusões humanas,
 
Tudo do grão caso a pura luz revela;
 
Faze que em ti comece e em ti conclua
 
Esta grande obra, que por fim foi tua.
 
III
 
E vós, Príncipe excelso, do Céu dado
 
Para base imortal do luso trono;
 
Vós, que do áureo Brasil no principado
 
Da real sucessão sois alto abono;
 
Enquanto o império tendes descansado
 
Sobre o seio da paz com doce sono,
 
Não queirais designar-vos no meu metro
 
De pôr os olhos e admiti-lo ao cetro.
 
IV
 
Nele vereis nasce es desconhecidas,
 
Que em meio dos sertões a fé não doma
 
E que puderam ser-vos convertidas
 
Maior império que houve em Grécia ou Roma!
 
Gentes vereis e terras escondidas,
 
Onde, se um raio da verdade assoma,
 
Amansando-as, tereis na turba imensa,
 
Outro reino maior que a Europa extensa.
 
V
 
Devora-se a infeliz, mísera gente;
 
E, sempre reduzida a menos terra,
 
Virá toda a extinguir-se, infelizmente,
 
Sendo, em campo menor, maior a guerra;
 
Olhai, senhor, com reflexão clemente
 
Para tantos mortais, que a brenha encerra,
 
E que, livrando desse abismo fundo,
 
Vireis a ser monarca de outro mundo.
 
VI
 
Príncipe, do Brasil futuro dono,
 
À mãe da Pátria, que administra o mando,
 
Ponde, excelso senhor, aos pés do trono
 
As desgraças do povo miserando;
 
Para tanta esperança é o justo abono
 
Vosso título e nome, que invocando,
 
Chamará, como a outro o egípcio povo,
 
D. José salvador de um mundo novo.
 
VII
 
Nem podereis temer que ao santo intento
 
Não se nutram heróis no luso povo,
 
Que o antigo Portugal vos apresento
 
No Brasil renascido, como em novo.
 
Vereis do domador do Índico assento
 
Nas guerras do Brasil alto renovo,
 
E que os seguem nas bélicas idéias
 
Os Vieiras, Barretos e os Correias.
 
VIII
 
Daí, portanto, Senhor, potente impulso,
 
Com que possa entoar sonoro o metro
 
Da brasílica gente o invicto pulso,
 
Que aumenta tanto império ao vosso cetro;
 
E, enquanto o povo do Brasil convulso (1)
 
Em nova lira canto, em novo pletro,
 
Fazei que fidelíssimo se veja
 
O vosso trono em propagar-se a Igreja.
 
IX
 
Da nova Lusitânia o vasto espaço
 
Ia a povoar Diogo, a quem bisonho,
 
Chama o Brasil, temendo o forte braço,
 
Horrível filho do trovão medonho;
 
Quando do abismo por cortar-lhe o passo
 
Essa fúria saiu como suponho,
 
A quem do inferno o paganismo aluno,
 
Dando o Império das águas, fez Netuno.
 
X
 
O grão tridente, com que o mar comove,
 
Cravou dos Órgãos na montanha horrenda (2)
 
E na escura caverna, adonde Jove
 
(Outro espírito) espalha a luz tremenda,
 
Relâmpagos mil faz, coriscos chove;
 
Bate-se o vento em hórrida contenda,
 
Arde o céu, zune o ar, treme a montanha,
 
E ergue-lhe o mar em frente outra tamanha.
 
XI
 
O filho do trovão, que em baixel ia,
 
Por passadas tormentas ruinoso,
 
Vê que do grosso mar na travessia
 
Se serve o lenho pelo pego undoso.
 
Bem que, constante, a morte não temia;
 
Invoca no perigo o Céu piedoso,
 
Ao ver que a fúria horrível da procela
 
Rompe a nau, quebra o leme e arranca a vela.
 
XII
 
Lança-se ao fundo o ignívomo instrumento,
 
Todo o peso se alija; o passageiro,
 
Para nadar no túmido elemento,
 
A tábua abraça que encontrou primeiro;
 
Quem se arroja no mar temendo o vento,
 
Qual se fia a um batel, quem a um madeiro,
 
Até que sobre a penha, que a embaraça,
 
A quilha bate e a nau de despedaça.
 
XIII
 
Sete somente do batel perdido
 
Vem à praia cruel, lutando a nado;
 
Oferece-lhes socorro fementido
 
Bárbara multidão, que acode ao brado;
 
E, ao ver na praia o benfeitor fingido,
 
Rende-lhe as mãos o náufrago enganado.
 
Tristes! que a ver algum qual fim o espera
 
Com quanta sede a morte não bebera!
 
XIV
 
Já estava em terra o infausto naufragante,
 
Rodeado da turba americana;
 
Vem-se com pasmo ao porem-se diante,
 
E uns aos outros não crêem da espécie humana;
 
Os cabelos, a cor, barba e semblante
 
Faziam crer aquela gente insana
 
Que alguma espécie de animal seria,
 
Desses que no seu seio o mar trazia.
 
XV
 
Algum, chegando aos míseros, que à areia
 
O mar arroja extintos, nota o vulto;
 
Ora o tenta despir e ora receia,
 
Não seja astúcia com que o assalte, oculto.
 
Outros, do jacaré, tornando a idéia, (3)
 
Temem que acorde com violento insulto
 
Ou, que o sono fingindo, os arrebate
 
E entre presas cruéis no fundo os mate.
 
XVI
 
Mas, vendo a Sancho, um náufrago que expira,
 
Rota a cabeça numa penha aguda,
 
Que ia trêmulo a erguer-se e que caíra,
 
Que com voz lastimosa implora ajuda;
 
E vendo os olhos, que ele em branco vira,
 
Cadavérica a face, a boca muda,
 
Pela experiência da comua sorte,
 
Reconhecem também que aquilo é morte.
 
XVII
 
Correm, depois de crê-lo, ao pasto horrendo,
 
E, retalhando o corpo em mil pedaços,
 
Vai cada um famélico trazendo,
 
Qual um pé, qual a mão, qual outros os braços:
 
Outro na crua carne iam comendo,
 
Tanto na infame gula eram devassos.
 
Tais há que as assam nos ardentes fossos;
 
Alguns torrando estão na chama os ossos.
 
XVIII
 
Que horror da humanidade! ver tragada
 
Da própria espécie a carne já corrupta!
 
Quando não deve a Europa abençoada
 
A fé do Redentor, que humilde escuta?
 
Não era aquela infâmia praticada
 
Só dessa gente miseranda e bruta:
 
Roma e Cartago o sabe no noturno,
 
Horrível sacrifício de Saturno. (4)
 
XIX
 
Os sete, entanto, que do mar com vida
 
Chegaram a tocar na infame areia,
 
Pasmam de ver na turba recrescida,
 
A brutal catadura, hórrida e feia;
 
A cor vermelha em si mostram tingida
 
De outra cor diferente, que os afeia;
 
Pedras e paus de embirras enfiados, (5)
 
Que na face e nariz trazem furados.
 
XX
 
Na boca, em carne humana ensangüentada,
 
Anda o beiço inferior todo caído,
 
Porque a têm toda em roda esburacada,
 
E o labro de vis pedras embutido;
 
Os dentes (que é beleza que lhe agrada)
 
Um sobre outro desponta recrescido;
 
Nem se lhe vê nascer na barba o pêlo,
 
Chata a cara e nariz, rijo o cabelo.
 
XXI
 
Vê-se no sexo recatado o pejo,
 
Sem mais que antiga gala que Eva usava,
 
Quando por pena de um voraz desejo,
 
Da feia desnudez se envergonhava;
 
Vão sem pudor com bárbaro despejo,
 
Os homens, como Adão sem culpa andava;
 
Mas vê-se, alma Natura, o que lhe ordenas,
 
porque no sacrifício usam de penas.
 
XXII
 
Qual das belas araras traz vistosas,
 
Louras, brancas, purpúreas, verdes plumas;
 
Outros põem, como túnicas lustrosas,
 
Um verniz de balsâmicas escumas.
 
Nem temem nele as chuvas procelosas,
 
Nem o frio rigor de ásperas brumas;
 
Nem se receiam do mordaz besouro,
 
Qual anta ou qual tatu dentro em seu couro. (6)
 
XXIII
 
Por armas frechas, arcos pedras, bestas,
 
A espada do pau ferro; e por escudo,
 
As redes de algodão, nada molestas,
 
Onde a ponta se embace ao dardo agudo;
 
Por capacete nas guerreiras testas,
 
Cintos de penas com galhardo estudo;
 
Mas o vulgo no bélico ameaço,
 
Não tem mais que unha ou dente, ou punho ou braço.
 
XXIV
 
Desta arte armada, a multidão confusa
 
Investe o naufragante enfraquecido,
 
Que, ao ver-se despojar, nada recusa,
 
Porque se enxugue o mádido vestido;
 
Tanto mais pelo mimo, que se lhe usa,
 
Quando a bárbara gente o vê rendido
 
Trouxeram-lhe a batata, o coco, o inhame; (7)
 
Mas o que crêem piedade é gula infame.
 
XXV
 
Cevavam desta forma os desditosos,
 
Das fadigas marítimas desfeitos,
 
Por pingues ter os pastos horrorosos,
 
Sendo nas carnes míseras refeitos.
 
Feras! mas feras não, que mais monstruosos
 
São da nossa alma os bárbaros efeitos,
 
E em corruta razão mais furor cabe,
 
Que tanto um bruto imaginar não sabe.
 
XXVI
 
Não mui longe do mar, na penha dura,
 
A boca está de um antro mal aberta,
 
Que, horrível dentro pela sombra escura,
 
Toda é fora de rama encoberta.
 
Ali com guarda à vista se clausura
 
A infeliz companhia, estando alerta;
 
E, por cevá-los mais, dão-lhe o recreio
 
De ir pela praia em plácido passeio.
 
XXVII
 
Diogo então, que à gente miseranda,
 
Por ser de nobre sangue precedia,
 
Vendo que nada entende a turba infanda,
 
Nem do férreo mosquete usar sabia;
 
Da rota nau, que se descobre à banda,
 
Pólvora e bala em copia recolhia;
 
E, como enfermo que no passo tarda,
 
Serviu-se por bastão de uma espingarda.
 
XXVIII
 
Forte sim, mas de têmpera delicada,
 
Aguda febre traz desde a tormenta;
 
Pálido o rosto, e a cor toda mudada,
 
A carne sobre os ossos macilenta.
 
Mas foi-lhe aquela doença afortunada,
 
Porque a gente cruel guardá-lo intenta,
 
Até que, sendo a si restituído,
 
Como os mais vão comer, seja comido.
 
XXIX
 
Barbária foi (se crê) da antiga idade
 
A própria prole devorar nascida,
 
Desde que essa cruel voracidade
 
Fora ao velho Saturno atribuída;
 
Fingimento por fim, mas é em verdade,
 
Invenção do diabólico homicida,
 
Que uns cá se matam, e outros lá se comem:
 
Tanto aborrece aquela fúria ao homem.
 
XXX
 
Mas já três vezes tinha a lua enchido
 
Do vasto globo o luminoso aspecto,
 
Quando o chefe dos bárbaros temido
 
Fulmina contra os seis o atroz decreto.
 
Ordena que no altar seja oferecido
 
O brutal sacrifício em sangue infecto, (8)
 
Sendo a cabeça às vítimas quebrada
 
E a gula infanda de os comer saciada.
 
XXXI
 
Entanto que se ordena a brutal festa,
 
Nada sabiam na marinha gruta
 
Os habitantes da prisão funesta,
 
Que ardilosa lho esconde a gente bruta;
 
E, enquanto a feral pompa já se apresta,
 
Toda a pena em favor se lhe comuta.
 
Nem parecem ter dado a menor ordem,
 
Senão que comam e comendo engordem.
 
XXXII
 
Mimosas carnes mandam, doces frutas,
 
O araçá, o caju, coco e mangaba;
 
Do bom maracujá lhe enchem as grutas,
 
Sobre rimas e rimas de goiaba;
 
Vasilhas põem de vinho nunca enxutas, (9)
 
E a imunda catimpoeira, que da baba (10)
 
Fazer costuma a bárbara patrulha,
 
Que só de ouvi-lo o estômago se embrulha.
 
XXXIII
 
Um dia, pois, que à sombra desejada
 
Se repousam, passando a calma ardente,
 
Por dar alívio à dor reconcentrada
 
De ver-se escravos de tão fera gente,
 
Fernando, um deles, diz, que aos mais agrada
 
Por cantigas que entoa docemente,
 
Que em cítara, que o mar na terra lança,
 
Se divirtam da fúnebre lembrança.
 
XXXIV
 
Mancebo era Fernando mui polido,
 
Douto em letras e em prendas celebrado,
 
Que, nas ilhas do Atlântico nascido,
 
Tinha muito coas musas conversado;
 
Tinha ele os rumos do Brasil seguido
 
Por ver o monumento celebrado
 
De uma estátua famosa que num pico (11)
 
Aponta do Brasil ao país rico.
 
XXXV
 
Pedira-lhe Luís, que isto escutara,
 
De profética estátua o conto inteiro,
 
Se foi verdade, se invenção foi clara
 
De gente rude ou povo noveleiro.
 
Fernando então, que em metro já cantara
 
O sucesso, que atesta verdadeiro,
 
Toma nas mãos a cítara suave
 
E, entoando, começa em canto grave.
 
XXXVI
 
Oculto o tempo foi, incerta a era,
 
Em que o grão-caso contam sucedido;
 
Mas em parte é sem dúvida sincera
 
A bela história, que a escutar convido.
 
Feliz foi o ditoso, e feliz era
 
Quem tanto foi do céu favorecido,
 
Pois em meio ao corruto gentilismo
 
Merecer soube a Deus o seu batismo.
 
XXXVII
 
Incerto pelas brenhas caminhava
 
Um varão santo, que perdera a via,
 
Quando pelos cabelos o elevava
 
O anjo a onde o sol já se escondia;
 
E um selvagem lhe mostra, que se achava (12)
 
Quase lutando em última agonia:
 
Ouve (lhe diz) o justo agonizante,
 
E uma estrada de luz tomou brilhante.
 
XXXVIII
 
Auréo (que assim se chama o sacro enviado),
 
Encostando-se ao velho titubeante,
 
Por ignorar-lhe o idioma não falado,
 
No seu diz, de que o enfermo era ignorante;
 
E ouve-se responder (caso admirado!)
 
Numa língua de todo extravagante,
 
Que, sendo em tudo extraordinária e bruta,
 
Faz-se entender, e entende-o no que escuta.
 
XXXIX
 
Do grande Criador por mensageiro
 
A bênção (diz) te ofereço, homem ditoso;
 
Neste mundo ignorado em o primeiro
 
Quer que o seu nome escutes glorioso;
 
Do Eterno pai, de um filho Verdadeiro,
 
Do Espírito também, laço amoroso,
 
Quer que o mistério saibas da verdade
 
São três pessoas numa só Unidade.
 
XL
 
Um só Senhor, que todo o ser governa,
 
Que só com dizer seja o fez de nada,
 
Que à natureza desde a idade eterna
 
Certa época fixou de ser criada;
 
Que, abrindo liberal a mão paterna,
 
Toda a coisa abençoa que é animada;
 
Que sua imagem nos fez, e, sem segundo,
 
Quer que o homem reine sobre o vasto mundo;
 
XLI
 
Que, havendo em mil delícias colocado
 
Nossos primeiros pais num paraíso,
 
Por homenagem desse império dado,
 
Privou de um pomo com severo aviso;
 
Que, vendo o seu respeito profanado
 
E igual satisfação sendo preciso,
 
No duro lenho a pôs, no férreo cravo,
 
E deu o filho por salvar o escravo:
 
XLII
 
Este no seio, pois, de Virgem pura,
 
Invocada no nome de Maria,
 
Redentor, mestre, e luz da criatura,
 
Nasceu, pregou, morreu na cruz ímpia;
 
Rompeu do abismo a imóvel fechadura;
 
Depois ressurge no terceiro dia;
 
E, ao céu subindo enfim, donde comanda,
 
Aos fins da terra os mensageiros manda.
 
XLIII
 
Um destes vendo a ti: lavar-te intento,
 
Se queres aceitar meu catecismo;
 
E, servindo de porta o sacramento,
 
Incorporar-te ao cristianismo.
 
Purga o teu coração, teu pensamento,
 
Por chegar puro às águas do batismo,
 
Onde, se entras com dor do mal primeiro,
 
De Jesus Cristo morrerás co-herdeiro.
 
XLIV
 
Aos primeiros acentos que escutara,
 
Guaçu (que este é seu nome) a frente empena;
 
Atenda ao que ouve a orelha e fixa a cara,
 
Senão que coa cabeça a tudo acena;
 
Dos olhos mal se serve, que cegara,
 
Bem que a vista pareça ter serena;
 
As mãos de quando em quando estende, e toca,
 
E pende atento da sagrada boca.
 
XLV
 
"Bom ministro (responde) do Piedoso,
 
Excelso grão-Tupá, que o céu modera, (13)
 
ao me vens novo, não, que tive o gosto
 
De ouvir-te em sonho já, quem ver pudera!
 
Se a imagem tens, que o sono fabuloso
 
Há muito que de ti na mente gera!
 
Serás, disse (e na barba o vai tocando),
 
Homens com barbas, branco e venerando.
 
XLVI
 
Louvores a Tupá, que enfim chegaste;
 
Que o caminho me ensinas, donde elejo
 
Buscar logo o grão-Deus, que me anunciaste,
 
Que desde a infância com ardor desejo.
 
Nunca soube, assim é, quanto contaste;
 
Mas, não sei como, o que ouço e quase vejo
 
Sentia, como em sombra mal formada;
 
Não que o cresse ainda assim, mas por toada.
 
XLVII
 
Vendo desse universo a mole imensa,
 
Sem ser de ainda maior entendimento,
 
Fabricada a não cri; que ele o dispensa,
 
Tem, rege e guarda, infere o pensamento.
 
Que repugna à criatura estar suspensa,
 
Sem ultimo fim ter, notava atento.
 
E este ente, que me fez um Deus segundo,
 
O grão-Tupá, fabricador do mundo.
 
XLVIII
 
Vi as chagas da própria natureza,
 
A ignorância, a malícia, a variedade,
 
E bem reconheci que esta torpeza
 
Nascer não pode da eternal bondade,
 
Onde, sem o saber, cri que era acesa
 
Neste incêndio comum da humanidade
 
Antiga chama, donde o mal nos veio:
 
Crer que tais nos fez Deus... eu tal não creio.
 
XLIX
 
Também vi que o grão-Deus, que o mundo cria,
 
Deixar nunca quisera em tanto estrago
 
A humana natureza; e que a mão pia
 
De tais misérias ao profundo lago
 
Havia de estender: como o faria?
 
Suspenso fiquei sempre incerto e vago;
 
Mas nunca duvidei que alguém se visse
 
Que de tantas misérias nos remisse.
 
L
 
E como era a maior que experimentava
 
O ver que livremente o mal seguia;
 
Que a suprema Bondade se agravava
 
Donde um homem de bem se agravaria;
 
Vendo que a afronta, que esta ação causava,
 
Só se houvera outro Deus, se pagaria;
 
E impossível mais de um reconhecendo...
 
Daqui não passo, e cego me suspendo. (14)
 
LI
 
Agora sim, que entendo a grã-verdade,
 
Que um só Deus se fez homem sem defeito;
 
E, sendo três pessoas na Unidade,
 
Do Filho ao Pai podia haver respeito.
 
A pessoa segunda da Trindade,
 
Novo homem, como nós, de terra feito,
 
A paz do homem com Deus fundar procura,
 
Redentor pio da mortal criatura.
 
LII
 
Este creio, este adoro, este confesso;
 
E esta santa mensagem venerando
 
Por meu Deus e Senhor firme o conheço,
 
A quem da terra e céu pertence o mando.
 
Deste o batismo santo hoje te peço,
 
Onde, na porta celestial entrando,
 
Suba o espírito à glória que deseja
 
E com estes meus olhos ainda o veja."
 
LIII
 
Disse o ditoso velho; e, acompanhando
 
Com devoto suspiro a voz que exprime,
 
Bem mostra que no peito o está tocando
 
A oculta unção do Espírito sublime,
 
As mãos ao céu levanta lagrimando;
 
E tanto ardor na face se lhe imprime,
 
Que acompanhar parece o humilde rogo
 
Um dilúvio de água, outro de fogo.
 
LIV
 
Então o bom ministro: "É justo, amigo,
 
Que chores (lhe dizia) o teu pecado,
 
Por não amar a Deus; ser-lhe inimigo,
 
Se o blasfemaste: de o não ter honrado;
 
De não servir teus pais; de um ódio antigo;
 
E se não foste honesto, ou tens roubado;
 
Se em mulher, bens ou fama em caso feio
 
Fizeste dano, ou cobiçaste o alheio.
 
LV
 
Esta a lei santa é, que em nós impressa
 
Ninguém ofende que mereça escusa,
 
Onde no que faltaste a Deus confessa,
 
Que tanto deve quem pecando abusa.
 
Quer se a satisfação com a promessa
 
De melhor vida, no que a lei te acusa;
 
Pois quem quer que pecou, que assim não faça,
 
Recebe o sacramento, mas não graça."
 
LVI
 
"Eu, disse o americano, antes de tudo,
 
Amei do coração quem ser me dera:
 
Seu nome ignoro, mas honrá-lo estudo,
 
E com fé o adorei sempre sincera;
 
Em certos dias, recolhido e mudo,
 
Cuidava em venerar quem tudo impera;
 
Matar não quis, nem morto algum comia,
 
Pois que a mim mo fizessem não queria.
 
LVII
 
Mulher tive, mas uma, persuadido
 
Que com uma se pode; ação impura
 
Meteu-me sempre horror, tendo entendido
 
Que só no matrimônio era segura;
 
Qualquer outro prazer fora proibido,
 
Porque, se entanto abuso se conjura,
 
Quem, seguindo esse instinto do demônio,
 
Se pudera lembrar do matrimônio?
 
LVIII
 
Nunca roubei, temendo ser roubado;
 
Por conservar a fama, honrei a alheia;
 
Não me lembra de ter caluniado,
 
Nem de outrem disse mal, que é coisa feia:
 
E quem houvesse de outro murmurado
 
Que outro tanto lhe façam certo creia;
 
Não tive inveja do que alguém consiga,
 
Por ver que quem a tem seu mal castiga.
 
LIX
 
Enfim, corri meus anos desde a infância
 
Sem ofender (que eu saiba) esta lei justa,
 
Sem ter à coisa boa repugnância,
 
Tudo mercê da mão de Deus augusta.
 
Nos meus males somente a tolerância
 
Mos fazia passar a menor custa:
 
Esta a minha ânsia foi, este o meu zelo,
 
Saber quem era Deus, tratá-lo e vê-lo."
 
LX
 
Dizendo o velho assim, tanto se acende,
 
Como se n'alma se lhe ateara um fogo.
 
Reclina a humilde fronte e a voz suspende,
 
E, caindo em delíquio neste afogo,
 
Corre o ministro, que ao sucesso atende,
 
E buscando água que o batize logo;
 
Apenas "Félix, diz, eu te batizo,"
 
Partiu feliz dum vôo ao paraíso.
 
LXI
 
Cuidava em sepultá-lo Auréo saudoso;
 
Porém de espessa névoa, que o ar condensa,
 
Ouve um coro entoando harmonioso
 
Louvor eterno majestade imensa;
 
E na atmosfera ali do ar nebuloso
 
Luz arraiando, que a alumia intensa
 
Viu Félix, que na glória que o vestia
 
A graça batismal lhe agradecia.
 
LXII
 
"Que te conceda Deus, ministro justo,
 
(Diz-lhe a alma venturosa) o prêmio eterno;
 
Pois vens do antigo mundo a tanto custo
 
A libertar-me do poder do inferno.
 
Dos céus entanto o Dominante augusto
 
Que tornes manda ao ninho teu paterno,
 
E sobre a névoa em nuvem levantada
 
Vás navegando pela aérea estrada.
 
LXIII
 
E quer na nuvem própria, que te indico
 
Que esse cadáver meu vá transportado,
 
E na ilha do Corvo, de alto pico
 
O vejam numa ponta colocado.
 
Onde acene ao país do metal rico,
 
Que o ambicioso europeu vendo indicado
 
Dará lugar que ouvida nele seja
 
A doutrina do céu e a voz da igreja."
 
LXIV
 
Disse, e, cessando a voz e a visão bela,
 
Viu da nuvem Auréo, que o rodeava,
 
Transformar-se a bela alma em clara estrela,
 
E viu, que a nuvem sobre o mar voava;
 
O cadáver também sublime nela
 
Ao cume do grão-pico já chegava,
 
Onde a névoa, que no alto se sublima,
 
Depõe como uma estátua o corpo em cima.
 
LXV
 
Ali batido do nevado vento,
 
De sol, de gelo e chuva penetrado,
 
Efeito natural, e não portento,
 
É vê-lo, qual se vê, petrificado.
 
Um arco tem por bélico instrumento, (15)
 
De pluma um cinto sobre a frente ornado,
 
Outro onde era decente, em cor vermelho,
 
Sem pêlo a barba tem, no aspecto é velho.
 
LXVI
 
Voltado estava às partes do ocidente,
 
Donde o áureo Brasil mostrava a dedo,
 
Como ensinando à lusitana gente
 
Que ali devia navegar bem cedo.
 
Destino foi do Céu onipotente,
 
A fim que sem receio, ou torpe medo,
 
A piedosa empresa o povo corra,
 
E que quem morrer nela alegre morra."
 
LXVII
 
Calou então Fernando, mas não cala
 
Na cítara dourada outra harmonia,
 
Onde parece a mão que também fala,
 
E que quanto a voz disse repetia.
 
Saíra entanto um bárbaro a escutá-la,
 
Que, encantado da doce melodia,
 
Toma nas mãos o músico instrumento,
 
Toca-o sem arte e salta de contento.
 
LXVIII
 
Não pode ver dos nossos o congresso
 
Tanta rudeza sem tentar-se a riso,
 
Que, por mais que um pesar se tenha impresso,
 
Não da lugar a prevenção ao siso;
 
E, sendo inopinado algum sucesso,
 
Onde é nos homens quase o rir preciso,
 
Tal pessoa há que chora apaixonada
 
E passa do gemido a uma risada.
 
LXIX
 
Diogo então, que dentro em si media
 
Da cruel gente a condição danosa,
 
Não sossega de noite nem de dia,
 
Antevendo a desgraça lastimosa;
 
E, vendo rir os mais com alegria,
 
Pela ação do selvagem graciosa,
 
Estranhou-lhe o prazer mal concebido,
 
Arrancando do peito este gemido:
 
LXX
 
"Oh triste condição da humana vida,
 
Que tanto em breve do seu mal se esquece!
 
Pois vendo a liberdade enfim perdida,
 
Sentimos menos quando a dor mais cresce!
 
Vemos desde a água às praias despedida
 
A Infeliz gente que no mar perece,
 
E que o brutal gentio na mesm’hora,
 
Ainda bem os não vê, logo os devora.
 
LXXI
 
Quem sabe se o cuidado que destina
 
Pôr-nos assim mimosos de sustento
 
Não é por ter de nós grata chacina
 
Nesse horrível, barbárico alimento?
 
Tanta atenção que têm mal se combina,
 
Sem mostrar-se o maligno pensamento;
 
Que quem os próprios mortos brutal come
 
Como é crível que aos vivos mate à fome?
 
LXXII
 
Tempo fora, afligidos companheiros,
 
De levantar dos céus ao Rei supremo
 
Humildes vozes, votos verdadeiros,
 
Como quem luta no perigo extremo.
 
Mas vós que agora rides prazenteiros,
 
Oh quanto, amigos meus, oh quanto temo
 
Que essa gente cruel só nos namore,
 
Por cevar mais a presa que devore!
 
LXXIII
 
Voltemos antes com fervor piedoso
 
Os tristes olhos ao etéreo espaço,
 
Esperando de Deus um fim ditoso,
 
Onde a morte se avista a cada passo.
 
Contrito o peito, o coração choroso,
 
Implore a proteção do excelso braço;
 
Que o coração me diz que, por desdita,
 
O cruel sacrifício se medita."
 
LXXIV
 
Enquanto assim dizia, o herói prudente,
 
Comovido qualquer do temor justo,
 
Levanta humilde as mãos ao céu clemente,
 
Vendo o futuro com pressago susto:
 
Já cuida a cruel morte ver presente;
 
Já vê sobre a cabeça o golpe injusto;
 
Batem no peito e, levantando as palmas,
 
Fazem vítima a Deus das próprias almas.
 
LXXV
 
Já numerosa turba às praias vinha
 
E os seis levam ao corro miserando,
 
Onde a plebe cruel formada tinha
 
A pompa do espetáculo execrando;
 
E mal a gente bruta se continha,
 
Que, enquanto as tristes mãos lhe vão ligando,
 
No humano corpo pelo susto exangue,
 
Não vão vivo sorvendo o infeliz sangue.
 
LXXVI
 
Qual se da Líbia pelo campo estende
 
O mouro caçador um leão vasto,
 
Em longa nuvem devorá-lo emprende
 
O sagaz corvo, sempre atento ao pasto;
 
Negro parece o chão, negro, onde pende
 
A planta, em que do sangue explora o rasto;
 
Até que avista a presa e em chusma voa,
 
Nem deixa parte que voraz não roa:
 
LXXVII
 
Tal do caboclo foi a fúria infanda;
 
E o fanatismo, que na mente o cega,
 
Faz que, tendo esta ação por veneranda,
 
Invoque o grão-Tupá que o raio emprega.
 
No meio vê-se que em mil voltas anda
 
O eleito matador, como quem prega
 
A brados, exortando o povo insano
 
A ensopar toda a mão no sangue humano.
 
LXXVIII
 
A roda, à roda! a multidão fremente
 
Com gritos corresponde à infame idéia;
 
Enquanto o fero em gesto de valente
 
Bate o pé, fere o ar e um pau maneia,
 
Ergue-se um e outro lenho, onde o paciente
 
Entre prisões de embira se encadeia;
 
Fogo se acende nos profundos fossos,
 
Em que se torrem com a carne os ossos.
 
LXXIX
 
Dentro de uma estacada extensa e vasta,
 
Que a numerosa plebe em torno borda,
 
Entram os principais de cada casta
 
Com belas plumas, onde a cor discorda;
 
Outros, que a grenha têm com feral pasta
 
Do sangue humano, que ao matar transborda.
 
Os nigromantes são, que em. vão conjuro,
 
Chamam as sombras desde o Averno escuro.
 
LXXX
 
Companheiras de ofício tão nefando,
 
Seguem de um cabo a turma e de outro cabo,
 
Seis torpíssimas velhas, aparando
 
O sangue sem um leve menoscabo.
 
Tão feias são, que a face está pintando
 
A imagem propriíssima do diabo;
 
Tinto o corpo em verniz todo amarelo,
 
Rosto tal, que a Medusa o faz ter belo.
 
LXXXI
 
Têm no colo as cruéis sacerdotisas,
 
Por conta dos funestos sacrifícios,
 
Fios de dentes, que lhes são divisas
 
De mais ou menos tempo em tais ofícios.
 
Gratas ao céu se crêem de que indivisas
 
Se inculcam por tartáreos malefícios
 
E um testemunho do mister nefando,
 
Nos seus cocos com facas vêm tocando.
 
LXXXII
 
Quem pode reputar que dor trespassa
 
A miseranda infausta companhia,
 
Vendo tais feras rodear a praça,
 
Que o sangue com os olhos lhe bebia?
 
Ver que os dentes lhe range por negaça,
 
Senão é que os agita a fome ímpia,
 
E dizer la consigo. "Em poucas horas
 
Sou pasto destas feras tragadoras".
 
LXXXIII
 
Mas põe-lhe a vista o Padre Onipotente,
 
Da desgraça cruel compadecido,
 
E envia um anjo desde o Céu clemente,
 
Que deixe tanto horror desvanecido
 
E faça que o espetáculo presente
 
Venha por fim a ser sonho fingido;
 
Que quem recorre ao céu no mal que geme,
 
Logo que teme a Deus, nada mais teme.
 
LXXXIV
 
Seis então dos infames Nigromantes
 
Lançaram mão das vítimas pacientes,
 
E a seis lenhos fatais, que ergueram d’antes,
 
Atam cruéis as mãos dos inocentes:
 
Postos no céu os olhos lacrimantes,
 
Com lembrar-se das penas veementes
 
Que sofreu Deus na cruz, nele fiados
 
Pediam-lhe o perdão dos seus pecados.
 
LXXXV
 
Fernando ali, que em discrição precede,
 
Com voz sonora a companhia anima,
 
Cheio de viva fé, socorro pede;
 
E, quando a dor permite que se exprima:
 
"Grão-Senhor (diz) de quem tudo procede,
 
A glória, a pena, a confusão e a estima,
 
Que justo dás as graças e os castigos,
 
Na dor alívio, amparo nos perigos;
 
LXXXVI
 
Vida não peço aqui, morte não temo,
 
Nem menos choro o caso desgraçado.
 
O que me dói, que sinto, o que só gemo
 
É, piedoso Deus, o meu pecado!
 
Feliz serei, Grão-Padre, se no extremo
 
For da tua bondade perdoado,
 
Pelo cálix amargo que aqui bebo,
 
Pela morte cruel que hoje recebo.
 
LXXXVII
 
Mas, grande Deus, que vês nossa fraqueza
 
No duro transe desta cruel hora,
 
Não sofras que essas feras com crueza
 
Hajam de devorar a quem te adora;
 
Porque estremece a frágil natureza
 
Vendo a gula brutal, que emprende agora
 
Sacrifício fazer ao torpe abismo
 
Destas carnes tingidas no batismo!"
 
LXXXVIII
 
Ouviu o céu piedoso a infeliz gente;
 
E, quando o fero a maça já levanta,
 
Que esmaga a fronte ao mísero paciente,
 
Trovão se ouve fatal, que tudo espanta.
 
Treme a montanha e cai a roca ingente
 
E na ruína as árvores quebranta;
 
Mas o que mais os brutos confundia,
 
Era o rumor marcial que se então ouvia.
 
LXXXIX
 
Pedras, frechas e dardos de arremesso
 
Cobriam tudo o ar; porque o inimigo,
 
Que atrás se pôs de am próximo cabeço,
 
Aguarda expressamente aquele artigo.
 
De um lado e outro deste um mato espesso
 
Ameaça o furor, cerca o perigo;
 
E a gente crua, transformada a sorte,
 
Quanto cuidou matar, padece a morte.
 
XC
 
Era Sergipe, o príncipe valente,
 
Na esquadra valorosa, que atacava;
 
Verão entre os seus bom, manso e prudente,
 
Que com justiça os povos comandava.
 
Armava o forte chefe de presente
 
Contra Gupeva, que cruel reinava
 
Sobre as aldeias, que em tal tempo havia
 
No recôncavo ameno, da Bahia.
 
XCI
 
Por toda a parte o baiense é preso;
 
É trucidado o bruto nigromante;
 
Muitos lançados são no fogo aceso,
 
Rendem-se os mais ao vencedor possante.
 
Ficara em vida, todavia ileso
 
O mísero europeu, que ali em flagrante
 
Fez desatar o bom Sergipe e manda
 
À escravidão no seu país mais branda.
 
XCII
 
Mas a gente infeliz, no sertão vasto,
 
Por matos e montanhas dividida,
 
É fama que uns de tigres foram pasto,
 
Outra parte dos bárbaros comida.
 
Nem mais houve notícia ou leve rasto
 
Como houvessem perdido a amada vida;
 
Mas há boa suspeita e firme indício
 
Que evadiram o infame sacrifício.
 
(1) Povo convulso. — Epíteto que dá Isaías aos Americanos, como conjeturam os melhores intérpretes.
 
(2) Serra dos órgãos. — Ramo da célebre cordilheira que discorre pelo Brasil, saindo das suas cavernas névoas tempestuosas.
 
(3) Jacaré. — Uma espécie de crocodilo brasílico.
 
(4) Saturno. — Os antigos italianos foram, como se colige de Homero, antropófagos; tais eram os Lestrigões e os Liparitanos. Os Fenícios e os Cartagineses usaram de vítimas humanas, e Roma própria nos seus maiores apertos. São espécies vulgares na história.
 
(5) Embiras. — Espécie de cordão feito da casca interior de algumas árvores.
 
(6) Tatu. — Espécie de animal coberto de uma concha duríssima e impenetrável. Os selvagens tingem-se com várias resinas, senão com o fim, ao menos com o efeito de os livrar das mordeduras dos insetos, ainda que alguns se tinjam com ervas inúteis para esse uso.
 
(7) Batata, Coco, Inhame. — Frutos bem conhecidos ainda na nossa Europa.
 
(8) Sacrifício. — é certo que os brasilienses não tinham forma alguma expressa de sacrifício; mas a solene função e ritos com que matavam os seus prisioneiros, parece com razão ao padre Simão de Vasconcelos na sua História do Brasil que eram um vestígio dos antigos sacrifícios usados dos Fenícios de que acima falamos em outra nota.
 
(9) Vinho. — Vêm da América debaixo deste nome vários extratos de caju, coco, e de outros frutos conhecidos, que podem competir com os nossos vinhos.
 
(10) Catimpoeira. — Imunda bebida dos selvagens, que, mastigando o milho, fazem da saliva e do suco mesmo do grão uma potagem abominável.
 
(11) Estátua. — É estimada por prodigiosa a estátua que se vê ainda na ilha do Corvo, uma dos Açores, achada no descobrimento daquela ilha sobre um pico, apontando para a América. Foi achada sem vestígio de que jamais ali habitasse pessoa humana. Devo a um grande do nosso reino, fidalgo eruditíssimo, a espécie de que se conserva uma história desta estátua manuscrita, obra do nosso imortal João de Barros.
 
(12) Selvagem. — Não supomos único o selvagem, que o padre Anchieta achou em o estado que aqui se descreve. Muitos teólogos se persuadem que Deus por meios extraordinários instruíra a quem vivesse na observância da lei natural.
 
(13) Tupá. — Os selvagens do Brasil têm expressa noção de Deus na palavra Tupá, que vale entre eles excelência superior, coisa grande que nos domina.
 
(14) Suspendo. — Até aqui são os limites do lume natural, e como ele somente o alcança a filosofia; porém o remédio de natureza humana, ferida pela culpa, não pode constar-nos senão pela revelação.
 
(15) Um arco. — As memórias desta estátua concordam em ser o seu trajo desconhecido; toma daqui ocasião o poeta para o representar arbitrariamente.
 
 
CANTO II
 
I
 
Era a hora em que o sol na grã-carreira
 
De tórrido zênite vibra igualmente,
 
E que a sombra dos corpos companheira
 
Na terra extingue com o raio ardente,
 
Quando, ao partir a turba carniceira,
 
Se viu Diogo só na praia ingente,
 
Entre mil pensamentos, mil terrores,
 
Que a dor fez grandes e o temor maiores.
 
II
 
Parecia-lhe ver de gente insana
 
O bárbaro furor, a fome crua,
 
A agonia dos seus na ação tirana,
 
E, temendo a dos mais, presume a sua.
 
Quisera opor-se à empresa desumana,
 
Pensa em arbítrios mil com que o conclua.
 
Se fugirá? mas donde? se os invada?
 
Porém, enfermo e só, não vale a nada.
 
III
 
"Oh! mil vezes (dizia) afortunados
 
Os que entregues à fúria do elemento
 
Acabaram seus dias sossegados,
 
Nem viram tanta dor, como experimento!
 
Que estavam finalmente a mim guardados
 
Este espanto, este horror, este tormento!
 
Que escapei (Santos Céus!) desse mar vasto
 
Para a feras servir de horrível pasto!
 
IV
 
E hei de agora (infeliz!) ver fraco e inerme
 
Que dos meus vá fazer um pasto horrendo
 
Essa patrulha vil, que agora enferme!
 
Que me veja sem força em febre ardendo!
 
Ah! Se pudera em meu vigor já ver-me!
 
Que ardor sinto em meu peito de ir rompendo
 
E turba vil fazendo em mil pedaços,
 
Truncar pescoços, mãos, cabeças, braços!
 
V
 
Não pode (é certo) a débil natureza;
 
Porém que esperas mais, mísero Diogo?
 
Que pode resultar da forte empresa?
 
Será mal morrer já, se há de ser logo?
 
Faltam-me as forças; sim, sinto a fraqueza;
 
Mas o espírito o supre e neste afogo
 
Tira forças ocultas da nossa alma,
 
Que ela não mostra ter, vivendo em calma.
 
VI
 
E como quer enfim que o mande a sorte,
 
Morra-se, que talvez se não desuna
 
O sucesso feliz uma ação forte,
 
Que acaso um temerário achou fortuna;
 
E quando irado o céu me envie a morte,
 
E que a mão do Senhor meus erros puna,
 
Recebo o golpe, que me for mandado,
 
Morrerei, assim é, porém vingado.
 
VII
 
Nem deixo de esperar que a gente bruta,
 
Vendo o estrago da espada e do mosquete,
 
Não se encha de pavor na estranha luta
 
E força maior creia que a acomete:
 
Se tomo as armas, que salvei na gruta,
 
Escudo, cota, malha e capacete,
 
Posso esperar que um só me não resista,
 
E, antes que o ferro, mos someta a vista."
 
VIII
 
Disse; e, entrando na sólita caverna,
 
Cobre de ferro a valorosa fronte;
 
Um peito de aço de firmeza eterna
 
E o escudo, onde a frecha se desponte,
 
Dispõe de modo em forma tal governa,
 
Que nada teme já que em campo o afronte
 
Nas mãos de ferro tinha uma alabarda,
 
A espada à cinta, aos ombros a espingarda;
 
IX
 
Saía assim da gruta, quando o monte
 
Coberto vê da bárbara caterva;
 
E no que infere da turbada fronte,
 
Sinais de fuga de derrota observa.
 
A algum obriga o medo a que transmonte,
 
Outros se escondem pelo mato ou erva,
 
Muitos fugindo vêem com medo à morte,
 
Crendo achar na caverna um lugar forte.
 
X
 
Mas o prudente Diogo, que entendia
 
Não pouca parte do idioma escuro,
 
Por alguns meses em que atento o ouvia,
 
Elege um posto a combater seguro.
 
Atento a toda voz que ouvir podia,
 
Por escutar dos seus o caso duro,
 
Entre esperanças e receio intenso,
 
Sem susto estava, sim, porém suspenso.
 
XI
 
Gupeva então, que os mais se adiantava,
 
Vendo das armas o medonho vulto,
 
Incerto do que vê, suspenso estava,
 
Nem mais se lembra do inimigo insulto
 
Alguns dos anhangás imaginava (1)
 
Que dentro o grão-fantasma vinha oculto,
 
E à vista do espetáculo estupendo,
 
Caiu por terra o mísero tremendo.
 
XII
 
Caiu com ele junta a brutal gente;
 
Nem sabe o que imagine da figura,
 
Vendo-a brandir com a alabarda ingente
 
E olhando ao morrião, que o transfigura.
 
Ouve-se um rouco tom de voz fremente,
 
Com que espantá-los mais o herói procura;
 
E porque temem da maior ruína,
 
Faz-lhe a voz mais horrenda uma buzina.
 
XIII
 
Entanto a gente bárbara, prostrada,
 
Tão fora de si está por cobardia,
 
Que sem sentido, estúpida, assombrada,
 
Só mostra viva estar porque tremia.
 
Quais verdes varas de árvore copada,
 
Se assopra a viração do meio-dia,
 
De uma parte à outra parte se meneiam,
 
Assim de medo os vis no chão perneiam.
 
XIV
 
Mas Diogo naqueles intervalos,
 
Suspendendo o furor do duro Marte,
 
Esperança concebe de amansá-los
 
Uma vez com terror, outra com arte.
 
A viseira levanta e vai buscá-los,
 
Mostrando-se risonho em toda a parte:
 
"Levantai-vos" (lhes diz), e, assim dizendo,
 
Ia-os co’a própria mão na terra erguendo.
 
XV
 
Gupeva, que no trajo mais distinto
 
Parecia na turba do seu povo,
 
O principal no mando, meio extinto
 
Pelo horror do espetáculo tão novo,
 
Tremendo em pé ficou, sem voz e instinto.
 
E caíra sem dúvida de novo,
 
Se nos braços Diogo o não tomara
 
E de água ali corrente o borrifara.
 
XVI
 
"Não temas (disse afável), cobra alento."
 
E, suprindo-lhe acenos o idioma,
 
Dá-lhe a entender que todo esse armamento
 
Protege amigos, se inimigos doma;
 
Que os não ofende o bélico instrumento,
 
Quando de humana carne algum não coma.
 
"- Que, se a comerdes, tudo em cinza ponho..."
 
E, isto dizendo, bate o pé, medonho.
 
XVII
 
"Toma nas mãos (lhe diz), verás que nada
 
Te hão de fazer de mal." E, assim falando,
 
Põe-lhe na mão a partasana e espada,
 
E vai-lhe à frente o morrião lançando.
 
Diminui-se o horror na alma assombrada
 
E vai-se pouco a pouco recobrando.
 
Até que a si tornando reconhece
 
Donde está, com quem fala e o que lhe of’rece.
 
XVIII
 
"Se dalém das montanhas cá te envia (2)
 
O grão-Tupá (lhe diz), que em nuvem negra
 
Escurece com sobra o claro dia,
 
E manda o claro sol, que o mundo alegra;
 
Se vens donde o sol dorme e se à Bahia
 
De alguma nova lei trazes a regra,
 
Acharás, se gostares, na cabana
 
Mulheres, caça, peixe e carne humana."
 
XIX
 
"- A carne humana! (replicou Diogo,
 
E como pode, explica em voz e aceno).
 
Se vir que come algum, botarei fogo,
 
Farei que inunde em sangue esse terreno;
 
"- Pois, se os bichos nos devem comer logo,
 
(O bárbaro lhe opõe com desempeno)
 
A nós faz-nos horror, se eles nos comem,
 
E é menos triste que nos trague um homem.
 
XX
 
"O corpo humano (disse o herói prudente) (3)
 
Como o brutal não é: desde que nasce,
 
É morada do espírito eminente,
 
Em quem do grão-Tupá se imita a face.
 
Sepulta-se na terra, qual semente
 
Que, se não apodrece, não renasce.
 
Tempo virá, que aos corpos reunida,
 
Torne a noss'alma a respirar com vida.
 
XXI
 
O lume da razão condena a empresa;
 
Pois, se o infando apetite o gosto adula,
 
Para extinguir a humana natureza,
 
Sem mais contrários, bastaria a gula.
 
Que se a malícia em vós ou se a rudeza
 
O instinto universal de todo anula,
 
É contudo entre os mais coisa temida
 
Que outrem, por vos conter, vos tire a vida."
 
XXII
 
Disse Diogo, e conduzia à gruta
 
O principal da bárbara caterva,
 
Que ali seguido pela gente bruta,
 
O lugar conhecido atento observa.
 
Gupeva a tudo atende e tudo escuta,
 
Mas sempre o horror, que concebeu, conserva;
 
E, olhando às armas, sem que a mais se arroje,
 
Chega com mão furtiva, apalpa e foge.
 
XXIII
 
Vinha a noite já então seu negro manto
 
Despregando na lúcida atmosfera,
 
Quando buscam sossego ao seu quebranto
 
No ninho as aves e na toca a fera,
 
E quando o sono com suave encanto,
 
Aos míseros mortais a dor modera;
 
Mas não modere em Diogo a mordaz cura
 
De amansar o furor da gente dura.
 
XXIV
 
Por dissipar na gruta a sombra fria,
 
Toma o férreo fuzil que, o fogo ateia,
 
E, vendo a rude gente que o acendia
 
E brilhar de improviso uma candeia,
 
Notando a pronta luz, que no óleo ardia,
 
Não acaba de o crer de assombro cheia.
 
Crêem, portanto, que o fogo do céu nasça
 
Ou que Diogo nas mãos nascê-lo faça.
 
XXV
 
Era o costume do selvagem rude,
 
Roçar um lenho noutro com tal jeito,
 
Que vinha por elétrica virtude,
 
A acender lume, mas com tardo efeito.
 
Mas, observando, sem que o lenho o ajude,
 
Em menos de um momento o fogo feito,
 
O menino imaginou que a Grécia creu,
 
Quando viu ferir fogo a Prometeu.
 
XXVI
 
Acesa a luz na lôbrega caverna,
 
Vê-se o que Diogo ali da nau levara:
 
Roupas, armas, e em parte mais interna,
 
A pólvora em barris, que transportara.
 
Tudo vão vendo à luz de uma lanterna,
 
Sem que o apeteça a gente nada avara,
 
Ouro e prata, que a inveja não lhe atiça,
 
Nação feliz, que ignora o que é cobiça!
 
XXVII
 
Mas entre objetos vários a que atende
 
Nota Gupeva extático a pintura
 
Que num precioso quadro, que ali pende,
 
Representava a Mãe da formosura:
 
Se seja coisa viva não entende,
 
Mas suspeitava bem pela figura
 
Digna a pessoa, de que a imagem era,
 
De ser mãe de Tupá, se ele a tivera.
 
XXVIII
 
"- Esta (pergunta o bárbaro) tão bela,
 
Tão linda face, acaso representa
 
Alguma formosíssima donzela,
 
Que esposa o grão-Tupá fazer intenta?
 
Ou porventura que nascesse dela
 
Esse que sobre os céus no sol se assenta?
 
Quem pode geração saber tão alta?
 
Mas se há mãe, que o gerasse, esta é sem falta."
 
XXIX
 
Encantado está o pio lusitano
 
De ouvir em rude boca tal verdade;
 
E adorando o mistério soberano,
 
" Mãe ter não pode (disse) a divindade,
 
Mas, sendo Deus eterno, fez-se humano;
 
E sem lesão da própria virgindade
 
A donzela o gerou, que pisa a lua,
 
Digna mãe de Tupá, mãe minha e tua.
 
XXX
 
Peçamos, pois que é mãe, que nos defenda,
 
Que te dê para ouvir dócil orelha
 
E contigo o teu povo recomenda."
 
Dizendo o herói assim, devoto ajoelha.
 
Gupeva o mesmo faz com fé estupenda
 
E pendente de Diogo, que o aconselha,
 
Levanta as mãos, como ele levantava,
 
E, vendo-o lacrimar, também chorava.
 
XXXI
 
Mas crendo rude, como então vivia,
 
Que fosse coisa vive a imagem santa,
 
Que por mãe de Tupá tudo saía,
 
Tendo poder conforme a glória tanta,
 
Repete o que ouve a Diogo com voz pia
 
E à mãe de Deus o coração levanta.
 
E encostando entre os rogos a cabeça,
 
Faz a noite e o desvelo que adormeça.
 
XXXII
 
Já o purpúreo, trêmulo horizonte,
 
Rosas parece que espalhava a aurora;
 
E o sol que nasce sobre o oposto monte,
 
A bela luz derrama criadora.
 
Ouvem-se as avezinhas junto à fonte,
 
Saudando a manhã com voz sonora;
 
E os mortais, já o sono desatados,
 
Tornavam novamente aos seus cuidados.
 
XXXIII
 
Quando Gupeva, manso e diferente
 
Do que antes fora na fereza bruta,
 
Convoca a ouvi-lo a multidão fremente,
 
Que à roda estava da profunda gruta.
 
Pasto no meio da confusa gente,
 
Que toda dele pende e atenta escuta:
 
"Valentes paiaiás (diz desta sorte) (4)
 
Que herdais o brio da prosápia forte:
 
XXXIV
 
Se ontem, do vil Sergipe surprendidos,
 
Vimos o grão-terreiro posto a saco,
 
Fomos cercados sim, mas não vencidos;
 
Não foi vitória, foi traição de um fraco;
 
Sabia bem por golpes repetidos,
 
Com quanto esforço na peleja ataco
 
E como sem traição faria nada,
 
Não tendo eu armas, vêm com mão armada.
 
XXXV
 
Sombra do grão-Tatu, de quem me ferve
 
Nestas veias o sangue, de quem trago
 
A invicta geração, que em guerra serve
 
De espanto a todos, de terror, de estrago;
 
Por que a glória a teu nome se conserve
 
E por que a cante da Bahia o lago,
 
Mandas de lá de donde o mundo acaba
 
Para o nosso socorro este Imboaba. (5)
 
XXXVI
 
Tu lhe mudaste em ferro a carne branda,
 
Tu fazes que na mão se acenda e lhe arda
 
A viva chama que Tupá nos manda,
 
Tupá, que rege o céu, que o mundo guarda.
 
Com ele hei de vencer por qualquer banda,
 
Com ele em campo armado, já me tarda
 
O cobarde inimigo, que a encontrá-lo
 
Vivo, vivo me animo a devorá-lo.
 
XXXVII
 
Sabeis, tapuias meus, como morrendo
 
Nossos irmãos e pais, que eles matavam,
 
Postos debaixo já o golpe horrendo,
 
Vosso nome a os vingar tristes chamavam;
 
Também vistes na guerra combatendo
 
Que estrago neles estas mãos causavam;
 
E as vezes que vos dei no campo vasto
 
Mil e mil deles por sab'roso pasto.
 
XXXVIII
 
Mas não come o estrangeiro, nem consente
 
Comer-se carne humana; e só teria
 
Outra carne qualquer por inocente,
 
Aves, feras, tatus, paca ou cotia.
 
Receba, pois, de nós grato presente
 
De quanto houver nos matos da Bahia:
 
Saia-se à caça; e, como lhe compete,
 
Prepare-se a hospedagem de um banquete."
 
XXXIX
 
Separa-se o congresso em breve espaço,
 
Dispõe-se em alas numerosa tropa:
 
Quem com taquaras donde pende o laço
 
Onde a avezinha cai, se incauta o topa;
 
Quem dos ombros suspende e quem do braço
 
Armadilhas diferentes; outro ensopa
 
Em visgo as longes ramas do palmito,
 
Onde impróvido caia o periquito.
 
XL
 
Os mais com frechas vão, que a um tempo seja
 
Tiro, que ofenda a fugitiva caça,
 
Ou armas (se ocorresse) na peleja,
 
Quando o inimigo de emboscada a faça.
 
E porque aos mais presida e tudo veja,
 
À frente do esquadrão Gupeva passa;
 
Nem fica Diogo só, que tudo via,
 
Mas segue armado a forte companhia.
 
XLI
 
Mais arma não levou que uma espingarda;
 
E, posto ao lado de Gupeva amigo,
 
Pronto a todo o acidente e posto em guarda,
 
Traz na cautela o escudo ao seu perigo.
 
Entanto a destra gente a caça aguarda,
 
E algum se afoita a penetrar no abrigo
 
Onde esconde a pantera os seus cachorros,
 
Outro a segue por brenhas e por morros;
 
XLII
 
Até que de Gupeva comandada,
 
Em círculo se forma a linha unido,
 
Onde quanto há de caça já espantada
 
Fique no meio de um cordão cingido.
 
A rês ali, do estrondo amedrontada,
 
Num centro está de espaço reduzido;
 
À mão mesmo se colhe: coisa bela!
 
Que dá mais gosto ver, do que comê-la.
 
XLIII
 
Não era assim nas aves fugitivas,
 
Que umas frechava no ar, e outras em laços
 
Com arte o caçador tomava vivas;
 
Uma, porém, nos líquidos espaços
 
Faz com a pluma as setas pouco ativas,
 
Deixando a lisa pena os golpes laços,
 
Toma-a de mira Diogo e o ponto aguarda:
 
Dá-lhe um tiro e derriba-a coa espingarda.
 
XLIV
 
Estando a turba longe de cuidá-lo,
 
Fica o bárbaro ao golpe estremecido,
 
E cai por terra no tremendo abalo
 
Da chama do fracasso e do estampido;
 
Qual do hórrido trovão com raio e estalo
 
Algum junto aquém cai, fica aturdido,
 
Tal Gupeva ficou, crendo formada
 
Nu arcabuz de Diogo uma trovoada.
 
XLV
 
Toda em terra prostrada, exclama a grita
 
A turba rude em mísero desmaio,
 
E faz o horror que estúpida repita
 
Tupá Caramuru! temendo um raio.
 
Pretendem ter por Deus, quando o permita
 
O que estão vendo em pavoroso ensaio,
 
Entre horríveis trovões do márcio jogo,
 
Vomitar chamas a abrasar com fogo.
 
XLVI
 
Desde esse dia, é fama que por nome
 
Do grão Caramuru foi celebrado
 
O forte Diogo; e que escutado dome
 
Este apelido o bárbaro espantado.
 
Indicava o Brasil no sobrenome,
 
Que era um dragão dos mares vomitado:
 
Nem doutra arte entre nós a antiga idade
 
Tem Jove, Apolo e Marte por deidade.
 
XLVII
 
Foram qual hoje o rude Americano,
 
O valente romano, o sábio argivo;
 
Nem foi de Salmoneu mais torpe o engano, (6)
 
Do que outro rei fizera em Creta altivo.
 
Nós que zombamos deste povo insano,
 
Se bem cavarmos no solar nativo,
 
Dos antigos heróis dentro às imagens
 
Não acharemos mais que outros selvagens.
 
XLVIII
 
E fácil propensão na brutal gente,
 
Quando em vida ferina admira uma arte,
 
Chamar um fabro a Deus da forja ingente,
 
Dar ao guerreiro a fama de um deus Marte.
 
Ou talvez por sulfúreo fogo ardente,
 
Tanto Jove se ouviu por toda a parte,
 
Hércules e Teseus, Jasões no Ponto (7)
 
Seriam coisas tais, como as que eu conto.
 
XLIX
 
Quanto merece mais que em douta lira
 
Se canto por herói quem, pio e justo,
 
Onde a cega nação tanto delira,
 
Reduz à humanidade uni povo injusto?
 
Se por herói no mundo só se admira
 
Quem tirano ganhava um nome Augusto,
 
Quando o será maior que o vil tirano,
 
Quem nas feras infunde um peito humano?
 
L
 
Tal pensamento então n'alma volvia
 
O grão Caramuru, vendo prostrada
 
A rude multidão, que Deus o cria
 
E que espera desta arte achar domada.
 
Política infeliz da idolatria,
 
Donde a antiga cegueira foi causada; (8)
 
Mas Diogo, que abomina o feio insulto,
 
Quando aumenta o terror, recusa o culto.
 
LI
 
"De Tupá sou (lhe disse) onipotente
 
Humilde escravo e como vós me humilho;
 
Mas do horrendo trovão, que arrojo ardente,
 
Este raio vos mostra que eu sou filho.
 
(Disse e outra vez dispara incontinente)
 
"- Do meio do relâmpago, em que brilho,
 
Abrasarei qualquer que ainda se atreva
 
A negar a obediência ao grão Gupeva."
 
LII
 
Deu logo a amiga mão com grato aspecto
 
Ao mísero Gupeva, que, convulso
 
No horror daquele ignívomo prospeto,
 
Jazia sem sentido e já sem pulso.
 
" Não temas (diz-lhe), amigo, que eu prometo
 
Que do meu braço se não mova impulso
 
Senão contra quem for tão temerário
 
Que sendo-te eu amigo, é teu contrário."
 
LIII
 
Recebera o bom Gupeva um novo alento,
 
Sentindo a grata mão que à vida o chama;
 
Nem pode duvidar pelo exprimento
 
De quando Diogo com fineza o ama.
 
Mas, sempre com receio do instrumento,
 
Teme que outra vez lance, a horrível chama;
 
E deixa-o no erro Diogo, a fim que incerto,
 
Nenhum pelo pavor se chegue ao perto.
 
LIV
 
Mas, por deixar incerta a gente infida,
 
Dá-lhe astuto o arcabuz que não tem carga:
 
" E quem (diz) é fiel pode com vida
 
Tê-lo na mão sem hórrida descarga;
 
Porém, se algum faltasse à fé devida,
 
Sentirá da traição por pena amarga,
 
Com próprio dano seu, cola mortal risco,
 
Relâmpago e trovão, fogo e corisco.
 
LV
 
Que eu, acordado esteja ou que adormeça,
 
Vigia em guarda minha o fogo oculto,
 
E a traição pagará com a cabeça
 
Quem tentasse fazer-me um leve insulto;
 
Porém, se eu mal não quero que aconteça,
 
Pode um menino, como pode o adulto,
 
E o mais fraco que houver na vossa gente,
 
Ter o trovão nas mãos sem que arrebente.
 
LVI
 
Porém guardai-vos, vós, que só no peito,
 
Só n'alma que tenhais tenção malina,
 
Vereis que trovão faz por meu respeito
 
E que vem no estampido a vossa ruína."
 
Treme Gupeva, ouvindo este conceito,
 
E humilde a fronte ao grão Diogo inclina,
 
Certo de não faltar na fé que rende,
 
Donde o raio e trovão crê que depende.
 
LVII
 
Convoca entanto o principal temido
 
As esquadras da turba, então dispersa,
 
E ao grão Caramuru pede rendido
 
Que eleja casa no país diversa,
 
E que a gruta deixando, suba unido
 
Onde em vasta cabana o povo versa;
 
Nem duvide que a gente fera e brava
 
O sirva humilde e se sujeite escrava.
 
LVIII
 
Do recôncavo ameno um posto havia,
 
De troncos imortais cercado à roda,
 
Trincheira natural, com que impedia
 
A quem quer penetrá-lo a entrada toda;
 
Um plano vasto no seu centro abria (9)
 
Aonde, edificando à pátria moda,
 
De troncos, varas, ramos, vimes, canas
 
Formaram, como em quadro, oito cabanas.
 
LIX
 
Qualquer delas com mole volumosa
 
Corre direita em linhas paralelas;
 
E mais comprida aos lados que espaçosa,
 
Não tem paredes ou colunas belas.
 
Um ângulo no cume a faz vistosa,
 
E coberta de palmas amarelas,
 
Sobre árvores se estriba, altas e boas,
 
De seiscentas capaz ou mil pessoas.
 
LX
 
Qual o velho Noé na imensa barca,
 
Que a bárbara cabana em tudo imita,
 
Ferozes animais próvido embarca,
 
Onde a turba brutal tranqüila habita,
 
Tal o rude tapuia na grande arca;
 
Ali dorme, ali come, ali medita,
 
Ali se faz humano e, de amor mole,
 
Alimenta a mulher e afaga a prole.
 
LXI
 
Dentro da grã-choupana a cada passo (10)
 
Pende de lenho a lenho a rede extensa;
 
Ali descanso toma o corpo lasso,
 
Ali se esconde a marital licença.
 
Repousa a filha no materno abraço
 
Em rede especial que tem suspensa,
 
Nenhum se vê (que é raro) em tal vivenda
 
Que a mulher de outrem nem que a filha ofenda.
 
LXII
 
Ali chegando a esposa fecundada
 
A termo já feliz, nunca se omite
 
De pôr na rede o pai a prole amada,
 
Onde o amigo e parente o felicite;
 
E, como se a mulher sofrera nada,
 
Tudo ao pai reclinado então se admite,
 
Qual fora tendo sido em modo sério
 
Seu próprio, e não das mães, o puerpério.
 
LXII
 
Quando na rede encosta o tenro infante,
 
Pinta-o de negro todo e de vermelho;
 
Um pequeno arco põe, frecha volante,
 
E um bom cutelo ao lado; e em tom de velho,
 
Com discurso patético e zelante,
 
Vai-lhe inspirando o paternal conselho:
 
Que seja forte, diz, (como se o ouvisse)
 
Que se saiba vingar, que não fugisse.
 
LXIV
 
Dá-lhe depois o nome, que apropria,
 
Por semelhança que ao infante iguala,
 
Ou com que o espera célebre algum dia,
 
Senão é por defeito que o assinala.
 
A algum na fronte o nome se imprimia,
 
Ou pintam no verniz, que tem por gala;
 
E, segundo a figura se lhe observa,
 
Dão-lhe o nome de fera, fruto ou erva.
 
LXV
 
Trabalho entanto a mãe sem nova cura,
 
Quando o parto conclui e em tempo breve,
 
Sem mais arte que a próvida natura,
 
Sente-se lesta e sã, robusta e leve:
 
Feliz gente, se unisse com fé pura
 
A sóbria educação que simples teve!
 
Que o que a nós nos faz fracos sempre estimo,
 
Que é mais que pena ou dor, melindre e mimo.
 
LXVI
 
Vai com o adulto filho a caça ou pesca
 
O solícito pai pelo alimento;
 
O peixe à mulher traz e a carne fresca
 
E à tenra prole a fruta por sustento.
 
A nova provisão sempre refresca
 
E dá nesta fadiga um documento,
 
Que quem nega o sustento a quem deu vida,
 
Quis ser pai, por fazer-se um parricida.
 
LXVII
 
Que se acontece que a enfermar se venha,
 
Concorre com piedade a turba amiga,
 
E por dar-lhe um remédio que convenha,
 
Consultam-no entre si com gente antiga;
 
Buscam quem de erva saiba ou cura tenha,
 
Que possa dar alívio ao que periga
 
Ou talvez sangram numa febre ardente,
 
Servindo de lanceta um fino dente.
 
LXVIII
 
Mas, vendo-se o mortal já na agonia,
 
Sem ter para o remédio outra esperança,
 
Estima a bruta gente ação mui pia,
 
Tirar-lhe a vida com a maça ou lança.
 
Se morre o tenro filho, a mãe seria
 
Estimada cruel quando a criança,
 
Que pouco antes ao mundo dela veio,
 
Não torna ao seu lugar no próprio seio.
 
LXIX
 
Tal era o povo rude, e tal usança
 
Se lhe vê praticar no vício iluso:
 
Tudo nota Diogo, na esperança
 
De corrigir por fim tão cego abuso.
 
No lugar da cabana, em que descansa
 
Menos da gente e multidão confuso,
 
Põe-lhe a rede Gupeva que o convida
 
De rica e mole pluma entretecida.
 
LXX
 
Mas eis que um grande número o rodeia
 
De emplumados, feíssimos selvagens;
 
Ouve-se a casa de clamores cheia,
 
Costume antigo seu nas hospedagens.
 
Qualquer chegar-se a Diogo ainda receia,
 
Por ter visto as horríficas passagens;
 
Mas mair ma apadu de longe explicam, (11)
 
E Bem vindo o estrangeiro! significam.
 
LXXI
 
Por costumado obséquio os mais luzidos
 
Tomam Diogo nos braços, e no peito
 
A frente lhe apertavam comedidos,
 
Sinal entre eles do hospital respeito.
 
Tiram-lhe em pressa as roupas e vestidos,
 
E, pondo-o sobre a rede, como em leito,
 
Sem mais dizer-lhe nada e sem ouvi-lo,
 
Tudo se afasta e deixam-no tranqüilo.
 
LXXII
 
Com maior cerimônia outra visita
 
Festiva celebrava o seu cortejo;
 
Femínea turba, que o costume incita
 
A oferecer-se honesta ao seu desejo.
 
Senta-se sobre os pés e felicita,
 
Cobrindo o rosto a mão, como por pejo;
 
Vestidas vêm de folhas tão brilhantes,
 
Que o que falta ao valor têm de galantes.
 
LXXIII
 
Parece ser da mesa o despenseiro
 
Um selvagem, que o nome lhe pergunta:
 
Se tem fome, lhe diz; ou se primeiro
 
Quereria beber? e logo ajunta,
 
Sem mais resposta ouvir, sobre o terreiro
 
A comida que trouxe em cópia munta:
 
Põe-se-lhe uiçu de peixe e carne crua (12)
 
E o mimoso cauim, que é paixão sua.
 
LXXIV
 
Todos com gula comem furiosa,
 
Sem olhar, sem falar, nem distrair-se;
 
Tanto se observem na paixão gulosa,
 
Que mal pudera ao vê-los distinguir-se
 
Se são feras ou homens. Vergonhosa,
 
Triste miséria humana! confundir-se
 
Um peito racional c’o um bruto feio
 
No horrendo vício donde o mal nos veio!
 
LXXV
 
Acabada a comida, a turba bruta
 
O Estrangeiro bem-vindo outra vez grita;
 
E a tropa feminina, que isto escuta,
 
Cobre a face com as mãos e o pranto imita.
 
Gupeva, pois, que o hóspede reputa
 
Causa do seu prazer e autor da dita,
 
O sacro fogo a roda lhe ateava,
 
Cerimônia hospital, que o povo usava. (13)
 
LXXVI
 
Bem presumia Diogo, no que explora,
 
Que algum mistério se ocultava interno;
 
Lembra lhe a chama que o Caldeu adora,
 
O fogo das vestais recorda, eterno.
 
Nem duvidava que de origem fora
 
Costume da nação, rito paterno,
 
Trazida, se é possível que se creia,
 
Na dispersão das gentes, da Caldéia.
 
LXXVII
 
Perguntá-lo dos bárbaros quisera;
 
Mas, como o aceno e língua muito engana,
 
Acaso soube que a Gupeva viera
 
Certa dama gentil brasiliana;
 
Que em Taparica um dia compreendera
 
Boa parte da língua lusitana,
 
Que português escravo ali tratara, (14)
 
De quem a língua, pelo ouvir, tomara.
 
LXXVII
 
Paraguassu gentil (tal nome teve),
 
Bem diversa de gente tão nojosa,
 
De cor tão alva como a branca neve,
 
E donde não é neve, era de rosa;
 
O nariz natural, boca mui breve,
 
Olhos de bela luz, testa espaçosa;
 
De algodão tudo o mais, com manto espesso,
 
Quanto honesta encobriu, fez ver lhe o preço.
 
LXXIX
 
Um principal das terras do contorno
 
A bela americana tem por filha;
 
Nobre sem fasto, amável sem adorno,
 
Sem gala encanta e sem concerto brilha
 
Servia aos carijós, que tinha em torno,
 
Mais que de amor, de objetos a maravilha;
 
De um desdém tão gentil, que a quem olhava,
 
Se mirava imodesto, horror causava.
 
LXXX
 
Foi destinada de seus pais valentes
 
Esposa de Gupeva; mas a dama
 
Fugia de seus olhos impacientes,
 
Nem prenda lhe aceitou, porque o não ama.
 
Nada sabem de amor bárbaras gentes,
 
Nem arde em peito rude a amante chama;
 
(Gupeva, que não sente o seu despeito,
 
Tratava a sem amor, mas com respeito.
 
LXXXI
 
Deseja vê-lo o forte lusitano,
 
Por que interprete a língua que entendia,
 
E toma por mercê do céu sob'rano
 
Ter como enteada o idioma da Bahia.
 
Mas, quando esse prodígio avista humano,
 
Contempla no semblante a louçania,
 
Pára um, vendo o outro, mudo e quedo,
 
Qual junto de um penedo outro penedo.
 
LXXXII
 
Só tu, tutelar anjo, que o acompanhas,
 
Sabes quando a virtude ali se arrisca
 
E as fúrias da paixão, que acende estranhas,
 
Essa de insano amor doce faísca
 
Ânsias no coração sentiu tamanhas
 
(Ânsias que nem na morte o tempo risca),
 
Que houvera de perder-se naquel’hora,
 
Se não fora cristão, se herói não fora.
 
LXXXIII
 
Mas desde o céu a santa inteligência
 
Com doce inspiração mitiga a chama,
 
Onde a amante paixão ceda à prudência
 
E a razão pode mais que a ardente flama.
 
Em Deus, na natureza e na consciência
 
Conhece que quer mal quem assim ama,
 
E que fora sacrílego episódio
 
Chamar à culpa amor, não chamar-lhe ódio.
 
LXXXIV
 
No raio deste heróico pensamento,
 
Entanto Diogo refletiu consigo,
 
Ser para a língua um cômodo instrumento
 
Do céu mandado na donzela amigo.
 
E, por ser necessário ao santo intento,
 
Estuda no remédio do perigo:
 
"- Que pode ser? sou fraco; ela é formosa...
 
Eu livre... ela donzela... Será esposa."
 
LXXXV
 
"- Bela (lhe disse então), gentil menina,
 
(Tornando a si do pasmo, em que estivera)
 
Sorte humana não é, mas é divina,
 
Ver-me a mim, ver-te a ti na nova esfera.
 
Ela a frase, em que falo aqui te ensina;
 
Ela, se não me engana o que alma espera,
 
Um fogo em nos acende, que de resto
 
Eterno haja de arder, se arder honesto.
 
LXXXVI
 
Desde hoje se a meus olhos corresponde
 
O meigo olhar das lúcidas pupilas,
 
Se amor é... porque amor quem é que o esconde?
 
Se por ele essas lagrimas destilas,
 
Com que chamas meu peito te responde,
 
Com mão de esposa poderás senti-las."
 
Disse; estendendo a mão, ofereceu-lha;
 
Ela, que nada diz, sorriu-se e deu-lha.
 
LXXXVII
 
Põe-lhe de fuga os olhos, que abaixara;
 
E, ou de amante ou também de vergonhosa
 
Um tão belo rubor lhe tinge a cara,
 
Como quando entre os lírios nasce a rosa:
 
Três vezes quis falar, três se calara;
 
E ficou do sossobro tão formosa,
 
Quanto ele ficou cego; e em tal porfia,
 
Nem um, nem outro então de si sabia.
 
LXXXVIII
 
Mas, refletindo logo, o herói prudente,
 
Fixou no coração com fé segura,
 
Não cumprir as promessas de presente,
 
Antes que lhe entre n'alma a formosura.
 
Rende-lhe o seu amor, mas inocente;
 
E faz lhe prometer que com fé pura,
 
Enquanto se não lava e regenera,
 
Em continência viverão sincera.
 
LXXXIX
 
"E esta fé (diz-lhe), esposa em Deus querida,
 
Guardar-te hoje prometo em laço eterno,
 
Até banhar-te n'água prometida,
 
Por cândida afeição de amor fraterno.
 
Amor, que sobreviva à própria vida,
 
Amor, que preso em laço sempiterno,
 
Arda depois da morte em maior chama,
 
Que assim trata de amor quem por Deus ama."
 
XC
 
"Esposo (a bela diz), teu nome ignoro;
 
Mas não teu coração, que no meu peito,
 
Desde o momento em que te vi, que o adoro.
 
Não sei se era amor já, se era respeito,
 
Mas sei do que então vi, do que hoje exploro,
 
Que de dois corações um só foi feito.
 
Quero o batismo teu, quero a tua Igreja,
 
Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja.
 
XCI
 
Ter-me-ás, caro, ter-me-ás sempre a teu lado;
 
Vigia tua, se te ocupa o sono;
 
Armada sairei, vendo-te armado,
 
Tão fiel nas prisões como num trono.
 
Outrem não temas que me seja amado;
 
Tu só serás senhor, tu só meu dono".
 
Tanto lhe diz Diogo, e ambos juraram,
 
E em fé do juramento as mãos tocaram.
 
(1)Anhangá. — Nome do demônio, em língua brasílica, conhecido daqueles bárbaros pelo uso da nigromancia.
 
(2) Montanhas. — Persuadem-se os Brasilienses que, alem das montanhas que dividem o Brasil do Peru, seja o Paraíso. Vide Martinière, Dicionário Geográfico, verb. Brasil, onde se lerá a maior parte da história dos ritos e costumes do Brasil, que aqui e na serie do Poema escrevemos.
 
(3) O corpo humano. — Razão suficiente, porque é ilícito comer a carne humana por princípios teológicos na presente oitava e na seguinte pelos naturais.
 
(4) Paiaiás. — Nome honorífico em língua brasílica, equivalente a Nobre ou Senhores . O poeta conforma-se ao costume destas gentes, entre as quais os príncipes fazem longas falas aos seus compatriotas, exortando-os pelos princípios que aqui se tocam.
 
(5) Imboaba. — Vos com o que os bárbaros nomeiam os Europeus.
 
(6) Salmoneu. — Este príncipe pretendia imitar o raio para espantar os gregos, então bárbaros e semelhantes aos nossos Brasilienses . Tanto se pode crer no Rei de Creta, que aqueles Insulares chamaram Júpiter.
 
(7) Hércules. — Os heróis dos tempos fabulares foram sem duvida semelhantes aos nossos primeiros descobridores, feitos celebres pela rudeza e ignorância dos seus tempos. Observamos este paralelo para preocupar a censura de quem acaso estimasse a matéria e objeto desta epopéia, digna de comparar-se à que escolheram os antigos poetas épicos.
 
(8) Causada. — É certo que a idolatria dos Gregos teve grande ocasião nos inventores das artes; e vimos outro tanto nos Americanos, dispostos a crer imortais os Europeus.
 
( 9 ) Um plano. — Descrição das tabas, ou aldeias brasílicas.
 
(10) Dentro. — O padre Martinière, célebre crítico, e testemunha ocular, atesta parte destes costumes; e outros Osório, Vasconcelos, Pita, que não citamos, por serem espécies vulgares.
 
(11) Mais mair. — Nas hospedagens costumam assim os brasilianos; e do padre Martinière copiamos as palavras que então proferem e a sua interpretação.
 
(12) Uiçu — Farinha a que reduzem a carne torrada, ou o peixe. Cauim, bebida semelhante à que já dissemos de Catimpoeira.
 
(13) Cerimônia — Tinha esta cerimônia como religiosa, persuadidos que faz fugir o demônio.
 
(14) Português escravo. — Ficção poética sobre o verossímil, não sendo difícil que algum dos portugueses, deixados por Cabral, ou por outros capitães, nas costas para aprenderem a língua, comunicassem parte dela aos habitantes.
 
 
CANTO III
 
I
 
Já nos confins extremos do horizonte
 
Dourava o sol no ocaso rubicundo
 
Com tíbio raio acima do alto monte,
 
E as sombras caem sobre o vale fundo;
 
Ia morrendo a cor no prado e fonte;
 
E a noite, que voava ao novo mundo,
 
Nas asas traz com viração suave
 
O descanso aos mortais no sono grave.
 
II
 
Só com Gupeva a dama e com Diogo,
 
Gostosa aos dois de intérprete servia;
 
E, perguntado sobre o sacro fogo,
 
A qual fim se inventara, a que servia,
 
Deu-lhe simples razão Gupeva logo:
 
"- Supre de noite (disse) a luz do dia;
 
E como Tupá ao mundo a luz acende,
 
Tanto fazer-se aos hóspedes emprende.
 
III
 
Se pecando o mau espirito solevas,
 
Sucede que talvez cruel se enoje;
 
E como é pai da noite e autor das trevas,
 
Tanto aborrece a luz, que, em vendo-a, foge.
 
Porém, se a luz eterna o peito elevas,
 
Não há Fúria do Averno que se arroje;
 
Talvez por lhe excitar tristes idéias,
 
Das chamas que tiveram por cadeias".
 
IV
 
Admira o pio herói que assim conheça
 
A nação rude as legiões do Averno; (1)
 
Nem já duvida que do céu lhe desça
 
Clara luz de um principio sempiterno.
 
"- Diz-me, hóspede amigo, se professa
 
Este teu povo, diz, com culto externo
 
Adorar algum Deus? qual é? onde ande?
 
Se seja um Deus somente, ou que outros mande?"
 
V
 
"- Um Deus (diz), um Tupá, um ser possante
 
Quem poderá negar que reja o mundo,
 
Ou vendo a nuvem fulminar tonante,
 
Ou vendo enfurecer-se o mar profundo?
 
Quem enche o céu de tanta luz brilhante?
 
Quem borda a terra de um matiz fecundo?
 
E aquela sala azul, vasta, infinita,
 
Se não está lá Tupá, quem é que a habita?
 
VI
 
A chuva, a neve, o vento, a tempestade
 
Quem a rege? a quem segue? ou quem a move?
 
Quem nos derrama a bela claridade?
 
Quem tantas trevas sobre o mundo chove?
 
E este espírito amante da verdade,
 
Inimigo do mal, que o bem promove,
 
Coisa tão grande, como fora obrada,
 
Se não lhe dera o ser, quem vence o nada?
 
VII
 
Quem seja este grande ente, e qual seu nome,
 
(Feliz quem saber pode) eu cego o ignoro;
 
E, sem que a empresa de sabê-lo tome,
 
Sei que é quem tudo faz e humilde o adoro.
 
Nem duvido que os céus e terra dome,
 
Quando nas nuvens com terror o exploro,
 
Deixando o mortal peito em vil desmaio,
 
Ameaçar no trovão, punir no raio.
 
VIII
 
Só pasmo se nos fez como não veio,
 
Devendo amar o que obra de mão sua,
 
Ao mundo de anhangás cercado e cheio
 
A livrar o homem dessa besta crua!
 
Como é possível que não desse um meio,
 
Com que a mente ignorante, enferma e nua
 
Tratar com ele possa, quando é claro
 
Que o pai não deixa o filho em desamparo?
 
IX
 
Sinto bem remorder dentro em meu peito
 
Lembrança, que me acusa: por mim fica,
 
Se mais bem do que faz, me não tem feito,
 
Que é néscio quem o ingrato benéfica.
 
Outro povo talvez mereça eleito
 
A assistência dos céus de graças rica;
 
Nem contra Deus se justifica a queixa,
 
Que costume deixar quem o não deixa.
 
X
 
Mas, se do trono celestial e eterno,
 
Apesar da malícia, nos visita,
 
Quem sabe se por zelo hoje paterno,
 
A nosso bem mandar-te aqui medita?
 
Pois creio bem que contra o fogo Averno
 
Trazes a chama que a do raio imita,
 
Ou que vens como luz, de etéreo assento,
 
Por levar-nos contigo ao firmamento".
 
XI
 
Pasmava o lusitano da eloqüência
 
Com tão alto pensar numa alma rude,
 
Notando como a eterna sapiência
 
A face a todos mostra da virtude.
 
E reputava por maior clemência,
 
Que a quem, se a fé conhece, ingrato a ilude,
 
Negasse Deus a luz, que os outros viam,
 
Porque, tendo-a maior, mais cegariam".
 
XII
 
"Não deixa nunca os seus o céu piedoso
 
(Diogo respondeu) que à terra indigna
 
Manda o seu Unigênito glorioso
 
Que ofereça, a quem o invoca, a mão benigna;
 
Mas, se antevisse no homem pernicioso (3)
 
Uma livre eleição sempre maligna,
 
Por dar-lhe menos pena em menor falta
 
Em sombra, como a voz, deixa tão alta.
 
XIII
 
Tendes entanto um claro sentimento,
 
Que espírito imortal se nos concede..." (4)
 
"Sim, diz Gupeva, que o decide atento
 
Quem tudo quanto sente parte ou mede.
 
Mas mirando ao seu próprio pensamento,
 
Vê que a medida sempre intato excede;
 
E sendo Indivisível desta sorte,
 
Como pode a razão sofrer a morte?
 
XIV
 
Quantas vezes em mim, se ser pudesse,
 
Um pensamento d'alma eu dividira!
 
Que todo o mal enfim que o homem padece
 
Vem da imagem cruel, que dentro gera.
 
mas a interna impressão tanto mais cresce
 
Quanto o peito ansiado mais suspira;
 
E vejo que há em mim mesmo oculto e interno
 
Entre a mente e a verdade um laço eterno. (5)
 
XV
 
Sendo a mente mortal, tornara ao nada,
 
Ao apagar-se a luz no extremo dia.
 
E antes de ser punida ou premiada,
 
Uma alma justa ou ré pereceria.
 
sempre em desejos, nunca saciada.
 
Má sem castigo e sem fortuna pia,
 
Sem chegar ao seu fim perder a essência...
 
Como é crível que Deus tem providência? (6)
 
XVI
 
Se o fim do inerte bruto se inquirisse,
 
No contexto das obras respondera
 
Que fora leito porque nos servisse
 
E que eterno destino não tivera, (7)
 
Onde era bem que a morte destruísse
 
Quem para imortal fim nunca nascera;
 
Porque lhe dera, a tê-lo, o céu divino
 
Outro corpo, outra forma, outro destino.
 
XVII
 
Que o bruto elege, pensa, que discorre
 
Do que o vemos obrar fica evidente;
 
mas cada espécie a um curto fim concorre,
 
Sem órgão e aptidão com que outro intente.
 
O homem tudo quer, por tudo corre,
 
Tem órgãos para tudo e tudo sente;
 
Infinito em pensar e no que vejo
 
Maior que no pensar no seu desejo.
 
XVIII
 
Tudo domina só, tudo governa,
 
Sem que a outro animal servir costume;
 
Toda outra espécie à sua, é subalterna,
 
E, se imortal nascera, fora um nome; (8)
 
Arbítrio universal, razão eterna,
 
Capaz de receber o imenso lume,
 
E fora mais, se a morte o dissipara,
 
Que se céu, terra e inferno aniquilara."
 
XIX
 
Pasmado Diogo do que atento escuta,
 
Não crê que a singular filosofia
 
possa ser da invenção da gente bruta,
 
Mas a intérprete bela lhe advertia
 
que a antiga tradição o nunca interrupta,
 
Em cantigas, que o povo repetia,
 
Desde a idade infantil todos compreendem
 
E que dos pais e mães cantando o aprendem.
 
XX
 
Que eram pedaços das canções, que entoam (9)
 
As que ouvia a Gupeva (e talvez tudo)
 
Que poético estilo doces soam
 
Feitas por sábios de sublime estudo.
 
Que alguns entre eles com tal estro voam,
 
Que envolvendo-se o harmônico no agudo,
 
Parece que lhe inflama a fantasia
 
Algum nume, se o há, da poesia.
 
XXI
 
Tendo Paraguassu dito discreta,
 
Prossegue então Gupeva os seus assuntos
 
Que, se as almas morressem, que indiscreta
 
A memória seria dos defuntos ?
 
A que servira a lei que nos decreta (10)
 
Que no sepulcro se lhe ponham juntos
 
Comidas, arcos, frechas? quem resista
 
A quem depois da morte não subsiste?
 
XXII
 
O inimigo anhanhá, logo que deixa
 
A nossa alma esta carne, em fúria a invade,
 
E do mal, que cá fez, cruel se queixa,
 
Até que em sombras entre ou claridade;
 
O rito do sepulcro expresso deixa,
 
Que, enterrando-se em pé, na eternidade
 
O fim buscamos, a que Deus nos cria
 
E que antes de o alcançar se segue a via.
 
XXIII
 
Deste princípio nasce que com prantos
 
Noite e dia se chora o seu decesso.
 
Louvam-se nos congressos como santos,
 
E põe-se no sepulcro um marco expresso;
 
Tantas memórias, pois, ofícios tantos,
 
A que fim, se a alma acaba, eu não conheço.
 
A expiação e obséquio era frustrado,
 
Se ela não vive ou purga algum pecado.
 
XXIV
 
Costumes são da oculta antiguidade
 
Que o grão-Tamandaré desde alta origem (11)
 
As gentes ensinou, com que à piedade
 
Todas no mundo as almas se dirigem;
 
E quando algum conteste esta verdade,
 
Provam-na os anhangás que nos afligem,
 
Pedindo aos nigromantes que a alma vendam
 
No que uma alma imortal nos recomendam.
 
XXV
 
Que é desde nossos pais fama constante
 
Que aonde o sol se pule fama montanhas(12)
 
Há um fundo lugar de que é habitante
 
O pérfido anhangá com cruéis sanhas:
 
Ali de enxofre a escuridão fumante
 
Com portas encerrou Tupá tamanhas,
 
Que as não pode forçar nem todo o inferno:
 
A morte é a chave, e o cadeado é eterno.
 
XXVI
 
Dentro nada se vê na sombra escura;
 
Mas no vislumbre fúnebre e tremendo
 
Distingue-se com vista mal segura
 
Um antro vasto, tenebroso e horrendo;
 
Ordem nenhuma tem; tudo conjura
 
Ao sempiterno horror, que ali compreendo:
 
Mutuamente mordendo-se de envolta,
 
Um noutro agarra, se o primeiro o solta.
 
XXVII
 
Se viste onda sobre onda procelosa,
 
Quando bate escumando a areia funda,
 
Como esta aquela engola, e mais furiosa
 
Montanha d'água vem, que ambas afunda,
 
Tal na caverna lôbrega horrorosa
 
Onda e onda de fogo os maus imunda:
 
Este sobe; Este desce; e um cataclismo
 
Alaga as nuvens e descobre o abismo.
 
XXVIII
 
Aqui o fero anhangá caiu (se conta),
 
Quando do grão-Tupá rompia o jugo;
 
E vem dos astros, que soberbo monta,
 
A ser em pena vil do homem verdugo.
 
Ali com mão cruel, com fúria pronta
 
Pune da nossa espécie o vil refugo;
 
E, em vez de mãos, as miserandas gentes
 
Enrosca em laços de cruéis serpentes.
 
XXIX
 
Ali, do grão-Tupá por lei severa,
 
No incêndio está, que o tempo não apaga,
 
Quem torpe incesto faz, quem adultera,
 
Quem 6 réu da lascívia infame e vaga.
 
Cada um, como a culpa cometera,
 
Tanto e no próprio membro o crime paga:
 
Fere-se a quem feriu; mas o homicida,
 
Só porque morra mais, não perde a vida.
 
XXX
 
Sentada em meio da morada horrenda,
 
Branca de cãs e imóvel na manobra,
 
Imensa sombra faz que a cauda prenda
 
Dentro na boca horrível uma cobra:
 
Com rouca(a voz e intimação tremenda
 
Ao tempo preso na vipérea dobra
 
Diz, retumbando eco a cavidade:
 
Oh vida! oh tempo! oh morte! oh eternidade!
 
XXXI
 
Além da grã-montanha, em que se oculta (13)
 
O cárcere das sombras horroroso,
 
De mil delicias num terreno exulta
 
Quem vive justo ou quem morreu piedoso.
 
Não se acha imagem nesta terra inculta
 
Que seja sombra do país ditoso.
 
O tempo ali da paz foi levantado,
 
Sempre aberto ao prazer e à dor fechado.
 
XXXII
 
Há do ameno jardim na vasta entrada
 
Uma grã-porta de safiras belas,
 
Onde da etérea luz reverberada
 
Se pinta em vasto fundo um mar de estrelas;
 
Toda ela em torno, em torno decorada
 
De flóridas belíssimas capelas.
 
Junto voragem há de um precipício,
 
Que sorve a quem se encosta infecto em vício.
 
XXXIII
 
Vêem-se dentro campinas deleitosas,
 
Geladas fontes, árvores copadas,
 
Outeiros de cristal, campos de rosas,
 
Mil frutíferas plantas delicadas;
 
Coberto o chão das frutas mais mimosas,
 
Com mil formosas cores matizadas;
 
E, à maneira, entre as flores, de serpentes,
 
Vão volteando as líquidas correntes.
 
XXXIV
 
Latadas de martírios há sombrias,
 
Que com a rama e flor formam passeios,
 
Onde passam sem calma os claros dias
 
Gozando sem temor de mil recreios.
 
Chuvas ali não há, nem brumas frias,
 
Nem das procelas hórridas receios;
 
Nem há na primavera e verdes maios
 
Quem receie o trovão, nem tema os raios.
 
XXXV
 
Entre o sussurro ali das fontezinhas,
 
Harmônica se escuta a voz sonora,
 
Com que mil inocentes avezinhas
 
Entoam a alvorada à fresca aurora;
 
Muitas com vôos vão ao céu vizinhas,
 
Outra segue o consorte, a quem namora,
 
E mil doces requebros gorjeando,
 
De raminho em raminho vai saltando.
 
XXXVI
 
Uma ave entre outras há que se discorre, (14)
 
Ou fama certa seja ou voz fingida,
 
Que do jardim a nós, de nós a corre,
 
Como fiel correio da outra vida;
 
Dizem que voa, quando algum lá morre,
 
E exprime no seu canto enternecida
 
O que alma passa nas eternidades,
 
E que nos leva e traz doces saudades.
 
XXXVII
 
Neste ameno jardim virem contentes
 
As almas que no mundo valorosas
 
A santa lei guardaram diligentes,
 
Obrando ações na vida gloriosas;
 
Os que foram na guerra mais valentes,
 
E a pátria com ações guardam honrosas
 
E os que em bélico horror com peito forte
 
Temem mais uma afronta do que a morte.
 
XXXVIII
 
Aqui do grão-Tupá no amado seio
 
Conversam, dançam, jogam sem fastio;
 
Uns dos males passados sem receio
 
Cantam da crua guerra o caso ímpio,
 
Outros da própria morte o golpe feio
 
Recordam sem pavor, contam com brio,
 
Que o recordar um mal que ó já passado
 
Dá depois mais prazer que então cuidado.
 
XXXIX
 
Ali dos pais as almas venturosas
 
Unidas sempre estão ao filho amado;
 
E o prêmio das fadigas laboriosas
 
Cozam no seio um doutro sem cuidado.
 
A mãe abraça as filhas amorosas,
 
Como o esposo a consorte em puro agrado;
 
Sem guerra, sem contenda, sem porfia
 
Passam tranqüila a noite e alegre o dia.
 
XL
 
Mas o que é mais suave, o que é mais doce,
 
É gozar-se entre tanta amenidade
 
De todo o bom desejo a inteira posse,
 
Nem ter de coisa vá necessidade.
 
Oh quem do tanto bem possessor fosse!
 
Grato país! amável liberdade!
 
Onde por graça de Tupá infinita
 
Ninguém padece, teme ou necessita!
 
XLI
 
Dizendo assim, Gupeva enterneceu-se,
 
Sentindo a força que o mortal levanta
 
A bem-aventurança. Comoveu-se
 
Também Diogo, vendo que em luz tanta
 
Tão pouco de Deus sabe; a todos deu-se
 
O eterno lume, cópia da lei santa;
 
Mas bem que de esplendor inunde um pego,
 
Quem é indigno de Deus fica mais cego.
 
XLII
 
" Que valem (disse ao bárbaro ignorante)
 
Jardins, flores, delicias e prazeres,
 
Faltando o objeto enfim mais importante,
 
Que é a face de Tupá? pois de a não veres,
 
Todo outro bem, que gozes por brilhante,
 
Por belo, por maior que o conceberes,
 
Para a nossa cobiça mal saciada
 
É vil, é vão, é pouco, é fumo, é nada.
 
XLIII
 
Finge que possa o homem gozar junto
 
Destes bens cá da terra um vasto rio,
 
Quanto Deus criar pode, tudo e munto;
 
Quem dele não gozar fica vazio;
 
Se o mundo a uma alma basta eu não pergunto:
 
Que ela goze infinitos sempre eu fio
 
Que. qual hidropisia verdadeira,
 
Quantos mais possuir, tanto mais queira.
 
XLIV
 
Toda essa glória, que me tens pintado,
 
Sem mais que um bem do mundo circunscrito,
 
Não é, Gupeva meu, mais que um bocado
 
Para quem só se farta do infinito;
 
E quando tudo o mais se haja logrado,
 
Se é um bem transitório, se é finito,
 
Em breve hás de sentir, e sem remédio,
 
Do futuro ânsia e do parado tédio.
 
XLV
 
Deus, caro amigo meu é Deus somente
 
Quem pode saciar nossa vontade;
 
Chegar a parte aonde o ver contente,
 
E vê-lo ali por toda a eternidade;
 
Todo o bem nele esta sumo e eminente,
 
Honra, gloria, grandeza, majestade,
 
Esta é, se discorreres em bom siso,
 
A idéia que hás de ter de um Paraíso.
 
XLVI
 
Porém narra-me entanto o que se pensa
 
Entre vós princípios deste mundo:
 
Quando? como? por quem na idéia imensa
 
Se tomou a medida ao céu profundo?
 
Qual foi o homem primeiro e de qual crença?
 
Ou se noticias tens do Adão segundo?
 
De qual origem sois ou de qual gente?
 
Ou quem veio a povoar tal continente?"
 
XLVII
 
" Memória nunca ouvi (Gupeva disse) (15)
 
Onde o homem nascesse; mas comprendo
 
Que houve princípio enfim que o produzisse;
 
Que sem fim e princípio eu nada entendo;
 
Como o criou não sei; e, bem que o visse,
 
Não pudera entendê-lo, conhecendo
 
Que entre o nada e o ser há tal distância,
 
que a ti te creio igual nesta ignorância.
 
XLVIII
 
O primeiro homem na geral lembrança,
 
A tradição dos velhos mais antigos,
 
Antes do grão-dilúvio não alcança;
 
Sabemos 80 que uns homens inimigos,
 
Do forte braço na falaz confiança,
 
Encheram todo o mundo de perigos
 
E deram causa que o dilúvio extenso
 
Num pego sepultasse a terra imenso.
 
XLIX
 
Do renovado mundo o patriarca
 
Desde o alto monte, onde escapou, descendo,
 
Depois que a grã-canoa e imensa barca,
 
Em que ao alto subiu, foi fundo tendo,
 
Na prole imensa dominou monarca,
 
E as várias tribos dividiu havendo
 
Por continentes e ilhas no mar fundo,
 
De toda a gente é pai que habita o mundo.
 
L
 
Predisse o justo velho o grão-castigo,
 
E, os homens exortando à penitência,
 
Nem à vista do próximo perigo
 
Chamá-los pode à justa obediência.
 
Cansado então Tupá da paz amigo
 
Do cruel latrocínio e da violência,
 
Quis por vingar-se o Padre onipotente
 
Com águas apagar a chama ardente.
 
LI
 
Faz que se abram do céu, que água encerra,
 
A catadupas, como imensos rios,
 
E, que a face inundando-se da terra,
 
Se afoguem bons e maus, justos e ímpios.
 
Os elementos em desfeita guerra
 
Confundem-se em medonhos desafios;
 
Cai um mar desde o céu, e na mesma hora
 
Manda a terra do centro outro mar fora.
 
LII
 
Já rota a margem, que nas brancas praias
 
Às ondas posto tinha o grão-sob'rano,
 
Passam as águas das extremas raias
 
Onde se ajunta com o monte o plano;
 
O peixe nadador, nas altas faias,
 
No ninho esta do alígero tucano;
 
E em seios as baleias ver puderas,
 
Covis dos tigres e antros de panteras.
 
LIII
 
Iam entanto os homens miserandos
 
De um monte a outro por fugir das águas,
 
E seu destino algum bandos e bandos
 
Correndo gritam com piedosas; magoas,
 
E os cegos deprecam, que os escutem brandos;
 
Mas a ira de Tupá com justas frágoas
 
Fulminando centelhas e coriscos,
 
Faz maiores os danos do que os riscos.
 
LIV
 
Via-se em longa tábua mal segura
 
Nadar sobre água a mãe desventurada,
 
E, tendo ao colo apensa a criatura,
 
Ora é n’água abatida, ora elevada.
 
Quem desde o alto das casas se pendura,
 
Quem fabrica de lentos a jangada,
 
Qual da fome mortal horror concebe,
 
E crê que é menos mal, se a morte bebe.
 
LV
 
Tamandaré, porém, de Tupá amigo,
 
Enquanto grã-procela horrível soa,
 
Salva o naufrago mundo pelo abrigo
 
Que aos filhos procurou na grã-canoa;
 
E a barca, por memória do castigo,
 
Elevada deixou sobre a coroa
 
Das altas serras, que, na fama claras,
 
Têm nome semelhante ao das araras. (16)
 
LVI
 
Daqui por várias terras espalhados
 
Os homens foram que seus netos cremos;
 
Uns que a fronte de nós deixou queimados,
 
O claro sol que nasce em seus extremos, (17)
 
Outros, que habitam climas apartados,
 
Dessa cor branca que em teu rosto vemos,
 
Divididos do mar, por onde as proas
 
Endireitam a nós vossas canoas.
 
LVII
 
Se sois de nós, se nós das vossas gentes,
 
São coisas que nós todos ignoramos,
 
Pois de paterno chão sempre contentes,
 
Doutras terras e tempos não cuidamos;
 
Mas vós, que os mares passeais ingentes,
 
Podereis inferir se os que aqui estamos,
 
Depois que de um pai só todos nascemos,
 
Com alguns entre vós nos parecemos,
 
LVIII
 
Que, se em vós houve ou há quem assim trate, (18)
 
Quem se governe assim, quem edifique,
 
Ou quem com armas, como nós combate,
 
Quem todo à caça, como nós se aplique;
 
Sé há quem devore os homens quando os mate,
 
A quem o feroz vulto imberbe fique,
 
Desde Tamandaré, que é pai das gentes,
 
Podemos crer que são nossos parentes.
 
LIX
 
Conserva-se num povo o antigo rito,
 
Se o não altera o rito do estrangeiro,
 
E sempre algum vestígio fica escrito
 
Por tradição do século primeiro
 
Vós sabereis, se a história tenha dito,
 
Que houve tempo em que o mundo quase inteiro,
 
Sem sabermos uns dos outros se habitasse,
 
E, como nós erramos, tudo errasse.
 
LX
 
Se os mares nunca dantes navegados
 
Discorrestes por climas diferentes,
 
Sabereis doutros homens separados,
 
Descobertos talvez das vossas gentes,
 
Que por estreitos, pode ser, gelados,
 
Transitaram nos nossos continentes;
 
Vos direis se homem há na roxa aurora
 
Nua e pintados, como nós agora.
 
LXI
 
E por que saibas mais nosso costume,
 
Onde julgues melhor da antiga origem,
 
Dir-te-ei como, seguindo o impresso lume,
 
As prudentes nações cá se dirigem;
 
Nem do vício de muitas se presume
 
Contra aquelas que sabias se corrigem;
 
Que também entre vós, creio, se escuta,
 
Quem tem boas leis, tem má conduta.
 
LXII
 
De Tupá, que o trovão com fogo manda,
 
Trememos, como vês, espavoridos;
 
Mas, quando vemos que a procela abranda,
 
Ficam os homens de Tupá esquecidos:
 
E bem suspeito que nessoutra banda
 
Suceda assim, se o horror vem dos sentidos;
 
E que entre vós também gente se veja
 
Que não temem Tupá e não troveja.
 
LXIII
 
Quem o blasfeme, afronte, ou quem o chame
 
A ser-lhe testemunha quando mente,
 
Nunca se ouve entre nós com fúria infame (19)
 
E só de o imaginar se assombra a gente.
 
Raro quem o adore ou quem o ame;
 
Mas mais raro será quem, insolente,
 
Tenha do sumo Ser tão cega incúria
 
Que trate o nome seu com tanta injúria.
 
LXIV
 
De externo culto a Deus há pouco indício;
 
Se não é no que estimas bruto engano
 
De fazermos cruento sacrifício,
 
Não do sangue brutal, porém do humano.(20)
 
Vejo à luz da razão que é feio vício
 
Que ao instinto repugna por tirano;
 
Mas matar quem nos mais o crime atiça
 
Não é vitima digna da justiça?
 
LXV
 
Justiça do céu reconhecemos
 
Contra quem delinqüente a profanasse;
 
Pondo suplícios contra os maus extremos,
 
E em justo sacrifício a pena dá-se.
 
O malfeitor, o réu, quando o prendemos,
 
Com sacro rito a cerimônia faz-se;
 
Que quem no sangue ímpio a Deus vindica,
 
Este o aplaca somente e sacrifica. (21)
 
LXVI
 
A forma do governo por abuso
 
Anárquico entre nós sem lei se oferece;
 
Mas nos que fazem da razão bom uso
 
Justa legislação reinar parece.
 
Nem nos tomes por povo tão confuso,
 
Que um público poder não conhecesse:
 
Ha senado entre nós, sábio e prudente, (22)
 
A quem o nobre cede e a humilde gente.
 
LXVII
 
Vagamos sempre e nunca um firme assento
 
Nos deixam ter da caça os exercícios;
 
Buscamos nela os próprios alimentos,
 
E habitamos onde a há ou dela indícios.
 
E estes são de ordinário os fundamentos
 
De ocupar-nos em bélicos ofícios.
 
Verás as gentes em contínuo choque
 
Sobre a quem o terreno ou prata toque.
 
LXVIII
 
Em várias castas e nações diversas
 
Dividido o sertão vagar costuma;
 
E, bem que vagabundas e dispersas,
 
Confederam-se as tabas de cada uma. (23)
 
Em guerra e paz e em sedições perversas
 
Ao pátrio nome não se nega alguma;
 
E, se o senado o quer, por justos modos
 
Põem-se todos em paz e armam-se todos.
 
LXIX
 
São nos senados membros e cabeças
 
Os velhos sábios capitães valentes,
 
Os que têm socorrido em grandes pressas
 
Com conselhos à pátria mais prudentes:
 
Destes as ordens dimanando expressas,
 
Um só se não verá nas nossas gentes
 
Que rompa, não cedendo a potestade,
 
Este laço da humana sociedade.
 
LXX
 
Destes uns da suprema divindade
 
Ministros são, que nos festivos dias, (24)
 
Fazendo-se qualquer solenidade,
 
O povo exortam com lembranças pias:
 
Honram cantando a eterna majestade,
 
Com sons, que para nós são melodias;
 
Coisas, que se Anhanhá corrompeu tanto,
 
Vê-se que nascem de princípio santo.
 
LXXI
 
Estes chefes do culto venerando
 
Mantém-nos a oblação do povo crente;
 
São mestres santos e, por nos orando,
 
O lume da razão mostra evidente
 
Que, em tão sublime ofício ministrando,
 
Têm direito a que o público os sustente;
 
Pois neles é mais justo que a lei valha
 
De comer cada um donde trabalha.
 
LXXII
 
Punimos o homicídio; quem mutila,
 
Quem bate ou fere não evite a pena:
 
A sentença ele a dá. Deve subi-la, (25)
 
Qual foi a culpa, com justiça plena:
 
Quem matou morrer deve: assim se estila,
 
Por lei sagrada, que a eqüidade ordena.
 
Quem cortou pé ou mão, braço ou cabeça,
 
No pé, no braço e mão tanto padeça.
 
LXXIII
 
A fé do matrimônio bem declara (26)
 
Que o vago amor a lei ofenderia;
 
Se se pudera usar sem que um casara,
 
Quem é que neste mundo casaria?
 
Deve morrer quem quer que adulterara;
 
Sem isso quem seu pai conheceria?
 
E o que extermina a pátria potestade
 
Quem não vê que repugna a humanidade?
 
LXXIV
 
Quem pai ou mãe conhece com incesto,
 
Ou quem corrompe a irmã, padece a morte:
 
Nos ofícios dos pais é manifesto (27)
 
Que confusão nascera desta sorte.
 
Ser a filha mulher não fora honesto,
 
Dominando em seu pai como consorte:
 
Se o irmão no matrimonio à irmã seguira,
 
Sempre o gênero humano mal se unira.
 
LXXV
 
Deve a humana geral sociedade,
 
Para gozar da paz com doce laço,
 
Vincular dos mortais a variedade (28)
 
De um consórcio feliz no caro abraço.
 
Deu-nos o céu por órgão da amizade,
 
Deu-nos como outra mão, como outro braço,
 
A consorte, em que o amor com fé excite,
 
Não por pasto brutal de um apetite.
 
LXXVI
 
E houvera sem prisão que tão suave,
 
Dominando entre os homens desde o Averno
 
A discórdia cruel e a inveja grave,
 
A conter-se o himeneu no amor fraterno.
 
Nasce do amor a paz: o amor é a chave,
 
É o doce grilhão, vínculo eterno,
 
Que, se o vil interesse algum desune,
 
Os peitos abre e os corações nos une.
 
LXXVII
 
Movidos deste fim por são costume,
 
Julgaram nossos pais na antiga idade
 
Que se ofende no incesto o impresso lume,
 
Como contrário à paz da sociedade.
 
E, se do céu preside o santo Nume
 
Ao sossego da triste humanidade,
 
Quem duvida que estime pouco honesto
 
Conhecer-se os irmãos com feio incesto?
 
LXXVIII
 
Entre nós, quem elege a esposa amada
 
Pede ao pai ou parente; e, sem pedi-la,
 
Não se julgara a fêmea desposada,
 
Por deixar a família assim tranqüila;
 
Que, se órfã fosse acaso abandonada,
 
Só pertence ao vizinho o permiti-la
 
E, convindo ou seu pai ou seu parente,
 
É sem mais matrimônio de presente.
 
LXXIX
 
Furto entre nós não há: de que há de havê-lo?
 
O que há, come-se logo; e, sem que o enfade,
 
Um tira doutro o que acha, por comê-lo;
 
E anda ao pé da pobreza a caridade.
 
A calúnia, a traição, o amargo zelo
 
Tem por pena a comum inimizade:
 
Nem há, se o entendo bem, maior castigo
 
Que o mundo todo ter por inimigo.
 
LXXX
 
Outra lei depois desta é fama antiga,
 
Que observada já foi das nossas gentes;
 
Mas ignoramos hoje a que ela obriga,
 
Porque os nossos maiores, pouco crentes,
 
Achando-a de seus vícios inimiga,
 
Recusaram guardá-la, mal contentes.
 
Alas da memória o tempo não acaba,
 
Que pregara Sumé, santo emboaba. (29)
 
LXXXI
 
Homem foi, de semblante reverendo,
 
Branco de cor, e, como tu, barbado,
 
Que desde onde o sol nos vem nascendo,
 
De um filho de Tupá vinha mandado;
 
A pé sem afundar (caso estupendo!)
 
Por esse vasto mar tinha chegado;
 
E na santa doutrina, que ensinava,
 
Ao caminho dos céus todos chamava.
 
LXXXII
 
Com grande mágoa ignora-se o que disse,
 
Mas não se ignora que da santa boca
 
Um conselho utilíssimo se ouvisse
 
De plantar e moer a mandioca;
 
Que havia de tornar também predisse,
 
Desde o céu a que amigo nos convoca,
 
E na terra ou no céu, que ele estivera,
 
Eu o iria a encontrar, se ele não viera.
 
LXXXIII
 
Contam que, quando aos nossos cá pregava,
 
Poder mostrara tal nos elementos,
 
Que às ondas punha lei, se o mar se irava,
 
E de um aceno só domava os ventos.
 
Os matos se lhe abriam, quando entrava,
 
E os tigres feros, a seus pés atentos,
 
Pareciam ouvir como a outra gente,
 
Festejando-o coa cauda brandamente.
 
LXXXIV
 
As águas donde quer, em rio ou lago,
 
Se as chegava a tocar com pé ligeiro,
 
Não pareciam do elemento vago,
 
Mas pedra dura, ou sólido terreiro,
 
Só com chamar seu nome, cessa o estrago,
 
Se o furacão com hórrido chuveiro,
 
Quando na nuvem, negra se levanta,
 
Ou derriba a cabana, ou quebra a planta.
 
LXXXV
 
Porém, negando às pregações o ouvido,
 
Vinha o caboclo do sertão mais bruto
 
Contra o justo Sumé, de Deus querido,
 
A matá-lo comê-lo resoluto.
 
Pudera ele fazer, sendo ofendido,
 
Que eles colhessem da cegueira o fruto;
 
Mas pede só prostrado a Deus que o c'roe,
 
E que a ignorância aos míseros perdoe.
 
LXXXVI
 
Os feros, pois, na fúria contumazes,
 
Tomam as frechas, e bramindo atiram;
 
Mas (quanto pelos teus, Tupá, não fazes!)
 
Contra quem atirou pelo ar se viram.
 
E nem assim se mostram mais capazes
 
Dos anúncios de paz que entanto ouviram.
 
Deixa-os Sumé, e um rio aborda cheio,
 
E só com pôr-lhe um pé partiu-o ao meio.
 
LXXXVII
 
Contam (e a vista faz que a gente o creia)
 
Que, onde as correntes d’água arrebatadas,
 
Se vão bordando com a branca areia,
 
Ficaram de seus pés quatro pegadas;
 
Vêem-se claras, patentes, sem que a veia
 
As tenha d'água no seu ser mudadas;
 
E enxerga se mui bem sobre os penedos,
 
Toda a forma do pé com planta e dedos."
 
LXXXVIII
 
Assim Gupeva concluiu, dizendo,
 
Nem mais tempo ao discurso haver podia,
 
Por aviso, que os campos vem batendo
 
Turba inimiga em vasta companhia:
 
- Às armas, grita, às armas! E o céu horrendo,
 
Retumbando nas árvores sombrias,
 
Fez que as mães, escutando os murmurinhos,
 
Apertassem no peito os seus filhinhos.
 
LXXXIX
 
" Não te espantes, diz Diogo; não alteres
 
A paz dentro as cabanas belicosas;
 
Enquanto novas certas não souberes,
 
Basta pôr guardas nos confins forçosas.
 
De noite não te empenhes, se temeres
 
Que te invadam com tropas numerosas,
 
Põe-te na defensiva, e bem que treme,
 
Quem te busca de noite e quem te teme.
 
XC
 
Quanto mais que o trovão nas mãos preparo
 
Contra teus inimigos neste afogo;
 
Nem duvides que logo que o disparo,
 
Tudo em chamas não vá, tudo arda em fogo."
 
Disse, e ao favor saiu de um luar claro,
 
Disparando o mosquete em márcio jogo;
 
E enquanto atira todo o bosque atroa
 
Pelo horror da buzina com que soa.
 
XCI
 
Qual dos monos talvez tropa nojosa,
 
Saiu do int’rior mato em negro bando;
 
E, se a frecha um derriba, vai medrosa,
 
Em fuga pelas árvores saltando:
 
Tal, ouvindo a buzina pavorosa,
 
E o arcabuz com trovão relampagueando,
 
Correm, caem, despenham-se na e estima
 
De que o céu todo lhes caía em cima.
 
(1) Legiões do Averno — É constante o conhecimento que têm os bárbaros da América dos espíritos infernais. De quem o apreenderam? Quem lhes inspirou estes sentimentos? Respondam os materialistas e libertinos Como era possível que concordassem com as outras gentes estas nações ferinas e sem algum comércio? Como era factível que conservassem depois de tantos séculos, tão clara noção de espíritos separados?
 
(2) Um Deus — É injúria que se faz por alguns autores aos brasilienses, supondo-os sem conhecimento de Deus, lei e rei. Eles têm a voz Tupã com a especial significação de um ente supremo, como sabemos dos missionários e dos peritos dos seus idiomas.
 
(3) Mas, se antevisse —Não admitimos em Deus ciência condicionada e exploratória; mas é certo que com determinado conhecimento conhece nos objetos as suas condições, e que na execução ao menos priva da sua graça alguns que antevê que abusaram livremente dela.
 
(4) Espírito imortal. — Os bárbaros americanos têm distinta idéia da imortalidade da alma, do paraíso, do inferno, da lei, etc. Veja-se Martinière, Osório de rebus Emmanuelis, e outros. Grande argumento contra os libertinos e materialistas. Pois quem lhes transfundiu estes conhecimentos, senão a antiga tradição dos tempos diluvianos, e a harmonia que estas tradições têm com a natureza!
 
(5) Laço eterno — A verdade e indelével impressão que dela sentimos no espírito é um grande argumento da imortalidade, a que recorreram maiormente Platão, Santo Agostinho, etc. Convence dos costumes e ritos dos brasilienses a antiga persuasão que têm da imortalidade da alma.
 
(6) Providência. — O argumento da pena e castigo que se deve aos injustos, e do prêmio que se concede aos bons é prova inegável da imortalidade da alma, suposta a Divina Providência, porque vemos morrer sem prêmio a piedade de muitos e sem castigo a injustiça.
 
(7) Destino — É esta a invencível e universal prova de ser mortal a alma do bruto porque, por experiência, e pela sua organização, vemos que têm um fim limitado, temporal e ordenado a servir o homem na vida mortal. Tudo ao contrário do homem mesmo.
 
(8) E se imortal nascera. —A imortalidade por natureza e essência é privilégio da divindade. Adão nasceu imortal por graça.
 
(9) Canções. — Sei que Martinière afirma não ter ouvido nas canções brasilienses indícios do religião. Mas suponho bem que não veria todas; e creio que seja impossível terem eles conservado as tradições que o mesmo autor confessa. sem este, ou igual meio.
 
(10) Que nos decreta. - Todos estes ritos, que subsistem nos americanos, convencem que as almas sobrevivem aos corpos, e que são, portanto, imortais.
 
(11) Tamandaré. — Noé, segundo as noções do dilúvio, que depois veremos.
 
(12) Montanha. — Crêem os brasilienses que no meio das, montanhas que dividem o Brasil do Peru há vales profundíssimos, aonde são punidos os ímpios. Idéia expressa do inferno, em que concordam com todas as gentes, e dão claro sinal nesta persuasão de saberem-no por tradição original dos
 
primeiros que povoaram a América. Não pode haver argumento mais convincente para encher de confusão os deístas, libertinos e materialistas. Uma tradição tão antiga, tão firme nestes bárbaros, é ela uma invenção porventura de alguns homens supersticiosos e impostores das nações da Ásia, ou da nossa Europa.
 
(18) Além da grã-montanha. — Os bárbaros crêem que haja lugar destinado para prêmio dos bons, e colocam-no além das montanhas do Peru.
 
(14) Uma ave. — Persuadem se os brasilienses haver uma ave, que chamam Colibri, a qual leva e traz noticia do outro mundo. Argumento inegável da sua crença sobre a imortalidade da alma.
 
(15) Memória. — Não têm os indígenas do Brasil idéia da criação, mas só de Noé e do dilúvio, e mui confusa dos homens antediluvianos. Todo argumento para convencer os incrédulos da história sagrada e do dilúvio universal nela referido. Veja-se Sebastião da Rocha Pita e Francisco de Brito Freire, na História Brasílica.
 
(16) Araras. —Entende o poeta os montes Ararat, onde ficou a arca.
 
(17) O claro sol. — Entende os africanos, que ficam ao oriente da América.
 
(18) Que, se em vós houve — A maior parte destes sinais se acham nos tártaros da Coréia, e em outros selvagens fronteiros à Califórnia. Nem duvidamos que estes, gelando-se ali os mares, passassem ao continente da América pela parte mais setentrional.
 
(19) Nunca se ouve — O juramento, blasfêmia e imprecação, são vícios ignorados entre os nossos selvagens, e raríssimos entre os tártaros.
 
(20) Do humano. — Não há indício de, sacrifico nos indícios brasilienses; mas, sendo as vítimas humanas praticadas no México, Peru e em outras nações da América, persuadimo-nos que a solenidade dos homicídios nos habitantes do sertão é um vestígio dos sacrifícios costumados entre os mais americanos.
 
(21) Sacrifício — O sacrifício é com efeito uma destruição da vítima, e, como expiatório, satisfazia à justiça com o sangue.
 
(22) Há senado. — Todos os que escrevem os costumes dos brasilianos confessam que presidem ao seu governo os anciãos e os príncipes das Tabas, ou aldeias: e que outra coisa é o senado.
 
(23) Tabus.— Assim chamam os brasilienses às suas aldeias. Veja-se o Dicionário da Gramática e língua Brasílica na sua voz Taba.
 
(24) Ministros são. — Espécie de sacerdócio nos brasilianos; e consta que os povos concorrem para o seu sustento com ofertas.
 
(25) A sentença ele a dá. — Os autores da história brasílica descobrem nos bárbaros do sertão a lei célebre de Talião. Da mesma sorte lhes atribuem leis para punir o adultério e o incesto em primeiro e o segundo grau.
 
(26) A fé do matrimônio. — Martinière afirma que os brasilienses Celibes guardam alguma honestidade. Será dissolução da gente bárbara; mas a constante tradição de conjugarem-se em matrimônio é argumento de que repugna aos seus costumes a Vênus vaga e sem freio.
 
(27) Nos ofícios dos pais. — É a razão suficiente, por onde se faz ilícito o incesto. Repugna à pátria potestade servir à esposa e entregar-lhe o poder sobre o seu corpo, sendo ela sua filha, isto é, inteiramente sujeita ao seu domínio.
 
(28) Dos mortais a variedade. — Razão suficiente, por onde repugna aos direitos da sociedade o incesto em segundo grau. Impediria o comércio e confederação do gênero humano o restringirem-se os matrimônios aos irmãos; e naturalmente se restringiriam pela ocasião, se fossem lícitos.
 
(29) Sumé. — O padre Nóbrega, primeiro e insigne missionário do Brasil, refere quanto aqui dizemos do apóstolo S. Tomé. Veja-se o padre Antônio Franco na Imagem da Virtude, escrevendo a vida do mesmo Nóbrega.
 
 
CANTO IV
 
I
 
Era o invasor noturno um chefe errante,
 
Terror do sertão vasto e da marinha,
 
Príncipe dos Caetés, nação possante
 
Que do grão-Jararaca o nome tinha.
 
Este de Paraguassu perdido amante,
 
Com ciúmes da donzela, ardendo vinha;
 
Ímpeto que à razão, batendo as asas,
 
Apaga o Caro lume e acende as brasas.
 
II
 
Dormindo estava Paraguassu formosa,
 
Onde um claro ribeiro à sombra corre;
 
Lânguido está, como ela, a branca rosa,
 
E nas plantas com calma o vigor morre;
 
Nas, buscando a frescura deleitosa
 
De um grão-maracujá, que ali discorre,
 
Recostava-se a bela sobre um posto,
 
Que, encobrindo-lhe o mais, descobre o rosto.
 
III
 
Respira tão tranqüila, tão serena,
 
E em langor tão suave adormecida,
 
Como quem livre de temor, ou pena,
 
Repousa, dando pausa à doce vida.
 
Ali passar a ardente sesta ordena,
 
O bravo Jararaca a quem convida
 
A frescura do sítio e sombra amada,
 
E dentro d'água a imagem da latada.
 
IV
 
No diáfano reflexo da onda pura
 
Avistou dentro d’água buliçosa,
 
Tremulando, a belíssima figura.
 
Pasma, nem crê que imagem tão formosa
 
Seja cópia de humana criatura.
 
E, remirando a face prodigiosa,
 
Olha de um lado e doutro, e busca atento,
 
Quem seja original deste portento.
 
V
 
Enquanto tudo explora com cuidado,
 
Vai dar cos olhos na gentil donzela
 
Fica sem uso d'alma arrebatado,
 
Que toda quanta tem se ocupa em vê-la.
 
Ambos fora de si, desacordado
 
Ele mais, de observar coisa tão bela,
 
Ela,absorta no sono em que pegara,
 
Ele, encantado, a contemplar-lhe a cara.
 
VI
 
Quisera bem falar, mas não acerta,
 
Por mais que dentro em si fazia estudo.
 
Ela de um seu suspiro olhou, desperta;
 
Ele daquele olhar ficou mais mudo.
 
Levanta-se a donzela mal coberta,
 
Tomando a rama por modesto escudo;
 
Pôs-lhe os olhos então, porém tão fera,
 
Como nunca a Beleza ser pudera.
 
VII
 
Voa, não corre pelo denso mato,
 
A buscar na cabana o seu retiro;
 
E, indo ele a suspirar, vê que num ato,
 
Em meio ela fugiu do seu suspiro.
 
Nem torna o triste a si por longo trato,
 
Até que, dando à mágoa algum respiro,
 
Por saber donde habite, ou quem seja ela,
 
Seguiu, voando, os passos da donzela.
 
VIII
 
De Taparica um príncipe possante,
 
Que domina e dá nome à fértil ilha,
 
Veio em breve a saber o cego amante
 
Ter nascido a formosa maravilha.
 
Pediu-lhe Jararaca, vendo diante,
 
Ao lado de seus pais, a bela filha.
 
Convêm todos; mas ela não consente,
 
Porque a mais aguardava o Céu potente.
 
IX
 
Ardendo, parte o bravo Jararaca
 
De ânsia, de dor, de raiva, de despeito;
 
E quanto encontra, embravecido, ataca,
 
Com sombras lia razão, fúrias no peito;
 
E, vendo a chama, o pai, que não se aplaca,
 
Por dar-lhe esposo de maior conceito.
 
Por consorte Gupeva lhe destina,
 
Com quem no sangue e estado mais confina.
 
X
 
Logo que por cem bocas vaga a fama
 
Do esposo eleito a condição divulga,
 
Irado o Caeté, raivando brama;
 
Arma todo o sertão, guerra promulga,
 
Tudo acendendo em belicosa chama,
 
Investir por surpresa astuto julga,
 
Com que a causa da guerra se conclua,
 
Ficando Paraguassu ou morta, ou sua.
 
XI
 
Mas, sendo de improviso em terror posto,
 
E ouvindo do arcabuz a fama e eleito,
 
Não permite que o susto assome ao rosto,
 
Mas reprime o temor dentro em seu peito.
 
Convoca um campo das nações composto,
 
Com quem tinha aliança em guerra feito,
 
E, excitando na plebe a voraz sanha,
 
Cobre de legiões toda a campanha.
 
XII
 
Em seis brigadas vanguardas armados,
 
Trinta mil Caetés vinham raivosos, (1)
 
Com mil talhos horrendos deformados,
 
No nariz, face e boca monstruosos.
 
Cuidava a bruta gente que, espantados,
 
Todos de vê-los, fugirão medrosos,
 
Feios como demônios nos acenos,
 
Que certo se o não são, são pouco menos.
 
XIII
 
Da gente fera e do brutal comando
 
Capitão Jararaca eleito veio;
 
Porque na catadura e gesto infando,
 
Entre outros mil horrendos é o mais feio,
 
Que uma horrível figura pelejando,
 
É nos seus bravos militar asseio
 
E traz entre eles gala de valente,
 
Quem só a cara faz fugir a gente.
 
XIV
 
Dez mil a negra cor trazem no aspecto,
 
Trinta de escura noite a fronte impura;
 
Negreja-lhe na testa em cinto preto,
 
Negras as armas são, negra a figura.
 
São os feros Margates, em que Alecto
 
O Averno pinta sobre a sombra escura;
 
Por timbre nacional cada pessoa
 
Rapa no meio do cabelo a coroa
 
XV
 
Cupaíba que empunha a feral maça
 
Guia o bruto esquadrão da crua gente;
 
Cupaíba que os míseros que abraça,
 
Devora vivos na batalha ardente,
 
À roda do pescoço um fio enlaça,
 
Onde, de quantos come, enfia um dente;
 
Cordão, que em tantas voltas traz cingido,
 
Que é já, mais que cordão, longo vestido.
 
XVI
 
Urubu monstro horrendo e cabeludo,
 
Vinte mil Ovecates fero doma; (2)
 
Por toda a parte lhe encobria tudo
 
Como terrível figura a hirsuta coma.
 
Monstro disforme, horrendo, alto e membrudo,
 
Que a imagem do leão rugindo toma,
 
Tão feio, tão horrível por extremo,
 
Que é formoso a par dele um Polifemo.
 
XVII
 
Fogem todo o comércio da mais gente;
 
Ou se se vissem a tratar forçados,
 
Que lhe possam chegar nenhum consente,
 
Senão trinta, ou mais passos apartados.
 
Se alguns se chegam mais, por imprudentes,
 
Como leões, ou tigres esfaimados,
 
Mordendo investem os que incautos foram,
 
E a carne crua, crua lhes devoram.
 
XVIII
 
Sambambaia outra turma conduzia,
 
Que as aves no frechar tão certa vexa,
 
Que nem voando pela etérea via,
 
Lhe erravam tiro da volante frecha.
 
Era de pluma o manto que o cobria;
 
De pluma em cinto, que ao redor se fecha;
 
E até grudando as plumas pela cara,
 
Nova espécie de monstro excogitara.
 
XIX
 
Seguem-no dez mil Marques, gente dura,
 
Que, em cultivar mandioca exercitada,
 
Não menos útil é na agricultura,
 
Que valente, em batalhas com a espada.
 
Tomaram estes, como própria cura,
 
De víveres prover a gente armada
 
Quais torravam o aipi, quem mandiocas; (3)
 
Outros na cinza as cândidas pipocas.
 
XX
 
O bom Sergipe, aos mais confederado,
 
Consigo conduzia os Petiguares,
 
Que havendo pouco dantes triunfado,
 
Têm do dente inimigo amplos colares.
 
Segue seu nome em guerras decantado,
 
De gentes valorosas dez milhares,
 
Que do férreo madeiro usando o estoque,
 
Disparavam com balas o bodoque.
 
XXI
 
Nem tu faltaste ali, grão-Pecicava
 
Guiando o Carijó das áureas terras;
 
Tu, que as folhetas de ouro que te ornava,
 
Nas margens do teu rio desenterras;
 
Torrão, que do seu ouro se nomeava,
 
Por criar do mais fino ao pé das serras,
 
Mas que, feito enfim baixo e mal prezado,
 
O nome teve de ouro inficionado. (4)
 
XXII
 
Muitos destes é fama que traziam,
 
Deste alto cerro, que habitavam dantes,
 
Com pedras, que nos beiços embutiam,
 
Formosos e belíssimos diamantes.
 
Outros áureos topázios lhe ingeriam;
 
Alguns safiras e rubis flamantes;
 
Pedras, que eles desprezam, nós amamos:
 
Nem direi quais de nós nos enganamos.
 
XXIII
 
O feroz Sabará move animoso
 
Dos de Agirapiranga seis mil arcos,
 
Homens de peito em armas valoroso,
 
Que de sangue em batalhas nada parcos,
 
Deixaram seu terreno deleitoso,
 
Por matos densos, pantanosos charcos,
 
E, ouvindo dos canhões o horrendo estouro,
 
Passaram desde o mar às minas de ouro.
 
XXIV
 
Seguia-se nas forças tão robusto,
 
Quanto no aspecto feio, e em trajo horrendo,
 
Um que com fogo sobre o torpe busto
 
Dois tigres esculpira combatendo.
 
Este é o bravo Tapu, que enche de susto
 
Tudo, co’o grão-tacape acometendo,
 
E que, mil cutiladas dando espessas,
 
Derriba troncos, braços e cabeças.
 
XXV
 
Debaixo do seu mando, em dez fileiras,
 
Doze mil Itatis formados iam;
 
Surdos, porque, habitando as cachoeiras,
 
Com o grão-rumor da água ensurdeciam;
 
Pendem os seus marraques por bandeiras (6)
 
De longas bastes, que pelo ar batiam,
 
Suprindo nos incônditos rumores,
 
O ruído dos bélicos tambores.
 
XXVI
 
Em guerreiras colunas, feroz gente,
 
Que no horror da figura assombra tudo,
 
Trazem por armas uma massa ingente,
 
Tendo de duro lenho um forte escudo;
 
Frechas e arco no braço armipotente;
 
Nas mãos um dardo de pau santo agudo;
 
Sobre os ombros a rede, à cinta as cuias,
 
Tal era a imagem dos cruéis Tapuias.
 
XXVII
 
Quarenta mil de cor todos vermelha
 
Conduz ao campo o forte Sapucaia:
 
Dez mil, que têm furada a longa orelha,
 
São Amazonas de femínea laia.
 
É o amor conjugal que lhe aconselha
 
A descer dos sertões à vasta praia,
 
Por achar-se nos lances mais temidos,
 
Ao lado, sem temor, dos seus maridos.
 
XXVIII
 
Brava matrona de coragem cheia,
 
A quem o márcio jogo não perturba,
 
Na forma bela, mas, por arte, feia,
 
Vai comandando na femínea turba.
 
Deram-lhe o nome os seus da grã-baleia,
 
Nome que, ouvido, os bárbaros disturba,
 
De namorados uns que a têm por bela,
 
Mas outros com mais causa por temê-la.
 
XXIX
 
Ouve se rouco som, que o ouvido atroa,
 
Retumbando com eco a voz horrenda
 
De um grosseiro instrumento, que a arma soa,
 
Com que se inflama entre eles a contenda.
 
E, quando o horrível som mais desentoa,
 
Faz que no peito mais furor se acenda.
 
De retorcidos paus são as cornetas,
 
De ossos humanos frautas e trombetas.
 
XXX
 
Com batalhões e espaços separados,
 
Triplicando cordão se vê composto;
 
E em silêncio admirável ordenados,
 
Ao redor vão do outeiro em meio posto.
 
Costuma um orador falar-lhe a brados,
 
E, ardendo-lhe mil fúrias sobre o rosto,
 
O ar coa espada furibundo corta,
 
E a combater valente a turba exorta.
 
XXXI
 
Jararaca, no mundo então primeiro,
 
Ao sacro e civil rito presidia,
 
E no mais alto do sublime outeiro
 
Entre um senado ancião se distinguia.
 
Aos outros na estatura sobranceiro
 
As costas de um tapuia, que o trazia,
 
De um lado a outro majestoso corre,
 
E com geral silêncio assim discorre:
 
XXXII
 
"- Paiaiás generosos, hoje é o dia
 
Que aos vindouros devemos mais honrado,
 
Em que mostreis que a vossa valentia
 
Não receia o trovão, subjuga o fado.
 
Sabeis que a Gupeva a concórdia
 
Por Filho do trovão tem aclamado
 
Um imboaba, que do mar viera, (7)
 
Por um pouco de fogo que acendera.
 
XXXIII
 
Prostrado o vil aos pés desse estrangeiro,
 
Rende as armas com fuga vergonhosa,
 
E corre voz que o adora lisonjeiro,
 
E até lhe cede com o cetro a esposa.
 
E que pode nascer do erro grosseiro,
 
Senão que em companhia numerosa
 
As nossas gentes o estrangeiro aterre,
 
E que a uns nos devore, outros desterre?
 
XXXIV
 
Se o sacro ardor, que ferve no meu peito,
 
Não me deixa enganar, vereis que um dia
 
(Vivendo esse impostor) por seu respeito
 
Se encherá de Imboabas a Bahia.
 
Pagarão os Tupis o insano feito;
 
E vereis entre a bélica porfia,
 
Tomar-lhe esses estranhos, já vizinhos,
 
Escravas as mulheres cos filhinhos.
 
XXXV
 
Vereis as nossas gentes desterradas,
 
Entre os tigres viver no sertão fundo,
 
Cativa a plebe, as tabas arrombadas;
 
Levando, para além do mar profundo,
 
Nossos filhos e filhas desgraçadas,
 
Ou, quando as deixam cá, no nosso mundo,
 
Poderemos sofrer, Paiaiás bravos,
 
Ver filhos, mães e pais feitos escravos?
 
XXXVI
 
Mas teme o seu trovão: e tanto oprime
 
O medo aquele vil, que não pondera
 
Que por esse trovão, que não reprime,
 
Há de ver cheia de trovões a esfera?
 
Que grande mal será, se o raio imprime?
 
Se o mundo por um raio se perdera,
 
Susto pudera ter, cobrar espanto;
 
Porém more de medo, que é outro tanto.
 
XXXVII
 
Eu só, eu próprio, no geral desmaio,
 
Ao relâmpago irei sem mais socorro;
 
E, quando ele dispare o falso raio,
 
Ou descubro a impostura, ou forte morro.
 
Será de nigromancia um torpe ensaio,
 
Com que astuto pretende, ao que discorro,
 
Fazer que a nossa tropa desfaleça,
 
Antes que a causa do terror conheça.
 
XXXVIII
 
Que se for (que o não creio) o estrondo infando
 
Do sublime Tupá triste ameaça,
 
Fará como costuma, trovejando,
 
Que, matando um ou outro, a mais não passa.
 
Se eu vir que o raio horrível vai vibrando,
 
A um homem como eu, nada embaraça:
 
Se for mortal quem causa tanto abalo,
 
Por meio ao próprio raio irei matá-lo.
 
XXXIX
 
Su, valentes! Su, bravos companheiros!
 
Tomai coragem! que será no extremo?
 
Embora seja um raio verdadeiro,
 
Senão é Deus que o lança, eu nada temo.
 
Seja quem quer que for o autor primeiro,
 
Como não seja o Criador Supremo,
 
Não há forças criadas que nos domem:
 
Que sobre tudo o mais domina o homem."
 
XL
 
Disse o grão-chefe assim, e entre os furores,
 
Com a mão, que já tinha levantada,
 
Bate na espádua aos príncipes maiores,
 
E dá-lhes, Orsu dizendo, uma palmada; (8)
 
Uns nos outros as deram não menores,
 
Que assim se incita a multidão armada:
 
Vinguemo-nos, (gritando) companheiros,
 
Bem que foram seus raios verdadeiros.
 
XLI
 
Jararaca depois (que é sacro rito)
 
Lança furioso as mãos a quanto abrange,
 
E abrindo a enorme boca em fero grito,
 
E escuma e freme e ruge e os dentes range;
 
Como do mal hercúleo o enfermo aflito
 
A convulsão a retrocer constrange.
 
Depois, falando aos príncipes, bafeja,
 
E o espírito de força lhes deseja.
 
XLII
 
Cerimônia esta foi do pátio uso,
 
Vestígio nacional da antiga idade,
 
Que acaso corrompeu mágico abuso,
 
Tendo talvez princípio na piedade.
 
Retumba do marraque o som confuso,
 
E, pondo em alto o seu, com gravidade,
 
A insígnia, no chão tudo se inclina,
 
Como a sinal de coisa mais divina. (9)
 
XLIII
 
Corresponde o belígero instrumento
 
Da feral frauta ao bárbaro marraque;
 
E, promulgando a marcha aquele acento,
 
Tudo em ordem se pôs ao fero ataque.
 
Marcham contra Gupeva, com intento
 
De meter nas cabanas tudo a saque;
 
E porque tudo assombrem com terrores,
 
Rompem o ar com bélicos clamores.
 
XLIV
 
Entanto no arraial do bom Gupeva
 
Sendo a invasão noturna rechaçada
 
Convocam recrutas, fazem leva
 
De tropa nacional e da aliada,
 
Enquanto Diogo, a quem a ação releva,
 
Toma na gruta a pólvora guardada,
 
E em vários fogos, que arrojou volantes
 
Imita o raio em bombas fulminantes.
 
XLV
 
Era a Bahia então, donde imperava
 
O bom Gupeva, povoada em roda
 
Pelos Tupinambás, de quem contava
 
Trinta mil arcos brava gente toda;
 
Taparica seis mil valente armava;
 
E, por cumprir-se a prometida boda,
 
Mil Amazonas mais à guerra manda:
 
Paraguassu gentil todas comanda.
 
XLVI
 
Paraguassu, que de Diogo esposa
 
(Por que mais Jararaca se confunda)
 
Ia a seu lado a combater briosa,
 
Nem teme a multidão que o campo inunda:
 
Usa com ela a tropa belicosa
 
Da vulgar seta, do bodoque e funda
 
Leva a Amazona um rígido colete,
 
E coa espada de ferro o capacete.
 
XLVII
 
Com estas forças só (que mais recusa)
 
Sai Diogo à campanha guarnecido;
 
Nem sofre a forma do marchar confusa
 
Mas tudo tem com ordem repartido.
 
Outro corpo maior de que não usa
 
Deixa em guarda das tabas prevenido;
 
Tupinaquis, Viatanos, Poquiguaras, (10)
 
Tuminvis, Tanviás, Canucajaras.
 
XLVIII
 
Não mais de duas léguas adiantando,
 
O arraial se alojava de Diogo,
 
Quando o ardente Planeta vai queimando
 
A tórrida região com vivo fogo;
 
E, enquanto espira no ar zéfiro brando,
 
Buscando numa sombra desafogo,
 
Medita a grande ação, mede o perigo,
 
Nem despreza por bárbaro o inimigo.
 
XLIX
 
Vê bem que espanto causa a invenção nova,
 
Mais que o tempo consome a novidade.
 
Tem sim um peito de aço feito à prova,
 
Mas, vendo do inimigo a imensidade,
 
Por mais que balas o mosquete chova,
 
Reconhece em vencer dificuldade,
 
Tendo notado já na bruta gente
 
Que era tão contumaz, como valente.
 
L
 
Pensava assim com reflexão madura,
 
Quando à roda do outeiro divisava
 
Densa nuvem de pó, que em sombra escura
 
A multidão confusa levantava:
 
Não o cessa um ponto mais: tudo assegura,
 
E, sem temer a turba que observava,
 
Marcha a ganhar o alto, e, posto à fronte,
 
Deu à tropa em cordão por centro o monte.
 
LI
 
Já se avistava o bárbaro tumulto
 
Das inimigas tropas em redondo;
 
E,: antes; que empreendam o primeiro insulto,
 
Levanta- se o infernal medonho estrondo.
 
Os marraques, uapis e o brado inculto, (11)
 
Todos um só rumor, juntos compondo
 
Fazem tamanha bulha na esplanada,
 
Como faz da tormenta uma trovoada.
 
LII
 
Tu, rápido Pajé, foste o primeiro
 
De quem o negro sangue o campo inunda
 
Que, com seres no salto o mais ligeiro,
 
Mais ligeira te colhe a cruel funda.
 
Paraguassu lha atira desde o outeiro;
 
Chovem as pedras, de que o monte abunda
 
E do lado, e do cimo do cabeço,
 
Tudo abatem com tiros de arremesso.
 
LIII
 
Não ficou no combate entanto ociosa
 
A frecha do inimigo, que o ar encobre;
 
Começa Jararaca a ação furiosa,
 
Dando estímulo ousado ao valor nobre.
 
E a turba, de Diogo receiosa,
 
Foge do grão-tacape, onde o descobre
 
Que tanto estrago faz, que qualquer fera
 
Maior entre cordeiros não fizera.
 
LIV
 
Mas, quando tudo com terror fugia
 
O bravo Jacaré se lhe põe diante
 
Jacaré, que, se os tigres combatia,
 
Tigre não ha que lhe estivesse avante.
 
Treme de Jararaca a companhia
 
Vendo a forma do bárbaro arrogante
 
Que, com pele coberto de pantera,
 
Ruge com mais furor que a própria fera.
 
LV
 
Avista-se um co outro: a massa ardente
 
Deixam cair com bárbaro alarido;
 
Corresponde o clamor da bruta gente,
 
E treme a terra em roda do mugido.
 
Aparou Jacaré no escudo ingente
 
Um duro golpe, que o deixou partido;
 
E, enquanto Jararaca se desvia,
 
Quebra a massa no chão, com que o batia.
 
LVI
 
Nem mais espera o Caeté furioso,
 
E, qual onça no ar, quando destaca,
 
Arroja se ao contrário impetuoso,
 
E um sobre outro coas mãos peleja ataca:
 
Não pode discernir-se o mais forçoso;
 
E, sem mover-se em torno a gente fraca,
 
Olham lutando os dois no fero abraço,
 
Pé com pé, mão com mão, braço com braço.
 
LVII
 
Porém, enquanto a luta persistia,
 
No sangue em terra lúbrico escorrega
 
O infeliz Jacaré; mas na porfia
 
Nem assim do adversário se despega.
 
Sobre o chão um com outro às voltas ia,
 
E qual o doente, qual o punho emprega,
 
Até que Jararaca um golpe atira,
 
Com que rota a cabeça o triste expira.
 
LVIII
 
Nem mais espera de Gupeva a gente;
 
Porque, voltando em rápida fugida,
 
Deixam nas mãos do bárbaro potente
 
Toda a batalha numa ação vencida.
 
Não tarda mais Diogo já presente;
 
E, tendo ao lado a esposa protegida,
 
Do outeiro desce, donde tudo observa,
 
E invade armado a bárbara caterva.
 
LIX
 
Quem poderá dizer da turba imbele
 
Quantos a forte mão talha em pedaços?
 
Paraguassu valente ao lado dele,
 
Muitos mandava aos lúgubres espaços,
 
Semeando por donde o golpe impele
 
Troncos, bustos, cabeças, pernas, braços;
 
Nem um momento a fraca gente aguarda,
 
Vendo a brandir a lúcida alabarda.
 
LX
 
O membrudo pai com três potentes
 
Robustos filhos degolou coa espada,
 
E a dois nobres Caetés dos mais valentes,
 
Tendo a mão para o golpe levantada ,
 
Com dois reveses, que lhe atira ardentes,
 
Deixou pendentes no ar coa mão cortada
 
Bambu de um talho. que a assaltá-la veio,
 
Coa cabeça ficou partida ao meio.
 
LXI
 
Muitos sem nome despojou da vida.
 
E a quanto encontra o ferro não perdoa:
 
Qual se os cachorros perde embravecida,
 
No caçador se arroja a fera leoa
 
E entre mil dardos, de que a tem cingida,
 
Dando-lhe asas a dor, saltando voa,
 
E ruge e morde, e no que encontra embarra,
 
E onde não pode dente, imprime a garra.
 
LXII
 
Tal a forte donzela move a espada,
 
Ou talvez lança mão do dardo agudo,
 
E de mil e mil golpes fulminada,
 
Rebate todos no colete e escudo.
 
As amazonas, de que vem rodeada
 
Vendo sobre a heroína correr tudo,
 
Onde quer que os contrários se apresentam,
 
Acometem, degolam, e afugentam.
 
LXIII
 
Por outro lado, o valoroso Diogo
 
A multidão dos bárbaros subjuga,
 
E uns precipita no tartáreo fogo,
 
Outros obriga com terror à fuga.
 
Mas uns detém coa espada, outros com rogo
 
Urubu, que do sangue a fronte enxuga,
 
E, opondo-se entre os mais a Diogo ardente,
 
Restitui a batalha e anima a gente.
 
LXIV
 
Urubu, que na brenha exercitado
 
Um tigre, que na caça à mãe roubara,
 
Tendo-o junto de si domesticado,
 
A combater consigo acostumara,
 
Lança-o a Diogo: o monstro, arrebatado
 
Entre as presas cruéis, que arreganhara,
 
Ia, apesar dos férreos embaraços,
 
Com garra e dente a pô-lo em mil pedaços.
 
LXV
 
Mas o herói, bem que de outros investido,
 
Enquanto a fera no ar saltando tarda,
 
Tendo-se ao fero assalto prevenido,
 
Dispara-lhe na fronte uma espingarda;
 
E, qual raio da nuvem despedido,
 
Quando a fera que o ímpeto retarda,
 
Tremula ao golpe a vacilar começa,
 
Salta-lhe em cima e corta-lhe a cabeça.
 
LXVI
 
Ao estrépito, ao fogo, ao golpe horrendo,
 
À fumaça do tiro ocasionada,
 
Ao ver o busto sobre o chão tremendo,
 
E a terrível cabeça sobre a espada,
 
A imensa multidão, que o estava vendo,
 
Cai por terra sem ânimo assombrada,
 
E alguns, que em pé, tremendo, se suspendem,
 
Ao grão-Caramuru todos se rendem.
 
LXVII
 
Jararaca entretanto, que seguira
 
Os que fugiram no primeiro insulto,
 
Por encontrar Gupeva tudo gira,
 
Que nas cabanas se emboscara oculto.
 
Ia-o buscando o bárbaro, que ouvira
 
Daquela parte o bélico tumulto,
 
Com tenção de expugnar a taba ingente,
 
Matar Gupeva, cativar-lhe a gente.
 
LXVIII
 
Na toca algum das árvores imensas,
 
Algum em meio as ramas se escondia;
 
Muitos se emboscam pelas selvas densas,
 
Outro em covas profundas que sabia;
 
Porque, andando em contínuas desavenças,
 
Qualquer ao noto asilo recorria,
 
Onde entrando o inimigo, sem prevê-lo,
 
Saem de toda a parte a acometê-lo.
 
LXIX
 
Enquanto a selva passeava escura
 
De imortais arvoredos rodeada,
 
Foi Jararaca, que a cuidou segura,
 
Ferido sobre o pé de uma frechada;
 
Ficou-lhe a planta sobre a terra dura
 
Em tal maneira com o chão cravada,
 
Que por mais que arrancá-la, dali prove,
 
Despedaça-se o pé, mas não se move.
 
LXX
 
Corre a turba a salvá-lo, e incontinente,
 
Voam mil setas desde a espessa rama,
 
E cada árvore ali do bosque ingente
 
Um chuveiro de tiros lhe derrama:
 
Cada tronco é um castelo: ao lado e frente
 
A oculta multidão bramindo clama;
 
E o resto, que em cavernas se escondia,
 
Ao rumor da vitória concorria.
 
LXXI
 
Já mal resiste o Caeté cercado,
 
E o bom Gupeva, que ao rumor concorre,
 
Um corpo de reserva trouxe armado,
 
Que à inclinada batalha invicto corre.
 
Jararaca, que o pé tinha encravado,
 
Vendo que outro remédio o não socorre,
 
Por ter a vida e liberdade franca,
 
Deixa parte do pé e a seta arranca.
 
LXXII
 
Nos braços vai dos seus mal defendido;
 
Mas com a massa, que meneia horrenda,
 
Reprime forte o bárbaro atrevido,
 
Porque não haja quem se acoste e o prenda;
 
E, tendo a sorte o caso decidido,
 
Cede raivoso da cruel contenda,
 
E ao sertão retirado não descansa,
 
Maquinando em furor nova vingança.
 
LXXIII
 
Paraguassu, porém, de glória avara,
 
Seguia na vitória o gênio ativo;
 
E, incauta, de Diogo se apartara,
 
Cortando a retirada ao fugitivo.
 
Anima a multidão, que se emboscara,
 
Pessicava potente, por motivo,
 
Se prevalece a força do contrário,
 
De acudir ao socorro necessário
 
LXXIV
 
Este, vendo a donzela valorosa
 
Turbar com fúria a gente amedrontada,
 
Desde o alto lança de árvore frondosa
 
Grosso ramo que cai de uma pancada.
 
Debaixo dele a heroína valorosa,
 
Co grande peso pelo chão prostrada,
 
Ficou, falta de alento e semi-viva
 
Nas mãos do cruel bárbaro cativa.
 
LXXV
 
Corre a turba feroz contra a donzela,
 
Que, depois que das armas deixa o peso,
 
Descobre a todos a presença bela,
 
E fica quem a prende ainda mais preso.
 
Da rude multidão, que corre a vê-la,
 
Há quem de a ver tão linda fica aceso,
 
Outro que de a ter visto em guerra armada
 
Ainda a teme com vê-la desmaiada.
 
LXXVI
 
Logo que respirou, novo ar tomando,
 
Sente no coração mais desafogo,
 
E alento pouco a pouco vai cobrando,
 
Até que, entrando em si, chama o seu Diogo;
 
Mas, na turba que a cerca reparando,
 
Conhece-se cativa, e desde logo
 
Noutro fero desmaio fica absorta,
 
E cuida quem a vê que ficou morta.
 
LXXVII
 
Selvagem há que cuida de comê-la,
 
Nem muito se está morta se assegura;
 
E com fúria voraz contra a donzela
 
A gula acende com a chama impura.
 
Nem presar-se costuma a forma bela
 
No fero coração da gente dura;
 
E, em morrendo qualquer mulher, ou homem,
 
Choram muito e depois assam-no e comem.
 
LXXVIII
 
Paté com este intento a degolara,
 
Se a bela Mangarita, que isto via
 
Desde o mato escondida, o não frechara,
 
Deixando-lhe suspensa a mão que erguia.
 
Um troço de Amazonas volta a cara,
 
E a peleja de novo se acendia,
 
Sendo Paraguassu, que jaz no meio,
 
O preço da vitória neste enleio.
 
LXXIX
 
Cotia, que marchara sempre ao lado
 
Da desmaiada heroína em paz ou guerra,
 
Por vingar, ou remir o corpo amado,
 
Co fulmíneo tacape o campo aterra:
 
Piâ, Cipô, Açû, deixou prostrado,
 
E faz que a grã-baleia morda a terra,
 
Baleia, que acomete vingativa,
 
Por guardar a donzela semi-viva.
 
LXXX
 
Nem tu, Guarapiranga, à mão formosa
 
Pudeste evadir na horrível luta,
 
Que, enquanto a inúbia soas horrorosa, (12)
 
Com que às armas se acende a gente bruta,
 
Cotia com a espada valorosa
 
A música feral que se te escuta,
 
Nos antros retumbar te faz no averno
 
Melodia que é digna só do inferno.
 
LXXXI
 
Tudo cede à amazona, e já salvava
 
Paraguassu mortal da gente fera,
 
Quando o grão-Pessicava, que observava
 
O estrago, que a amazona ali fizera,
 
Acomete o esquadrão com fúria brava,
 
E tudo afugentando o tempo espera,
 
Em que a impulso do braço alcance forte
 
Degolar a Cotia de um só corte.
 
LXXXII
 
Espera ela sem medo, apenas vira
 
Do bárbaro feroz o golpe incerto,
 
E veloz a uma toca se retira,
 
Que tinha em duro tronco o tempo aberto;
 
Porém repete ali com maior ira
 
Pessicava outro golpe, e por certo
 
Na valorosa Paca imprime o tiro,
 
Que tomou com Cotia este retiro.
 
LXXXIII
 
Enquanto entrava o bárbaro, e na luta
 
Um e outro se abraça, o forte Diogo,
 
Que o caso da sua bela infausto escuta,
 
Toma a espingarda e parte em fúria logo,
 
Qual pólvora encerrada dentro à gruta,
 
Quando na oculta mina se deu fogo,
 
Arroja penha e monte, e o que tem diante,
 
Tal se envia em furor o aflito amante.
 
LXXXIV
 
Tinha afogado Pessicava entanto
 
A amazona infeliz, e a mão lançava
 
Já de Paraguassu, que no quebranto,
 
Apenas levemente respirava.
 
E eis que, inventando Diogo um novo espanto,
 
Traz um tambor, que horríssono soava;
 
E, logo que o arcabuz com bala atira,
 
Cai Pessicava e morde o chão com ira.
 
LXXXV
 
Mas não espera a tímida manada,
 
Ouvindo o estrondo e os hórridos efeitos:
 
Quem parte logo em fúria declarada;
 
E quem lhe rende humilde os seus respeitos,
 
Paraguassu, porém, desassombrada,
 
Sendo os contrários com terror desfeitos
 
Acordou num suspiro, e solta viu-se;
 
E, conhecendo Diogo, olhou-o e riu-se.
 
(1) Caeté. — Gentio ferocíssimo, que infestava o sertão da Bahia.
 
(2) Ovecates. — Nação feríssima.
 
(3) Aipi. — Raiz de que se faz uma espécie de farinha. Mandioca, outra semelhante. Pipocas chamam o milho, que, lançado na cinza quente, rebenta como em brancas flores.
 
(4) Inficionado. — Povo importante das Minas do Mato dentro chamado assim, porque o ouro, que tinha mui subido, perdeu os quilates mais altos, e ficou chamando-se ouro inficionado. Assim o soube o poeta dos antigos daquela paróquia, de que ele é natural.
 
(5) Tacape. — Espada de pau ferro, ou semelhante, de que usam os bárbaros.
 
(6) Morraque. — É uma haste, de que pende um cabaço, ou coco, cheio de pedras miúdas, que, sacudindo-o, fazem rumor. É insígnia sacerdotal e militar entre estes bárbaros.
 
(7) Imboaba. —Nome que dão aqueles bárbaros aos nossos Europeus.
 
(8) Palmada. — Rito militar, com que se exortam à guerra.
 
(9) Divina. — Usam nas suas solenidades os bárbaros de um marraque, ou haste (já em outra parte descrita) que pelas circunstâncias parece insígnia religiosa.
 
(10) Tupinaquis, etc. — Nomes das nações do sertão.
 
(11 ) Uapis. — Instrumento que tocam nas batalhas.
 
(12) Inúbia.— Espécie de corneta usada dos brasilienses.
 
 
CANTO V
 
I
 
Débil entanto a luz sobre o horizonte
 
Os seus trêmulos raios apagava,
 
E desde o ocidental imenso monte
 
A noite pelas terras se espalhava.
 
Morfeu, deixando os antros de Aqueronte,
 
No seio dos mortais se derramava.
 
Mas da bárbara gente que fugia,
 
Só se entregava ao sono a que morria.
 
II
 
Fatigado Diogo ao lado estava
 
E a bela esposa numa grã-floresta;
 
Nem ao preciso sono lugar dava
 
Na atenção de a guardar da gente infesta.
 
Um de outro os sucessos escutava,
 
Nutrindo em novo fogo a chama honesta;
 
Que, depois de um triunfo do inimigo,
 
Faz-se doce a memória do perigo.
 
III
 
Ao resplendor da lua que saía,
 
Misturava-se o horror com a piedade,
 
Porque em lagos de sangue só se via
 
Sanguinolenta, horrível mortandade.
 
O vale igual ao monte parecia,
 
E, do estrago na vasta imensidade,
 
O outeiro estava, donde foi o assalto,
 
Com montes de cadáveres mais alto.
 
IV
 
Não pôde vê-lo a bela americana,
 
Sem que a tocasse um triste sentimento;
 
E, ou fosse condição da gente humana,
 
Ou do seu sexo um próprio movimento,
 
Chorou piedosa a sorte desumana
 
Dos que, apartados do terreno assento,
 
Jaziam, como ouvira de Diogo,
 
Nas labaredas de um eterno fogo.
 
V
 
"E como (compassiva disse) é crível
 
Que o Deus, como me pintas, bom e amável
 
Sabendo o que há de ser e o que é possível,
 
Nos crie para fim tão miserável?
 
Antevendo um sucesso tão terrível,
 
Não parece crueldade inexcusável
 
Dar-lhe o ser, dar-lhe a vida, dar-lhe a mente,
 
Para vê-los arder eternamente?
 
VI
 
Quantos criar pudera que o servissem,
 
Deixando de criar quem o agravasse,
 
Onde todos a vê-lo ao céu subissem,
 
E as obras que produz todas salvasse?
 
Nossos pais, se dos filhos tal previssem,
 
Quanto fora cruel quem os gerasse!
 
E creremos da excelsa grã-bondade
 
Que ceda a nossos pais na humanidade?"
 
VII
 
"Segredos são (diz Diogo) da inscrutável
 
Majestade de Deus: que saberemos
 
Do seu modo de obrar sempre inefável,
 
Se o que somos e obramos não sabemos?
 
Faltando-nos razão clara e provável
 
Nos conselhos de Deus, que ocultos vemos,
 
E bem que toda a dúvida se acabe,
 
Porque ele pode mais, do que o homem sabe.
 
VIII
 
"Mas, se há lugar à humana conjetura
 
Dos possíveis na longa imensidade,
 
Não se podia achar uma criatura,
 
Que goze de impecável liberdade.
 
Uma firme inocência é graça pura,
 
É mercê liberal da Divindade,
 
E quem entanto a perguntar se atreve,
 
Por que lha não quis dar quem lha não deve?
 
IX
 
Desde a origem da imensa eternidade,
 
Que tudo sem princípio ordena e rege,
 
Devemos presumir da Divindade
 
Que onde o ótimo encontra em tudo o elege.
 
E, sendo em nós tão grande a iniqüidade,
 
Não temos coisa que a qualquer se inveje,
 
Onde se os mais possíveis vendo fores,
 
Nós fomos os eleitos por melhores."
 
X
 
Embora seja assim (disse a donzela);
 
Mas que culpa têm estes, que o ignoravam?
 
Não cuida acaso Deus, ou pouco zela
 
As almas, que entre nós se condenavam?
 
E senão, por que causa aos mais revela
 
As doutrinas que aos nossos se ocultavam?
 
Distava mais do céu a nossa gente,
 
Por que medeia o mar d'Este a Poente?"
 
XI
 
Tornai a culpa a vós, e a vós somente
 
(O herói responde assim). Se com estudo
 
Procurais sobre a terra o bem presente,
 
Por que não procurais o autor de tudo?
 
Para o mais tendes lume, instinto e mente;
 
Somente contra Deus buscais o escudo
 
Em a vossa ignorância à brutal culpa!
 
Essa ignorância é crime e não desculpa."
 
XII
 
Porém já da fadiga desvelada
 
Cerrava Paraguassu seus olhos claros,
 
Tendo-a Diogo na fé mais confirmada,
 
Com responder prudente aos seus reparos,
 
Enquanto a bruta gente aprisionada,
 
Mostrando-se da vida nada avaros,
 
Dançam e bebem com tripúdio forte,
 
E esperam, com a boda, a cruel morte.
 
XIII
 
Gupeva triunfante na grã-taba
 
O infausto prisioneiro à morte guia,
 
E, antevendo que a vida se lhe acaba,
 
A mulher cada um lhe oferecia:
 
Trazem-lhe o peixe, as carnes, a mangaba,
 
Brindando-lhe o licor, que a taça enchia,
 
Até que quando menos se recorda,
 
Dois selvagens o prendem numa corda.
 
XIV
 
Soltas as mãos lhe ficam, que maneia,
 
Nem o tem mais que em meio da cintura
 
A soga de algodão, como cadeia,
 
Que de uma parte e de outra os assegura.
 
Qual leoa feroz na maura areia,
 
Quando o laço no ventre a tem segura,
 
Toda da fronte a cauda se retorce,
 
E ruge e vibra a garra, e o corpo torce.
 
XV
 
Muitos então da furibunda gente
 
Dizem-lhe injúrias mil, com mil insultos
 
Que ele se esforça a rebater valente,
 
Sem que receie os bárbaros tumultos;
 
Algum ali chegando ao paciente
 
(Que tem por coisa vil morrer inultos)
 
Dá-lhe um cesto de pedras recalcado,
 
Com que, atirando aos mais, morra vingado.
 
XVI
 
Embiara e Mexira, dois possantes
 
Mancebos caetés de um parto vindos,
 
Que Ainubá dera à luz tão semelhantes,
 
Como tenros na idade, e em gesto lindos,
 
Muitas donzelas, que os amaram dantes,
 
Os belos dias seus choravam findos.
 
Mitigando o desgosto de perdê-los
 
Com a intenção que tinham de comê-los.
 
XVII
 
Estes na corda têm os da Bahia,
 
Dispostos a morrer no torpe abuso
 
De celebrar com sangue o fausto dia
 
Das vítimas triunfais ao pátrio uso.
 
Embiara, que com arte a pedra envia,
 
Muitas no povo disparou confuso,
 
E, apesar dos escudos, que põe diante,
 
Alguns feriu da turba circunstante.
 
XVIII
 
Uma grã-pedra ao ar nas mãos levanta,
 
E, erguendo os braços sobre a fronte atira;
 
Lança por terra alguns, outros quebranta,
 
E esmaga com o peso o grão-Tapira.
 
Outras três arrojou com fúria tanta,
 
Que, se de atorno a gente não fugira,
 
Com os tiros, que o bravo lhe dispara,
 
Em vingança cruel no chão ficara.
 
XIX
 
Mexira noutro lado era detido
 
Com o duro cordão; porém, sem medo,
 
Ao bárbaro Piri, que o tem cingido,
 
Esmigalha a cabeça cum penedo.
 
Foge o povo com pedras rebatido;
 
Mas Mexira, na corda atado e quedo,
 
Com três pedaços de uma ingente roca
 
Uns derriba no chão e outros provoca.
 
XX
 
Sai então Tojucane em campo ardente,
 
E ao som dos seus marraques aplaudido,
 
Um cinto tem de plumas sobre a frente,
 
Manto ao ombro de pluma entretecido;
 
Tinto de negro todo, a cor somente
 
Traz natural no vulto enfurecido;
 
E, por meter no horror maior respeito,
 
Com o beiço inferior varria o peito.
 
XXI
 
A cara, peito, braços (vista horrenda!)
 
Traz com golpes cruéis acutilados,
 
Golpes com que o valor se recomenda,
 
Feitos da própria mão com talhos dados,
 
Onde, se a chaga apodreceu tremenda,
 
Em meio do asco e horror desfigurados,
 
Vendo a gente brutal que um não se dói,
 
Este então (que ignorância!) é o seu herói.
 
XXII
 
Desta arte Tojucane armado vinha,
 
Posto ao vê-lo em silêncio, em pasmo tudo;
 
Atira-lhe Embiara (que ainda o tinha)
 
Um penedo, que rompe o forte escudo:
 
O tacape ele então desembainha,
 
Que de plumas ornou com belo estudo,
 
E, encostando-se ousado à longa corda,
 
Aos dois fortes irmãos falando aborda.
 
XXIII
 
"Não sois vós (disse o bárbaro), traidores,
 
Os que a matar-nos com furor viestes,
 
E sem respeito aos míseros clamores
 
Os nossos tenros filhos já comestes?"
 
"Somos (disseram) nós; os teus furores
 
Sem o laço, em que agora nos prendestes,
 
Soubéramos domar. E assim cativo,
 
A ver-me solto, te comera vivo."
 
XXIV
 
"Vivo, nem morto a mim me não tocaras
 
Porque, se braço a braço te mediras,
 
Ou imóvel de espanto em pé ficaras,
 
Ou de um só golpe (diz) no chão caíras."
 
"Verias bem, se agora nos soltaras,
 
Como logo (responde) me fugiras,
 
Não queira de valente ser louvado,
 
Quem pretende triunfar de um desarmado."
 
XXV
 
"Esse vão pensamento melhor fora
 
Que o tiveras, como eu, no campo, bravo;
 
Mas tu (diz Tojucane) na mesma hora
 
Te viste combatido e foste escravo.
 
Como te atreves a gloriar-te agora
 
Com vil jactância, com soberbo gavo?
 
A quem de resistir falta a constância
 
Vão fica mais lugar para a jactância."
 
XXVI
 
Dizendo assim, na fronte a espada ingente
 
Deixa o fero cair com golpe horrendo,
 
Cai por terra Embiara ainda vivente;
 
Mexira morto já, porém tremendo.
 
Mordeu aquele o chão com fúria ardente,
 
E em cima o matador co pé batendo:
 
"Morre, soberbo, diz, e serás vasto
 
Para nosso troféu vingança e pasto."
 
XXVII
 
Qual se diz que a Tifeu subjuga um monte,
 
Tal a planta cruel Embiara oprime;
 
E como a cobra faz-se junto à fonte,
 
Toda em nós quebrantada se comprime,
 
Retorcendo em mil voltas cauda e fronte,
 
Que ergue, vibrando a língua, no ar sublime,
 
Tal o infeliz morrendo em voltas anda,
 
E o espírito exalado às sombras manda.
 
XXVIII
 
Chega às cruentas vítimas chorosa
 
Femínea tropa, que com dor lamenta;
 
E, urlando todas com a voz maviosa,
 
Tudo vai repetindo a plebe atenta.
 
Depois daquela lástima enganosa,
 
Qualquer junto aos cadáveres se assenta,
 
E vão talhando pés, cabeças, braços,
 
E as vítimas fazendo em mil pedaços.
 
XXIX
 
Chamam moquém as carnes, que se cobrem,
 
E a fogo lento sepultadas assam;
 
Tudo em cima com terra e rama encobrem,
 
Onde o fogo depois com lenha façam.
 
Entanto as voltam, cobrem e descobrem,
 
Até que do calor se lhe repassam;
 
Detestável empresa, que escondiam
 
Da indignação de Diogo, a quem temiam.
 
XXX
 
Foi avisado o herói do ato execrando
 
Horrível pasto de nação perversa.
 
E a maneira oportuna meditando
 
Da bárbara função deixar dispersa.
 
Mil fogos de artifício ia espalhando,
 
De horrível forma, e de invenção diversa.
 
Treme a vil turba, e sem que a mais se arroje,
 
Deixa o pasto cruel e ao mato foge.
 
XXXI
 
Confusa a infame gente do sucesso,
 
Do grão Caramuru temia a vista.
 
Foge Gupeva, de terror opresso,
 
Nem sabe, em que maneira ao mal resista;
 
Mas o novo pavor na gente impresso
 
Mitiga Paraguassu, que o dano avista,
 
Se, como teme, o povo de espantado,
 
O terreno deixasse abandonado.
 
XXXII
 
Jararaca entretanto conduzido
 
Dos bravos Caetés à taba nota,
 
Diligente curava o pé ferido,
 
E em reparar cuidava a grã-derrota.
 
E, havendo no conselho a liga unido,
 
As forças representa, os meios nota,
 
E nigromante crê por perda tanta
 
O grão-Caramuru, que o fogo encanta.
 
XXXIII
 
Já na grã-taba os bárbaros se ajuntam,
 
Onde contra Diogo arte se estude,
 
E por magos famosos, que perguntam,
 
Recorriam de encantos à virtude:
 
Os nigromantes vêem que os corpos untam,
 
E nos sussurros do seu canto rude
 
Esperam que também ao forte Diogo,
 
Matando privem do temido fogo.
 
XXXIV
 
Um deles, que por sábio se acredita,
 
Não há (disse) quem possa a ardente frágoa
 
Apagar no trovão, que o raio excita,
 
Lastimosa ocasião da nossa mágoa:
 
Que se antídoto ao fogo se medita
 
Mais natural não há que lançar-lhe água:
 
Dentro n'água se apaga o fogo ardente:
 
E este é o meio, que ocorre de presente.
 
XXXV
 
Contra as vossas canoas não se atreve
 
O filho do trovão, se desce ao porto;
 
Vos o vereis sem força em tempo breve
 
Sair qual já saiu das águas morto:
 
Ninguém há que não saiba como esteve,
 
Quando o encontramos naufrago no porto:
 
Nem usou do trovão, que espanta em terra,
 
Nem fez com fogo n'água a horrível guerra.
 
XXXVI
 
São n’água, terra, e mar mui diferentes
 
Os anhangás, que reinam divididos;
 
Uns, que só no ar e fogo são potentes,
 
Causam ventos, trovões, raios temidos;
 
O terremoto e pestes sobre as gentes
 
Movem outros na terra conhecidos:
 
Este porém, que ao estrangeiro acode,
 
N'água não poderá, se em fogo pode.
 
XXXVII
 
Parece à rude gente este discurso,
 
Segundo os seus princípios concludente;
 
E ouvido com aplauso no concurso,
 
Votam na execução concordemente.
 
Toma a guerra por tanto um novo curso,
 
E ao mar se envia a belicosa gente;
 
Nem capitão há mais, nem há pessoa,
 
Que não embarque em rápida canoa.
 
XXXVIII
 
Chamam canoa os nossos nesses mares
 
Batel de um vasto lenho construído
 
Que escavado no meio, por dez pares
 
De remos, ou de mais voa impelido;
 
Com tropas e petrechos militares,
 
Vai de impulso tão rápido movido,
 
Que ou fuja da batalha, ou a acometa,
 
Parece mais ligeiro que uma seta.
 
XXXIX
 
Concorrendo as nações do sertão junto,
 
Trezentas, ou mais, arma Jararaca;
 
E, tendo escolha, porque o povo é muito,
 
Deixa em terra das gentes a mais fraca.
 
E sendo da Bahia tão conjunto
 
O ilhéu de Taparica, este se ataca,
 
Na esperança que Diogo acudiria,
 
Vendo o sogro em perigo, que o regia.
 
XL
 
Repousava sem susto Taparica,
 
E, confiado em Diogo e na vitória,
 
Gozava de uma paz tranqüila e rica,
 
Depois que a guerra terminou com glória;
 
E quando a rouca inúbia arma publica,
 
Tão longe tinha as armas da memória,
 
Que, ignorando em sossego os seus perigos,
 
Nas mãos se foi meter dos inimigos.
 
XLI
 
Prendem o inerme chefe de improviso,
 
Acometendo a taba descuidada;
 
A chama e fumo dão infausto aviso
 
Ao bom Diogo da bárbara assaltada.
 
Nem impulso maior lhe era preciso,
 
Vendo a ilha dos bárbaros tomada:
 
Ocupa em pressa as armas e as canoas,
 
Sem mais que Paraguassu com cem pessoas.
 
XLII
 
Vinte bombas de pólvora tem cheias,
 
De que uma parte já das naus salvara;
 
Quatro férreos canhões, que entre as areias
 
Por nadadores bons do mar tirara;
 
Metralhas, palanquetas e cadeias,
 
Pistolas e fuzis, que preparara;
 
Canoas três de pólvora e resina,
 
Que lançar nas contrárias determina.
 
XLIII
 
Forma-se em meia lua a vasta armada,
 
Cuidando de encerrar Diogo em meio,
 
E com nuvem de frechas condensada
 
A áurea luz do sol a impedir veio.
 
Firme estava do herói a turba irada,
 
E, coalhando-se o mar de lenhos cheio,
 
Retumba o eco na Bahia toda
 
Pela gente brutal que urlava em roda.
 
XLIV
 
Até que a tiro os vê do bronze horrendo
 
E, sem mais esperar, dispara fogo,
 
Que tudo com metralha ia varrendo,
 
E a pique dez canoas meteu logo.
 
Saltam muitos de horror no mar, tremendo;
 
Alguns, deixando o remo, as mãos de Diogo
 
Com bombas ardem, que feroz lhe lança,
 
Outros a espada de vizinho alcança.
 
XLV
 
Confusas entre si vão flutuando
 
As canoas, que a gente não regia,
 
E um vai sob'outras embarrando
 
Na desordem que todas confundia.
 
As três incendiárias arrojando,
 
Um dilúvio de fogo n’água ardia,
 
Com tal fumaça nas ardentes frágoas,
 
Que, cobrindo-se o ar, fervem as águas.
 
XLVI
 
Qual, se na selva densa o fogo ateia,
 
Em colunas de fumo voa a chama,
 
E a labareda, que pelo ar ondeia,
 
Traspassando se vai de rama em rama,
 
Tal na baía de canoas cheia
 
Um dilúvio de fogo se derrama;
 
E o bárbaro, de horror, de espanto e mágoa,
 
Foge a morte do fogo e escolhe a d’água.
 
XLVII
 
Jararaca entretanto em terra estava,
 
Donde prendera o incauto Taparica,
 
E raivoso das praias observava
 
Toda a frota naval, que em cinzas fica.
 
Foge dispersa a tropa que levava,
 
E, logo que a vitória se publica,
 
Toda a ilha, que as armas arrebata,
 
O tímido Caeté subjuga, ou mata.
 
XLVIII
 
Nem já dos inimigos se descobre
 
Uma canoa só no lago ingente,
 
E o mar de mil cadáveres se cobre,
 
Sem que saiba aonde fuja a infeliz gente,
 
Que Gupeva entretanto a praia encobre
 
Embaraçando a fuga ao continente;
 
Grande parte desde a água o braço estende
 
E a liberdade com a vida rende.
 
XLIX
 
Não assim Jararaca, que na praia
 
Põe por escudo o infausto Taparica;
 
E ameaça matá-lo, quando saia
 
Em terra Diogo, que suspenso fica.
 
Vê o transe a filha e sobre as mãos desmaia
 
Do caro esposo, e pelo pai suplica;
 
E vê-se Diogo em lance embaraçado,
 
Sem saber como salve o desgraçado.
 
L
 
Atirar-lhe quisera; mas duvida,
 
Na intenção de matá-lo vacilante,
 
Vendo do sogro ameaçada a vida,
 
E quase sem alento a esposa amante:
 
Três vezes pôs a mira dirigida,
 
Três vezes se deteve a mão constante;
 
E em terra e mar a um tempo a ação retarda
 
Jararaca ao bastão, ele à espingarda.
 
LI
 
"Que mais espero (diz)? feri-lo é incerto;
 
Mas é claro na mão desse inimigo
 
Que em qualquer caso enfim o dano é certo,
 
E cresce na tardança o seu perigo."
 
Disse e toma por alvo descoberto
 
A fronte do contrário, e neste artigo
 
Dispara o tiro e a bala lhe atravessa
 
De uma parte à outra parte da cabeça.
 
LII
 
Cai Jararaca em terra ao mesmo instante,
 
Qual penhasco que do alto se derroca,
 
Quando o raio, que o arroja fulminante,
 
Desde clima o arrancou da excelsa roca.
 
Num rio a terra se banhou fumante
 
Do negro sangue, donde pondo a boca
 
Morde raivoso a areia em que caíra,
 
E o torpe alento com a vida expira.
 
LIII
 
Já neste tempo se encontrava amigo
 
Taparica e Diogo em terno abraço,
 
Vendo por terra o pérfido inimigo,
 
Que, temendo, ocupava um vasto espaço.
 
Paraguassu, que aflita do perigo,
 
Sem sentido ficou no horrível passo,
 
Torna a si do desmaio e vê piedoso
 
O pai, que a tem nos braços, com o esposo.
 
LIV
 
Alegre vem do oposto continente
 
Em canoas Gupeva e Taparica,
 
Congratular-se com o herói valente
 
Que, morto Jararaca, em calma fica.
 
Pasma de ver o estrago a insana gente,
 
Que os arcos abatendo a paz suplica,
 
E, respeitando a superior potência,
 
Compensavam a paz com a obediência.
 
LV
 
Chegaram do sertão dez mensageiros
 
Em nome das nações que em guerra andavam,
 
Confirmando com pactos verdadeiros
 
A inteira sujeição que ao luso davam.
 
Vêm entre eles os príncipes primeiros,
 
E, com os ritos que na pátria usavam,
 
Príncipe aclamam com festivo modo
 
O filho do trovão do sertão todo.
 
LVI
 
Nem duvidou Diogo, imaginando
 
Quanto domar importa a gente bruta,
 
Aceitar das nações o excelso mando,
 
E consigo prudente os fins reputa.
 
Ouve-se em nome seu publico bando,
 
Que a bárbara caterva humilde escuta,
 
Em que todo o homicídio se proíbe,
 
E com pena de morte a culpa inibe.
 
LVII
 
Julga, porém, ao ver inveterada
 
A bárbara paixão na gente cega,
 
Que a grave pena ao crime decretada
 
Convém dissimular, se ao caso chega.
 
A tudo a gente bárbara humilhada
 
Só na gula cruel a emenda nega,
 
Por bárbara vingança carniceira,
 
Que tanto pode a educação primeira.
 
LVIII
 
Não tardou logo a ocasião de vê-lo,
 
Porque, apenas deixara a companhia,
 
O próprio Taparica sem temê-lo
 
Ao convite cruel se prevenia.
 
Bambu, que fora ao ponto de prendê-lo,
 
Quem lhe lançara as mãos com ousadia,
 
Preso em canoa o régulo conserva,
 
Por pasto infando à bárbara caterva.
 
LIX
 
Estava o desditoso encadeado,
 
E exposto a mil insetos que o mordiam;
 
Nem se lhe via o corpo ensangüentado,
 
Que todos os maribondos lhe cobriam. (1)
 
Corria o negro sangue derramado
 
Das cruéis picaduras que lhe abriam;
 
E ele, imóvel entanto em tosco assento,
 
Parecia insensível no tormento.
 
LX
 
Vendo Diogo o infeliz quanto padece
 
No modo de penar mais desumano,
 
Maior a tolerância lhe parece
 
Do que possa caber num peito humano.
 
E, como autor do crime reconhece
 
Do cruel sogro o coração tirano,
 
Oferece a Bambu, que a morte ameaça,
 
Socorro amigo na cruel desgraça.
 
LXI
 
"Perdes comigo o tempo (disse o fero); (2)
 
Ao que vês, e ainda a mais vivo disposto.
 
A liberdade, que me dás, não quero,
 
E da dor, que tolero, faço gosto.
 
Assim vingar-me do inimigo espero."
 
Disse; e, sem se mudar do antigo posto,
 
As picadas cruéis tão firme atura,
 
Como se penha fora, ou rocha dura.
 
LXII
 
"Se o motivo, diz Diogo, por que temes,
 
É porque escravo padecer receias,
 
E tens por menos mal este, em que gemes,
 
Do que uma vida em míseras cadeias,
 
Depõe o susto, que sem causa tremes;
 
Penhor te posso dar, por onde creias,
 
Depondo a obstinação do torpe medo,
 
Que a vida e liberdade te concedo."
 
LXIII
 
Aqui da fronte o bárbaro desvia
 
Dos insetos coa mão a espessa banda;
 
E a Diogo, que assim se condoía,
 
Um sorriso em resposta alegre manda.
 
"De que te admiras tu? Que serviria
 
Dar ao vil corpo condição mais branda?
 
Corpo meu não é já; se anda comigo,
 
Ele é corpo em verdade do inimigo.
 
LXIV
 
O espírito, a razão, o pensamento
 
Sou eu e nada mais; a carne imunda
 
Forma-se cada dia do alimento,
 
E faz a nutrição, que se confunda.
 
Vês tu a carne aqui, que mal sustento?
 
Não a reputes minha: só se funda
 
Na que tenho comido aos adversários;
 
Donde minha não é, mas dos contrários.
 
LXV
 
Da carne me pastei continuamente
 
De seus filhos e pai; dela é composto
 
Este corpo, que animo de presente.
 
Por isso dos tormentos faço gosto.
 
E, quando maior pena a carne sente,
 
Então mais me consolo, do suposto
 
Do me ver no inimigo bem vingado,
 
Neste corpo, que é seu, tão mal tratado."
 
LXVI
 
Impossível parece ao sábio herói
 
O que vê e o que escuta, e que assim possa,
 
Quando a carne mortal tanto se dói,
 
Vencer-se a dor da fantasia nossa.
 
Magoado interiormente se condói
 
De ver que no infeliz nada faz mossa,
 
Mostrando na brutal rara constância
 
Com tal valor tão bárbara ignorância.
 
LXVIII
 
Tinham disposto entanto no terreiro
 
As nações do sertão pompa festiva,
 
Criando Diogo principal primeiro
 
Com aplauso geral da comitiva.
 
Vê-se ornado de plumas o guerreiro;
 
E como em triunfo a multidão cativa,
 
E sobre os mais num trono levantado
 
Cingem de pluma o vencedor c'roado.
 
LXVIII
 
A roda, como em círculo, prostrados,
 
Sessenta principais das nações feras
 
Em nome de seus povos humilhados,
 
Submissões rendem com temor sinceras:
 
Tujucupapo, estando os mais calados,
 
"Grão-filho do trovão (disse) que imperas
 
Em terra e mar com glória combatendo,
 
Tudo domaste com o raio horrendo.
 
LXIX
 
Não te cedera, não, dos nossos peitos
 
A varonil constância em guerra humana;
 
Nem da morte tememos os efeitos,
 
Se a contenda não fora sobre-humana;
 
Rendemos-te fiéis nossos respeitos,
 
Depois que o teu valor nos desengana
 
Que em teus combates todo o céu te assiste;
 
E a quem socorre o céu quem lhe resiste?
 
LXX
 
As nações do sertão, já convencidas,
 
Põem a teus pés os arcos e as espadas.
 
Suspende o raio teu; protege as vidas
 
Desde hoje ao teu império sujeitadas.
 
E, se tens, como creio, submetidas
 
As procelas, as chuvas e as trovoadas,
 
Não espantes com fogo a humilde gente,
 
Mas faze-nos gozar da paz clemente.
 
LXXI
 
A teu comando estão sem replicar-te
 
Os povos deste vasto continente;
 
E farás com teu nome em qualquer parte
 
Que te obedeça a valorosa gente.
 
Faze com o favor que haja do amar-te,
 
Como a tens com terror feito obediente;
 
Que, se troveja o céu na esfera escura,
 
A luz manda também formosa e pura."
 
LXXII
 
"Não foi acaso (disse o herói prudente,
 
Respondendo ao discurso), foi destino
 
Querer o grão-Tupá que a vossa gente
 
A mão conheça do poder divino.
 
Do céu, que sobre vós brilha luzente,
 
Se receberdes o sagrado ensino,
 
Livres com glória do tirano averno
 
Sobre ele reinareis num sólio eterno.
 
LXXIII
 
Porém, por serdes na ignorância rude,
 
Incapazes de ouvir o mais entanto,
 
Buscai com razão maior virtude,
 
Implorando o favor do trono santo.
 
E, quando a vossa fé pedi-lo estude,
 
Vereis da antiga serpe no quebranto
 
Florescer nesta pátria de improviso
 
Uma imagem do ameno paraíso."
 
LXXIV
 
Disse o herói generoso; a turba imensa,
 
Em sinal de prazer com grata dança,
 
Vão em fileiras com a mão extensa,
 
Fazendo com os pés vária mudança:
 
Uma perna bailando tem suspensa,
 
E turma sobre turma em modo avança,
 
Que idéia dão dos bélicos ataques,
 
Retumbando entretanto os seus marraques.
 
LXXV
 
Os nigromantes, que o Brasil respeita,
 
Um marraque descobrem venerado;
 
Insígnia da nação, que ao povo aceita,
 
Consideram por símbolo sagrado.
 
O sacerdócio, como turma eleita
 
No ministério ao culto dedicado,
 
Pôs o bárbaro termo à função toda,
 
Bafejando nos príncipes à roda.
 
(1) Maribondos. — Espécie de vespa mordacíssima no Brasil.
 
(2) Disse o fero. — Um gravíssimo áulico da nossa corte me atravessou ter sucedido caso semelhante no Pará, em reinado do Fidelíssimo rei o Senhor D. José I, aonde ele era contemporaneamente ocupado em cargo distintíssimo do real serviço.
 
 
CANTO VI
 
I
 
Descansava no seio então Diogo,
 
Extinta a guerra, de uma paz dourada,
 
E o pavor do sulfúreo horrível fogo
 
Trazia a gente bárbara assombrada.
 
A remotas nações concorrem logo,
 
Desde a interna região mais apartada,
 
E, tendo-o do trovão por viva imagem,
 
Vinha todo o sertão dar-lhe homenagem.
 
II
 
Muitos deles, dos povos subjugados,
 
Que o efeito viram da terrível chama,
 
Outros vinham somente convocados
 
Das heróicas ações, que conta a fama;
 
Trazem plumas e bálsamos prezados,
 
E outra rude opulência, que o povo ama,
 
E com os dons da americana Ceres
 
Oferecem-lhe as filhas por mulheres.
 
III
 
Era antigo dos bárbaros costume,
 
Quando algum capitão foi bravo em guerra,
 
Ou se julgavam que o regia um nume,
 
Emparentá-lo aos principais da terra;
 
Qualquer que de nobreza então presume
 
Do grão-Caramuru que tudo aterra,
 
Procura, como nobre preminência,
 
Ter na sua prosápia a descendência.
 
IV
 
Tuibaé, dos Tapuias chefe antigo,
 
Tiapira lhe oferece celebrada;
 
E com a mão da filha deixa amigo
 
Uma ilustre aliança confirmada.
 
Xerenimbó trazia-lhe consigo
 
A formosa Moema já negada
 
A muitos principais, por dar-lhe esposo
 
Digno do trono de seus pais famoso.
 
V
 
Muitas outras donzelas brasilianas
 
A mão do claro Diogo pretendiam,
 
Ou por prendas, que notam soberanas,
 
Ou por grandes ações, que dele ouviam:
 
A todas ele deu mostras humanas
 
Sem a fé lhe obrigar que pretendiam;
 
Mas, por não ofender as brutas gentes;
 
Trata os pais e os irmãos como parentes.
 
VI
 
Paraguassu, porém, com fé de esposo
 
Parecia estimar distintamente,
 
Mostrando-lhe no afeto carinhoso
 
A sincera afeição que n'alma sente:
 
Amava nela o peito valoroso,
 
E o gênio dócil, com que à fé consente;
 
Amor que ocasionou, como é costume,
 
Em algumas inveja e noutras ciúme.
 
VII
 
Todas, à bela dama aborrecendo,
 
Conspiram feras em tirar-lhe a vida;
 
Mas ela, que o projeto alcança horrendo,
 
Deixar pretende a pátria aborrecida;
 
E, na viagem de Europa discorrendo,
 
Deseja renascer à melhor vida:
 
Impulso santo, que com justa idéia
 
Move Diogo a deixar aquela areia.
 
VIII
 
Agitado do vário pensamento,
 
Na margem se entranhou do vasto rio,
 
Que, invocando o Seráfico portento,
 
Chama de S. Francisco o Luso pio.
 
E, estando o sol no seu maior aumento,
 
Quanto sítio no ardor busca sombrio,
 
Numa lapa, que esconde alto mistério, (1)
 
Foi achar para a calma o refrigério.
 
IX
 
Por mil passo a penha milagrosa
 
Estende em roda o giro dilatado;
 
Obra da natureza prodigiosa,
 
Quando o globo terráqueo foi criado.
 
Concavidade há ali vasta, espaçosa,
 
Onde tinha o Criador delineado,
 
Com capela maior, nave e cruzeiro,
 
Um templo, como os nossos, verdadeiro.
 
X
 
Largo trinta e três passos se estendia
 
O grão-cruzeiro; a longitude da mole
 
Por mais de outros oitenta discorria,
 
Lugar que não pisara humana prole.
 
O prospeto exterior de pedraria,
 
O interior pavimento é terra mole;
 
De jaspe se levanta a grã-portada,
 
Entre torres marmóreas fabricada.
 
XI
 
Dentro vêem-se magníficas capelas,
 
Sustentadas de esplêndidas colunas;
 
Pelo teto entre nuvens giram estrelas,
 
E sobre o rio a um lado tem tribunas,
 
Que, servindo-lhe a um tempo de janelas,
 
Dão luz a todo o templo; e, quando lhe unas
 
Quantos prodígios o lugar encerra,
 
Maravilha maior não cobre a terra.
 
XII
 
Capela ali se vê de entalho nobre,
 
Obrado com desenho estranho e vário,
 
Onde, efigiado em mármore, se cobre
 
Um natural belíssimo Calvário;
 
Vê-se a base da cruz, mas nada sobre,
 
De jaspe ainda melhor que Egízio, ou Pário,
 
E ao lado um posto em proporção distinta,
 
Onde a mãe e discípulo se pinta.
 
XIII
 
Chegado Diogo a ver prodígio tanto,
 
Pelo estranho espetáculo suspenso,
 
Penetra-se no peito de horror santo,
 
Por não sei quê sagrado oculto senso.
 
Depois, rompendo num devoto pranto,
 
Prostrado em terra, adora o Deus imenso,
 
Que, quando ser ao mar e à terra dava,
 
O alicerce à grã-fábrica lançava.
 
XIV
 
"Eis aqui preparado (disse) o templo,
 
Falta a fé, falta o culto necessário;
 
E quanto era de Deus, feito contemplo
 
Tudo o que é de salvar meio ordinário.
 
Desta intenção parece ser exemplo
 
Este insigne prodígio extraordinário,
 
Onde parece que no templo oculto
 
Tem disposto o lugar e espera o culto.
 
XV
 
Quis mostrar nesta imagem porventura
 
Que esta gente brutal não desampara,
 
E que a qualquer humana criatura
 
O remédio da cruz justo prepara;
 
Que a estes do seu sangue dera a cura,
 
Se aos instintos, que têm, não repugnara;
 
Que advogada nos deu de empresa tanta,
 
Preparando o lugar à Virgem Santa.
 
XVI
 
Oh queira, grão-Senhor, vossa bondade
 
Suprir neles e em mim tanta miséria!
 
Pois de todo salvar tendes vontade,
 
Que por este sinal mostrais tão séria;
 
Que, se olhais para a nossa iniqüidade,
 
Achareis de punir tanta matéria,
 
Que a antiga culpa pelos seus abrolhos
 
A ninguém deixa justo aos vossos olhos."
 
XVII
 
Dali, sulcando o rio caudaloso,
 
Vai o noto recôncavo buscando,
 
Por ver se inchada vela o pego undoso
 
A rumo oriental vai navegando.
 
Nem temeria o pélago espaçoso
 
Ir na leve canoa atravessando,
 
Se o perigo, que imenso considera,
 
Pelo dano da esposa não temera.
 
XVIII
 
Ergue-se sobre o mar alto penedo,
 
Que uma angra à raiz tem, das naus amparo,
 
Onde das ramas do entrechado enredo
 
Causa o verde prospeto um gosto raro.
 
Ali, morro coberto de arvoredo
 
A quem passeia o mar serve de faro;
 
Dão-lhe nome da costa os experientes
 
Do glorioso apóstolo das gentes.
 
XIX
 
Aqui vê Diogo um casco, que encalhara,
 
Onde n'água se oculta hórrida penha,
 
Porque, ignorando a costa, se arrojara,
 
Sem que esperança de socorro tenha.
 
Vê, como a chusma em terra se salvara,
 
Que a brutal gente cativar se empenha;
 
E, presumindo o que era, na canoa
 
A defender os seus remando voa.
 
XX
 
E, temendo que cedam enganados
 
Ao bárbaro cruel os naufragantes,
 
Ou que fiquem sem armas cativados
 
Nas mãos desses penhascos ambulantes,
 
Faz-lhes sinais e deixa-os avisados,
 
Fazendo ver as armas rutilantes,
 
Da areia infinda e do cruel perigo,
 
E o seu socorro lhes of’rece amigo.
 
XXI
 
E, quando a tiro de canhão se via,
 
Fez que se ouvisse a formidável tromba,
 
E ao eco do tambor que lhe batia
 
Dispara ao tempo mesmo a horrível bomba.
 
Treme de espanto o bárbaro, que ouvia;
 
E este pasma, outro foge, aquele tomba;
 
E, o grão-Caramuru já divisando,
 
Correm todos humildes ao seu mando.
 
XXII
 
Unidos do bom Diogo à comitiva
 
Socorrem com presteza a vela rota,
 
Onde a gente das águas semi-viva
 
Vão leves conduzindo à praia nota.
 
Salvou-se-lhe a equipagem toda viva;
 
E, para os preparar à grã-derrota,
 
Faz que a bárbara gente, dando ajuda,
 
A aflita multidão piedosa acuda.
 
XXIII
 
Paraguassu, porém, com pio aviso
 
Cuida em prover de roupas e sustento,
 
E, quanto lhe é possível, de improviso
 
Restab'lece-lhe as forças co alimento,
 
Depois que se saciaram do preciso,
 
Diogo, que o caso seu recorda atento,
 
Logo que a turba vê contente e junta,
 
Donde vêm? aonde vão? quem são? pergunta.
 
XXIV
 
Um entre outros, que o Chefe parecia,
 
E sobre os mais da chusma dominava,
 
Depois de agradecer-lhe a cortesia
 
Na castelhana língua em que falava,
 
"Somos (disse) da nobre Andaluzia,
 
Onde o chão Hispalense o Bétis lava,
 
Sócios, se ouviste o nome, de Arelhano,
 
E desde o reino viemos Peruano.
 
XXV
 
Se a fama a vós chegou do valoroso
 
Domador das províncias peruanas,
 
E se Pizarro no orbe tão famoso
 
Não se ignora das gentes lusitanas,
 
Fomos dele mandados pelo undoso
 
Grão-rio, que em correntes desce insanas,
 
Desde a grã-cordilheira, que iminente
 
Aqui separa o ocaso do oriente.
 
XXVI
 
Novas ilhas buscando e novos mares,
 
Depois de longos dias navegamos;
 
Já com procelas, já com brandos ares,
 
Ao conhecido oceano alfim chegamos.
 
Os perigos, os casos singulares,
 
Que por mais de mil léguas toleramos,
 
Não contara, depois que no mar erro,
 
A ter o peito de aço e a voz de ferro.
 
XXVII
 
De sessenta e mais línguas diferentes
 
Vimos, descendo rio, em curso imenso,
 
Incógnitas nações, bárbaras gentes,
 
E um povo inumerável, vasto e denso.
 
Montanhas vimos, campos mil patentes,
 
E um terreno nas margens tão extenso,
 
Que poderá ele só neste hemisfério
 
Formar com tanto povo um vasto império.
 
XXVIII
 
Mil vezes com canoas belicosas
 
Combatemos no rio e mil em terra,
 
Perseguidos de tropas numerosas,
 
Que ocupavam talvez o vale e a serra.
 
Nem cessava nas margens perigosas
 
De mil bravas nações a dura guerra,
 
Até que, entrando nas ardentes zonas,
 
Chegamos à região das Amazonas.
 
XXIX
 
Discorre com furor pela ribeira
 
Vasto esquadrão de tropa feminina,
 
Que, em postura e contenho de guerreira,
 
Assaltar nossa frota determina.
 
Sobre o sexo viril, turba grosseira,
 
O feminino sexo ali domina,
 
Onde no rio, por que a fama o conte,
 
Recordamos o antigo Termodonte.
 
XXX
 
E já o hispano leão domado houvera
 
Das Amazonas o terreno infausto,
 
Se do clima infeliz nos não morrera
 
De mil fadigas Arelhano exausto.
 
A gente, pois, que o capitão perdera,
 
Não podendo esperar sucesso fausto,
 
Sobre este bergantim, que ali se adorna,
 
Ao solar pátrio, navegando, torna."
 
XXXI
 
"Não duvideis, responde o herói clemente,
 
De achar em mim socorro poderoso;
 
Que achais quem como vós do mar fremente
 
Aprendeu na desgraça a ser piedoso.
 
Tendes amiga mão, madeira e gente,
 
Com que o casco, que vedes ruinoso,
 
Reformando-se, torne do céu nosso
 
À desejada Espanha e Bétis vosso."
 
XXXII
 
Disse; e, ordenando a turba americana,
 
Assiste ao fabro na naval fadiga;
 
E, quanto lhe permite a força humana,
 
Faz que em breve o baixel seu rumo siga.
 
Nem se demora mais a gente hispana,
 
Que a convida a monção e o vento obriga:
 
Soltam a branca vela ao fresco vento,
 
E vão raspando o líquido elemento.
 
XXXIII
 
"Felizes vós, diz Diogo, afortunados,
 
A quem da cara pátria é concedido
 
Tornar hoje aos abraços desejados,
 
Depois de tanto tempo a ter perdido,
 
Enquanto eu nestes climas apartados
 
Me vejo de seguir-vos impedido;
 
Que fiar temo de tão débil lenho
 
Outra vida que em mais que a própria tenho."
 
XXXIV
 
Dizendo assim, com calma vê lutando
 
Formosa nau de gálica bandeira,
 
Que a terra ao parecer vinha buscando,
 
E a proa mete sobre a própria esteira.
 
Vem seguindo a canoa, e sinais dando,
 
Até que aborda a embarcação veleira,
 
E, de paz dando a mostra conhecida,
 
Às praias da Bahia a nau convida.
 
XXXV
 
A Gupeva entretanto e Taparica
 
Dava o último abraço, e à forte esposa
 
A intenção de levá-la significa,
 
A ver de Europa a região famosa.
 
Suspensa entre alvoroço e pena fica
 
Paraguassu contente, mas saudosa:
 
E, quanto o pranto na sentida fuga
 
Começava a saudade, amor lho enxuga.
 
XXXVI
 
É fama então que a multidão formosa
 
Das damas, que Diogo pretendiam,
 
Vendo avançar-se a nau na via undosa,
 
E que a esperança de o alcançar perdiam
 
Entre as ondas com ânsia furiosa,
 
Nadando, o esposo pelo mar seguiam,
 
E nem tanta água que flutua vaga,
 
O ardor que o peito tem, banhando apaga.
 
XXXVII
 
Copiosa multidão da nau francesa
 
Corre a ver o espetáculo assombrada;
 
E, ignorando a ocasião de estranha empresa,
 
Pasma da turba feminil que nada.
 
Uma, que às mais precede em gentileza,
 
Não vinha menos bela do que irada;
 
Era Moema, que de inveja geme,
 
E já vizinha à nau se apega ao leme.
 
XXXVIII
 
"- Bárbaro (a bela diz), tigre e não homem...
 
Porém o tigre, por cruel que brame,
 
Acha forças amor que enfim o domem;
 
Só a ti não domou, por mais que eu te ame.
 
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem.
 
Como não consumis aquele infame?
 
Mas apagar tanto amor com tédio e asco...
 
Ah que o corisco és tu... raio... penhasco?
 
XXXIX
 
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
 
Quando eu a fé rendia ao teu engano;
 
Nem me ofenderas a escutar-me altivo,
 
Que é favor, dado a tempo, um desengano;
 
Porém, deixando o coração cativo,
 
Com fazer-te a meus rogos sempre humano,
 
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
 
Paga meu fino amor tão crua morte?
 
XL
 
Tão dura ingratidão menos sentira
 
E esse fado cruel doce me fora,
 
Se a meu despeito triunfar não vira
 
Essa indigna, essa infame, essa traidora.
 
Por serva, por escrava, te seguira.
 
Se não temera de chamar senhora
 
A vil Paraguassu, que, sem que o creia,
 
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.
 
XLI
 
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
 
Flutuar moribunda entre estas ondas;
 
Nem o passado amor teu peito incita
 
A um ai somente com que aos meus respondas!
 
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
 
(Disse, vendo-o fugir), ah não te escondas!
 
Dispara sobre mim teu cruel raio..."
 
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.
 
XLII
 
Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
 
Pálida a cor, o aspecto moribundo;
 
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
 
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
 
Mas na onda do mar, que irado freme,
 
Tornando a aparecer desde o profundo,
 
- Ah! Diogo cruel! - disse com mágoa,
 
E, sem mais vista ser, sorveu-se n’água.
 
XLIII
 
Choraram da Bahia as ninfas belas,
 
Que, nadando, a Moema acompanhavam;
 
E, vendo que sem dor navegam delas,
 
A branca praia com furor tornavam.
 
Nem pode o claro herói sem pena vê-las,
 
Com tantas provas que de amor lhe davam;
 
Nem mais lhe lembra o nome de Moema,
 
Sem que ou amante a chore, ou grato gema.
 
XLIV
 
Voava entanto a nau na azul corrente,
 
Impelida de um zéfiro sereno,
 
E do brilhante mar o espaço ingente
 
Um campo parecia igual e ameno.
 
Encrespava-se a onda docemente,
 
Qual aura leve, quando move o feno,
 
E, como o prado ameno ris costuma,
 
Imitava as boninas com a escuma.
 
XLV
 
Du-Plessis, que os franceses governava,
 
Em uma noite clara à popa estando,
 
Os casos de Diogo, que escutava,
 
Admira no naufrágio memorando.
 
Depois do herói prudente perguntava
 
Quem achará o Brasil, o como e quando
 
Ganhara no recôndito hemisfério
 
Tanto tesouro o lusitano império?
 
XLVI
 
"Dois monarcas (responde o lusitano)
 
Já sabes que no ocaso e no oriente
 
Novos mundos buscaram pelo oceano,
 
Depois de haver domado a Líbia ardente;
 
E que onde não chegou grego, ou romano,
 
Passeia o forte Hispano e a lusa gente,
 
Que, instruídos na náutica com arte,
 
Descobriram do mundo outra grã parte.
 
XLVII
 
Do Tejo ao China o Português impera,
 
De um pólo ao outro o castelhano voa,
 
E os dois extremos da redonda esfera
 
Dependem de Sevilha e de Lisboa. (2)
 
Mas, depois que Colon sinais trouxera
 
(Colon, de quem no mundo a fama voa)
 
Deste novo admirável continente,
 
Discorda com Castela o luso ardente.
 
XLVIII
 
Já se dispunha a guerra sanguinosa,
 
Porém o comum pai aos dois intima
 
Arbítrio na contenda duvidosa,
 
Que a parte competente aos reis estima.
 
Desde Roma Alexandre imperiosa,
 
Deixando ambos em paz à empresa anima,
 
E uma linha lançando ao céu profundo,
 
Por Fernando e João reparte o mundo.
 
XLIX
 
Na vasta divisão que ao luso veio,
 
O precioso Brasil contido fica,
 
País de gentes e prodígios cheio,
 
Da América feliz porção mais rica.
 
Aqui do vasto oceano no meio
 
Por horrível tormenta a proa aplica
 
O ilustre Cabral com fausto acaso,
 
Sobre graus dezesseis do nosso ocaso.
 
L
 
Da nova região, que atento observa,
 
Admira o clima doce, o campo ameno,
 
E, entre arvoredo imenso, a fértil erva
 
Na viçosa extensão do áureo terreno.
 
Coberta a praia está de grã-caterva
 
De incógnita nação, que com o aceno,
 
Porque a língua ignorava, à paz convida,
 
Erguendo lhe o troféu do autor da vida.
 
LI
 
Era o tempo em que alegre ressuscita
 
A verde planta, que murchou no inverno,
 
E quando a solar meta o tempo excita,
 
Em que o rei triunfou da morte eterno.
 
Tão sagrada memória a frota incita
 
A celebrar ao vencedor do inferno
 
O sacrifício, dando a fé venera,
 
A paixão, que em tal tempo sucedera.
 
LII
 
Em frondosa ramada o lusitano
 
Um altar fabricou no prado extenso,
 
Donde assista ao mistério soberano
 
Da lusitana esquadra o povo imenso.
 
Ao rei triunfante do infernal tirano
 
Odorífero fuma o sacro incenso,
 
E a vítima do céu, que a paz indica
 
A gente e nova terra santifica.
 
LIII
 
Notar o americano ali contende
 
Do sacrossanto altar o ato sublime;
 
E, tanto a simples gente o aceno entende,
 
Que parece que a ação por santa estime.
 
Algum, que olhava ao celebrante, emprende
 
O gesto arremedar, que orando exprime,
 
E as mãos une e levanta, e talvez solta,
 
E quando o vê voltar também se volta.
 
LIV
 
Como as nossas ações talvez espia
 
O peloso animal, que o mato hospeda
 
E quanto vê fazer, como à porfia,
 
Tudo posto a observar, logo arremeda,
 
Tal o gentio simples parecia,
 
Quem nem um pé, nem passo dali arreda,
 
E, ao santo sacrifício atento e mudo,
 
O que aos mais viu fazer, fazia-o tudo.
 
LV
 
Aqui, depois que às turbas eloqüente
 
Dita o sacro orador pelo conceito,
 
E a fé dispensa no ânimo valente
 
Do nobre povo a propagá-la eleito,
 
Participa da veia a cristã gente,
 
E o dom recebem com fiel respeito;
 
E é fama que Cabral que os convocara,
 
Montando sobre um alto, assim falara:
 
LVI
 
"Gloriosa nação, que a terra vasta
 
Vais a livrar do paganismo imundo,
 
A quem esse orbe antigo já não basta,
 
Nem a imensa extensão do mar profundo!
 
Neste oculto país, que o mar afasta,
 
Tem teu zelo por campo um novo mundo;
 
E quando tanta fé seus termos sonde,
 
Outro mundo acharás, se outro se esconde.
 
LVII
 
Oh profundo conselho! Abismo imenso
 
Do poder e saber do Onipotente!
 
Que estivesse escondida no orbe extenso
 
Tanta parte do mundo à sábia gente!
 
Cinqüenta e cinco séculos sem senso
 
Das nações deste vasto continente,
 
E em tanta indagação dos sábios feita,
 
Não cair-nos na mente nem suspeita!
 
LVIII
 
Mas combine-se o dia, o tempo, a hora,
 
Em que a alta providência aqui nos guia,
 
Quando à ignorância Cristo o perdão ora,
 
Quando morre na cruz, no próprio dia:
 
Na bandeira do mar triunfadora
 
Tremulamos as chagas com fé pia,
 
E nelas quis à grei, que em sombras langue,
 
Vir neste dia a oferecer seu sangue.
 
LIX
 
Goza de tanto bem, terra bendita.
 
E da cruz do Senhor teu nome seja!
 
E quanto à luz mais tarde te visita,
 
Tanto mais abundante em ti se veja!
 
Terra de Santa Cruz tu sejas dita,
 
Maduro fruto da Paixão na igreja,
 
Da fé renovo pelo fruto nobre,
 
Que o dia nos mostrou, que te descobre."
 
LX
 
Dizendo assim, ajoelha, e cruz entanto
 
Sublime num outeiro se coloca;
 
O exército formado ao sinal santo
 
Se prostra humilde, pondo em terra a boca.
 
Pasma o gentio, e admira com espanto
 
A melodia com que céu se invoca,
 
Hino entoando à cruz pios cantores,
 
E respondendo as trompas e os tambores.
 
LXI
 
Terra, porém depois chamou a gente
 
Do Brasil, não da Cruz; porque, atraída
 
Doutro lenho nas tintas excelente,
 
Se lembre menos dos que o foi da vida.
 
Assim ama o mortal o bem presente,
 
Assim o nome esquece, que o convida
 
Aos interesses da futura glória,
 
Aos bens atento só da transitória.
 
LXII
 
Observa o bom Cabral todo o prospeto
 
Da imensa costa; e pelo clima puro,
 
Pelo abordo tranqüilo e mar quieto,
 
Chama o seio em que entrou Porto Seguro.
 
E, olhando com saudade o doce objeto,
 
Do seu destino, se lamenta escuro,
 
Que pela empresa a que mandado fora
 
Não permite na armada outra demora.
 
LXIII
 
Manda depois ao luso dominante
 
Um aviso do clima descoberto;
 
Nem tarda Manuel, então reinante
 
A enviar um cosmógrafo, que experto
 
Da escola fora que o famoso infante (3)
 
Para a náutica ciência tinha aberto,
 
E Américo dispõe que o Brasil parta,
 
De quem deu nome ao continente a carta.
 
LXIV
 
E por ter quem aos nossos interprete
 
Do ignorado idioma a escura sorte,
 
Alguns em terra condenados mete,
 
Devidos por delito à crua morte;
 
A vida como prêmio lhes promete,
 
Quando com peito se atravessem forte
 
A esperar no sertão nova viagem,
 
Aprendendo os rodeios da linguagem.
 
LXV
 
Com acenos depois à gente bruta
 
Os seus, que lhe deixava, recomenda,
 
E no claro perigo, em que os reputa,
 
Arma lhe deixa que na guerra ofenda.
 
Dá-lhe a espécie, que ali bem se comuta,
 
Em que possam tratar por compra e venda:
 
Espelhos, cascavéis, anzóis, cutelos,
 
Campainhas, fuzis, serra, martelos.
 
LXVI
 
Nem se demora mais a forte armada;
 
E, convidando o vento, estende a vela.
 
Corre a bárbara gente amontoada
 
Ao embarque das naus da tropa bela;
 
E, ao que pode entender-se, magoada
 
Por saudade, que tem de mais não vê-la,
 
Com acenos e voz enternecida
 
Faziam a seu modo a despedida.
 
LXVII
 
Mais saudosos os tristes desterrados,
 
Correndo imenso risco a língua aprendem,
 
Recebendo alimentos comutados
 
Pelas espécies que ao gentio vendem;
 
Talvez os têm coa cítara encantados,
 
Talvez com cascavéis todos suspendem;
 
Mas o objeto que a vista mais lhe assombra
 
É ver dentro do espelho a própria sombra:
 
LXVIII
 
Extático qualquer notando admira
 
Dentro ao Cristal a horrível cara;
 
Pergunta-lhe quem é, como se ouvira,
 
E, crendo estar no inverso o que enxergara,
 
De uma parte a outra parte o espelho vira
 
E, não topando o vulto na luz clara,
 
Tal há que o vidro quebra, por ver dentro
 
Se a imagem acha que observou no centro.
 
LXIX
 
Mas, enquanto estes erram vagabundos,
 
Américo Vespucci e o forte Coelho
 
A longa costa e os seios mais profundos
 
Demarcavam no náutico conselho;
 
Descobridor também dos novos mundos
 
Foi Jacques, na marinha experto e velho,
 
De quem já demarcado em carta ouvimos
 
Esse ameno recôncavo que vimos.
 
LXX
 
Eu depois destes na ocasião presente,
 
Quando o vasto sertão nos encobria,
 
Descobri, pondo em fuga a bruta gente,
 
O recôncavo interno da Bahia:
 
Notei na vasta terra a turba ingente
 
Que mais Europa toda não teria,
 
Se, da grã-cordilheira ao mar baixando,
 
Desde o Prata ao Pará se for contando.
 
LXXI
 
Dá principio na América opulenta
 
Às províncias do império lusitano
 
O Grã-Pará, que um mar nos representa,
 
Êmulo em meio à terra do oceano;
 
Foi descoberto já (como se intenta),
 
Por ordem de Pizarro, de Arelhano,
 
País que a linha equinocial tem dentro,
 
Onde a tórrida zona estende o centro.
 
LXXII
 
Em nove léguas só de comprimento,
 
Vinte seis de circuito, se espraia
 
No vasto Maranhão, de água opulento,
 
Uma ilha bela que se estende à praia;
 
Regam-lhe quinze rios o áureo assento,
 
E um breve estreito, que lhe forma a raia,
 
Pode passar por istmo, que a encadeia
 
À terra firme por mui breve areia.
 
LXXIII
 
O Ceará depois, província vasta,
 
Sem portos e comércio, jaz inculta.
 
Gentio imenso, que em seus campos pasta,
 
Mais fero que outros o estrangeiro insulta,
 
Com violento curso ao mar se arrasta
 
De um lago do sertão, de que resulta,
 
Rio, onde pescam nas profundas minas
 
As brasílicas pérolas mais finas.
 
LXXIV
 
Da fértil Paraíba não ocorre
 
Que informe a gente vossa, sendo empresa
 
Do comércio francês, que ali concorre
 
A lenhos carregar que a Europa presa.
 
Não mui longe da costa, que ali corre,
 
Uma ilha vedes de menor grandeza,
 
Que amena, fértil, rica, e povoada,
 
É de Itamaracá de nós chamada.
 
LXXV
 
A oito graus do equinócio se dilata
 
Pernambuco, província deliciosa,
 
A pingue caça, a pesca, a fruta grata,
 
A madeira entre as outras mais preciosa.
 
O prospeto, que os olhos arrebata
 
Na verdura das árvores frondosa,
 
Faz que o erro se escuse a meu aviso
 
De crer que fora um dia o paraíso.
 
LXXVI
 
Sergipe, então del-rei, logo o terreno
 
De que viste a beleza e perspectiva;
 
Nem cuido que outro visses mais ameno,
 
Nem donde com mais gosto a gente viva.
 
Clima saudável, céu sempre sereno,
 
Mitigada na névoa a calma ativa;
 
Palmas, mangues, mil plantas na espessura,
 
Não há depois do céu mais formosura.
 
LXXVII
 
A quinze graus do sul, na foz extensa
 
De um vasto rio, por ilhéus cortado,
 
Outra província de cultura imensa
 
Tem dos próprios ilhéus nome tomado:
 
Depois Porto Seguro, a quem compensa
 
O espaço da província limitado,
 
Outra de âmbito vasto, que se assoma,
 
E do Espírito Santo o nome toma.
 
LXXVIII
 
Niterói, dos tamoios habitada,
 
Por largas terras seu domínio estende,
 
Famosa região pela enseada
 
Que uma grã-barra dentro em si comprende.
 
Esta praia dos vossos freqüentada,
 
Que pomo de discórdia entre nós pende,
 
Custará, se pressago não me engano,
 
Muito sangue ao francês e ao lusitano.
 
LXXIX
 
S. Vicente e S. Paulo os nomes deram
 
Às extremas províncias que ocupamos;
 
Bem que ao Rio da Prata se estenderam
 
As que com próprio marco assinalamos,
 
E, por memória de que nossos eram,
 
De Marco o nome no lugar deixamos,
 
Povoação que aos vindouros significa
 
Onde o termo espanhol e o luso fica.
 
(1) Lapa. — Esta é a grande igreja da Lapa, em que parece que a natureza preparou à graça um admirável edifício. Veja-se Sebastião da Rocha Pita.
 
(2) Sevilha. — Então corte de Espanha.
 
(3) Do famoso infante. —A escola náutica e matemática, fundada em Sagres pelo senhor Infante D. Henrique, deu os últimos lumes a Colon, Américo Vespúcio, e outros cosmógrafos estranhos, que em nenhuma outra região da terra podiam achar estudos àquele tempo tão célebres como os de Portugal.
 
 
CANTO VII
 
I
 
Era o tempo em que o sol na vasta esfera
 
O claro dia com a noite iguala,
 
E o velho outono, que o calor modera,
 
De seus pâmpanos tece a verde gala;
 
E quando todo monte Baco altera,
 
E os capazes tonéis na adega abala,
 
Tocava a franca nau do claro Sena
 
Na deliciosa foz a praia amena.
 
II
 
Na grã-Lutécia, capital do estado,
 
A ligeira falua dava fundo,
 
E esse orbe na cidade abreviado
 
Enchia Diogo de um prazer jocundo;
 
Templos, torres, palácios, casas, prados,
 
O famoso Ateneu mestre do mundo,
 
A corte mais augusta, que se avista,
 
Enche-lhe o coração e assombra a vista.
 
III
 
Paraguassu, porém, que jamais vira
 
Espetáculo igual, suspensa pára:
 
Nem fala, nem se volta, nem respira,
 
Imóvel a pestana e fixa a cara
 
E cheia a fantasia do que admira,
 
Causa lhe tanto pasmo a visão rara,
 
Que estúpida parece ter perdido
 
O discurso, a memória, a voz e o ouvido.
 
IV
 
Qual pende o terno infante ao colo da ama,
 
Se um novo e belo objeto tem presente,
 
Que nem a doce mãe, que ao peito o chama,
 
Nem os mimos do pai pasmado sente,
 
Toda alma no que vê fixo derrama,
 
E só parece pelo olhar vivente,
 
Não foi da americana o ar diverso,
 
Vendo em Paris a suma do universo.
 
V
 
Por fama que se ouviu da novidade,
 
A admirar o espetáculo se ajunta
 
Curiosa do sucesso a grã-cidade,
 
E um se admira, outro o conta, algum pergunta.
 
Cresce o vago rumor sobre a verdade;
 
E a plebe, que a Diogo acode junta,
 
Dele e da esposa divulgada tinha
 
Que era o rei do Brasil e ela a rainha.
 
VI
 
E já avistavam do palácio augusto
 
Em bela perspectiva o régio espaço,
 
E o átrio vendo de troféus onusto,
 
Entram do franco rei no excelso paço.
 
Cinge as portas exército robusto,
 
Brilhante guarda, de que o invicto braço
 
Ao lado sempre da real pessoa,
 
Sustenta as lises e defende a cr’oa.
 
VII
 
Era ali cristianíssimo reinante
 
Entre os franceses o segundo Henrique,
 
Meta então do germano fulminante,
 
Que opôs de Carlos às vitórias dique:
 
Ortodoxo monarca, da fé amante,
 
Que faz que em toda a França imóvel fique
 
O antigo culto e religião paterna,
 
Que invadiu de Calvino a fúria averna.
 
VIII
 
Senta se ao régio lado a grã-princesa,
 
Formosa Lis, que do Arno florentino
 
Trouxe à França um tesouro de beleza,
 
E outro maior no engenho peregrino:
 
Formoso par, que a sábia natureza
 
Não sem instinto conjugou divino;
 
Por que, roubando Henrique a dura morte,
 
Sustente França Catarina a forte.
 
IX
 
Ao trono cristianíssimo prostrado,
 
A régia mão dos dois monarcas beija
 
O bom Diogo, tendo a esposa ao lado,
 
E faz que atenta toda a corte esteja;
 
E, havendo por três vezes humilhado,
 
A fronte aos reis, que respeitar deseja,
 
É fama que com gesto reverente
 
Falara deste modo ao rei potente:
 
X
 
"Tendes a vossos pés, Sire, invocando
 
No trono da grandeza a majestade,
 
Estes dois peregrinos, que, sulcando
 
Do poderoso mar a imensidade,
 
No império, que regeis com sábio mando,
 
Buscam asilo na real piedade;
 
E a vós e ao vosso reino se dirigem,
 
Donde tem Portugal o nome e a origem.
 
XI
 
O Brasil, Sire, infunde-me a confiança
 
Que ali renasça o português império,
 
Que, estendendo-se ao Cabo da Esperança,
 
Tem descoberto ao mundo outro hemisfério.
 
Tempo virá, se o vaticínio o alcança,
 
Que o cadente esplendor do nome hespério
 
O século, em que está, recobre de ouro,
 
E lhe cinja o Brasil mais nobre louro.
 
XII
 
E tu, que ao luso reino um germe augusto
 
No grão-Burgundo a propagar mandaste,
 
Contempla, ó França heróica, o império justo
 
Como ramo do teu, que ali plantaste;
 
E, se o inculto Brasil, se o Cafre adusto
 
Por teus famosos netos subjugaste,
 
Admite ao trono do Solar primeiro
 
Este teu não indigno aventureiro.
 
XIII
 
E esta, que ao lado meu teu cetro beija,
 
Princesa do Brasil, que um tempo fora,
 
No seio da cristã piedosa Igreja,
 
Como mãe pia regenera agora.
 
É bem que a mãe primeira o Brasil veja,
 
Donde a gente nasceu, que lhe é senhora;
 
E, quando Lusitânia lhe é rainha,
 
Tome o Brasil a França por madrinha."
 
XIV
 
Disse o herói generoso, e o rei potente,
 
Recordando os anais de antiga história,
 
Com vista majestosa, mas clemente,
 
Deu sinal de agradar-lhe esta memória.
 
Com sussurro entretanto a áulica gente
 
Celebra, como própria, a lusa glória;
 
E, impondo-lhe silêncio alto respeito,
 
Respondem com os olhos e co peito.
 
XV
 
Mongoméry, que serve na assembléia
 
De intérprete do rei, falou benigno,
 
Conforme na resposta à justa idéia,
 
De que o bom Diogo se mostrou tão digno,
 
Nem vendo a Lísia de conquistas cheia
 
Lhe inspira o impulso da ambição maligno,
 
A invejar-lhe já mais troféus tamanhos,
 
Que em prole sua não reputa estranhos.
 
XVI
 
"Ide, disse a rainha, ó par ditoso,
 
Que o banho santo, donde a culpa amara
 
Se apague nesse peito generoso,
 
Comigo a França apadrinhar prepara.
 
E, quando o sol seu curso luminoso
 
Três vezes repetir na esfera clara,
 
Será das nódoas do tartáreo abismo
 
Lavada a bela dama no batismo."
 
XVII
 
Era o dia em que é fama que o homem feito
 
De terra foi na estátua preciosa,
 
Em que Deus lhe infundira no seu peito
 
Do soberano ser cópia formosa.
 
Dia do nosso rito ao culto eleito
 
De Simão e Tadeu, quando formosa
 
Entrou Paraguassu com feliz sorte
 
No banho santo, rodeando-a a corte.
 
XVIII
 
À roda o real clero e grão-Jerarca
 
Forma em meio à capela a augusta linha;
 
Entre os pares seguia o bom monarca,
 
E ao lado da neófita a rainha.
 
Vê-se cópia de lumes nada parca,
 
E a turba imensa que das guardas vinha,
 
E, dando o nome a augusta à nobre dama,
 
Põe-lhe o seu próprio e Catarina a chama.
 
XIX
 
Banhada a formosíssima donzela
 
No santo Crisma, que os cristãos confirma,
 
Os desposórios na real capela
 
Com o valente Diogo amante firma.
 
Catarina Alves se nomeia a bela, (1)
 
De quem a glória no troféu se afirma,
 
Com que a Bahia, que lhe foi senhora,
 
Noutro tempo, a confessa, e fundadora.
 
XX
 
Prepara-se um banquete com grandeza,
 
Em que a cópia compita coa elegância,
 
E aos dois consortes se dispõe a mesa
 
No magnífico paço em régia estância.
 
Nem se dedigna a Soberana Alteza,
 
Depois de os regalar com abundância,
 
De dar rainha e rei, de ouvir curiosos,
 
Uma audiência privada aos dois esposos.
 
XXI
 
"Depois (disse o monarca) que informado
 
De meus ministros tenho a história ouvido,
 
Como foste das ondas agitado,
 
Como da gente bárbara temido,
 
Sabendo que os sertões tens visitado,
 
E o centro do Brasil reconhecido,
 
Quero das terras, dos viventes, plantas,
 
Que a história contes de províncias tantas."
 
XXII
 
"Mandas-me, rei augusto, que te exponha
 
(Diz cheio de respeito o herói prudente),
 
E aos olhos teus em um compêndio ponha
 
A história natural da oculta gente;
 
Se esperas de mim, Sire, que componha
 
Exata narração de cópia ingente,
 
Empresa tanta é, quando obedeça,
 
Que faz que o tempo falte e a voz faleça.
 
XXIII
 
Mil e cinqüenta e seis léguas de costa,
 
De vales e arvoredos revestida,
 
Tem a terra brasílica composta
 
De montes de grandeza desmedida.
 
Os Guararapes Borborema posta
 
Sobre as nuvens na cima recrescida,
 
A serra de Aimorés, que ao pólo é raia,
 
As de Ibo-ti-catu e Itatiaia.
 
XXIV
 
Nos vastos rios e altas alagoas
 
Alares dentro das terras representa;
 
Coberto o Grão-Pará de mil canoas,
 
Tem na espantosa foz léguas oitenta.
 
Por dezessete se deságua boas
 
O vasto Maranhão; léguas quarenta
 
O Jaguaribe dista; outro se engrossa
 
De S. Francisco, com que o mar se adoça.
 
XXV
 
O Sergipe, o real de licor puro,
 
Que com vinte o sertão regando correm,
 
Santa Cruz, que no porto entra seguro,
 
Depois de trinta, que no mar concorrem;
 
Logo o das Contas, o Taigipe impuro,
 
Que, abrindo a vasta foz, no oceano morrem.
 
O Rio Doce, a Cananéia, a Prata,
 
E outros cinqüenta mais, com que arremata.
 
XXVI
 
O mais rico e importante vegetável
 
É a doce cana, donde o açúcar brota,
 
Em pouco às nossas canas comparável;
 
Mas nas do milho proporção se nota:
 
Com manobra expedita e praticável,
 
Espremido em moenda, o suco bota,
 
Que acaso a antiguidade imaginava,
 
Quando o néctar e ambrósia celebrava.
 
XXVII
 
Outra planta de muitos desejada,
 
Por fragrância que o olfato ativa sente,
 
Erva santa dos nossos foi chamada,
 
Mas tabaco depois da espana gente,
 
Pelo franco Nicot manipulada,
 
Expele a bile, e o cérebro cadente
 
Socorre em modo tal, que em quem o tome
 
Parece o impulso de o tomar que é fome.
 
XXVIII
 
É sustento comum raiz presada,
 
Donde se extrai com arte útil farinha,
 
Que, saudável ao corpo, ao gosto agrada,
 
E por delícia dos Brasis se tinha.
 
Depois que em bolandeiras foi ralada, (2)
 
No Tapiti se espreme e se convinha;
 
Fazem a puba então e a tapioca,
 
Que é todo o mimo e flor da mandioca.
 
XXIX
 
Chama o agricultor raiz gostosa
 
Aipi por nome, e em gosto se parece
 
Com a mole castanha saborosa,
 
De que tira o país vário interesse,
 
Ótimo arroz em cópia prodigiosa
 
Sem cultura nos campos aparece,
 
No Pará, Cuiabá, por modo feito,
 
Que iguala na bondade o mais perfeito.
 
XXX
 
Ervilha, feijão, favas, milho e trigo,
 
Tudo a terra produz, se se transplanta;
 
Fruta também, o pomo, a pera, o figo
 
Com bífera colheita e em cópia tanta,
 
Que mais que no país que o dera antigo
 
No Brasil frutifica qualquer planta;
 
Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente
 
Os que a nós transplantamos de outra gente.
 
XXXI
 
Nas comestíveis ervas, é louvada
 
O quiabo, o jiló, os maxixeres,
 
A maniçoba peitoral presada,
 
A taioba agradável nos comeres,
 
O palmito de folha delicada,
 
E outras mil ervas, que, se usar quiseres,
 
Acharás na opulenta natureza
 
Sempre com mimo preparada a mesa.
 
XXXII
 
Sensível chama-se erva pudibunda,
 
Que, quando a mão chegando, alguém lhe ponha,
 
Parece que do tato se confunda
 
E que fuja o que o toca por vergonha.
 
Nem torna a si da confusão profunda,
 
Quando ausente o agressor se lhe não ponha,
 
Documento à alma casta, que lhe indica
 
Que quem cauta não foi nunca é pudica.
 
XXXIII
 
De ervas medicinais cópia tão rara
 
Tem no mato o Brasil e na campina,
 
Que quem toda a virtude lhe explorara
 
Por demais recorrera a Medicina.
 
Nasce a gelapa ali, a sene amara,
 
O filopódio, a malva, o pau da China,
 
A caroba, a capeba, e mil que agora
 
Conhece a bruta gente e a nossa ignora.
 
XXXIV
 
Tem mimosos legumes, que não cedem
 
Aos que usamos na Europa mais presados:
 
Gingibre, gergelim, que os mais excedem,
 
Mendubim, mangaló, que usam guisados;
 
Alguns medicinais, com que despedem
 
Do peito estilicídios radicados;
 
Tem o cará, o inhame, e em cópia grata
 
Mangarás, mangaritos e batata.
 
XXXV
 
Das flores naturais pelo ar brilhante
 
É com causa entre as mais rainha a rosa,
 
Branca saindo a aurora rutilante,
 
E ao meio-dia tinta em cor lustrosa;
 
Porém, crescendo a chama rutilante,
 
É purpúrea de tarde a cor formosa;
 
Maravilha que a Clície competira,
 
Vendo que muda a cor, quando o sol gira.
 
XXXVI
 
Outra engraçada flor, que em ramos pende
 
(Chamam de S. João), por bela passa
 
Mais que quantas o prado ali comprende,
 
Seja na bela cor, seja na graça:
 
Entre a copada rama, que se estende
 
Em vistosa aparência, a flor se enlaça
 
Dando a ver por diante e nas espaldas
 
Cachos de ouro com verdes esmeraldas.
 
XXXVII
 
Nem tu me esquecerás, flor admirada.
 
Em quem não sei se a graça, se a natura
 
Fez da Paixão do Redentor Sagrada
 
Uma formosa e natural pintura;
 
Pende com pomos mil sobre a latada,
 
Áureos na cor, redondos na figura,
 
O âmago fresco, doce e rubicundo,
 
Que o sangue indica que salvara o mundo.
 
XXXVIII
 
Com densa cópia a folha se derrama,
 
Que muito à vulgar hera é parecida,
 
Entressachando pela verde rama
 
Mil quadros da Paixão de Autor da vida;
 
Milagre natural, que a mente chama
 
Com impulsos da graça, que a convida,
 
A pintar sobre a flor aos nossos olhos
 
A cruz de Cristo, as chagas e os abrolhos.
 
XXXIX
 
É na forma redonda, qual diadema,
 
De pontas, como espinhos, rodeada,
 
A coluna no meio, e um claro emblema
 
Das chagas santas e da cruz sagrada;
 
Vêem-se os três cravos e na parte extrema
 
Com arte a cruel lança figurada;
 
A cor é branca, mas de um roxo exangue,
 
Salpicada recorda o pio sangue.
 
XL
 
Prodígio raro, estranha maravilha,
 
Com que tanto mistério se retrata!
 
Onde em meio das trevas a fé brilha,
 
Que tanto desconhece a gente ingrata!
 
Assim, do lado seu nascendo filha
 
A humana espécie, Deus piedoso trata,
 
E faz que quando a graça em si despreza,
 
Lhe pregue co esta flor a natureza.
 
XLI
 
Outras flores suaves e admiráveis
 
Bordam com vária cor campinas belas,
 
E em vária multidão por agradáveis
 
A vista encantam, transportada em vê-las;
 
Jasmins vermelhos há, que inumeráveis
 
Cobrem paredes, tetos e janelas;
 
E, sendo por miúdos mal distintos,
 
Entretecem purpúreos labirintos.
 
XLII
 
As açucenas são talvez fragrantes,
 
Como as nossas na folha organizadas;
 
Algumas no candor lustram brilhantes,
 
Outras na cor reluzem nacaradas.
 
Os bredos namorados rutilantes,
 
As flores de courana celebradas,
 
E outras sem conto pelo prado imenso,
 
Que deixam quem as vê como suspenso.
 
XLIII
 
Das frutas do país a mais louvada
 
É o régio ananás, fruta tão boa,
 
Que a mesma natureza namorada
 
Quis como a rei cingi-la da coroa.
 
Tão grato cheiro dá, que uma talhada
 
Surprende o olfato de qualquer pessoa;
 
Que, a não ter do ananás distinto aviso,
 
Fragrância a cuidará do Paraíso.
 
XLIV
 
As fragrantes pitombas delicadas
 
São como gemas de ovos na figura;
 
As pitangas com cores golpeadas
 
Dão refrigério na febril secura;
 
As formosas goiabas nacaradas,
 
As bananas famosas na doçura,
 
Fruta, que em cachos pende e cuida a gente
 
Que fora o figo da cruel serpente.
 
XLV
 
Distingue-se entre as mais na forma e gosto
 
Pendente de alto ramo o coco duro,
 
Que em grande casca no exterior composto,
 
Enche o vaso interior de um licor puro;
 
Licor que, à competência sendo posto,
 
Do antigo néctar fora o nome escuro;
 
Dentro tem carne branca como a amêndoa,
 
Que a alguns enfermos foi vital, comendo-a.
 
XLVI
 
Não são menos que as outras saborosas
 
As várias frutas do Brasil campestres:
 
Com gala de ouro e púrpura vistosas,
 
Brilha a mangaba e os mocuiés silvestres;
 
Os mamões, morieis, e outras famosas,
 
De que os rudes cabelos foram mestres,
 
Que ensinaram os nomes, que, se estilam,
 
Janipo e caju vinhos distilam.
 
XLVII
 
Nas preciosas árvores se conta
 
O cacau, droga em Espanha tão comua,
 
Pouco na altura mais que arbusto monta,
 
E rende novo fruto em cada lua;
 
A baunilha nos cipós desponta,
 
Que tem no chocolate a parte sua,
 
Nasce em bainhas, como paus de lacre,
 
De um suco oleoso, grato o cheiro e acre.
 
XLVIII
 
Ótimo anil de planta pequenina
 
Entre as brenhas incultas se recolhe;
 
Tece-se a roupa do algodão mais fina,
 
Que em cópia abundantíssima se colhe;
 
Que, se a abundância à indústria se combina,
 
Cessando a inércia, que mil lucros tolhe,
 
Houvera no algodão, que ali se topa,
 
Roupa com que vestir-se toda a Europa.
 
XLIX
 
O uruçu, fruta de árvore pequena,
 
Como lima, em pirâmide elevada,
 
De que um extrato a diligência ordena,
 
Que a escarlata produz mais nacarada;
 
De imortal tronco a tarajaba amena
 
Rende a áurea cor dos belgas desejada,
 
O pau brasil, de que o engenhoso norte
 
Costuma extrair cor de toda a sorte.
 
L
 
Há de bálsamos árvores copadas,
 
Que por léguas e léguas se dilatam;
 
Folhas cinzentas, como a murta, obradas,
 
E em grato aroma os troncos se desatam,
 
Se neles pelas luas são sangradas;
 
E uso vário fazendo os que contratam,
 
Lavram remédios mil e obras lustrosas,
 
Contas de cheiro e caixas preciosas.
 
LI
 
A copaíba em curas aplaudida,
 
Que a médica ciência estima tanto,
 
A bicuíba no óleo conhecida,
 
A almécega, que se usa no quebranto;
 
A preciosa madeira apetecida,
 
Que o nome nos merece de pau-santo,
 
O salsafraz cheiroso, de que as praças
 
Se vêem cobertas com formosas taças.
 
LII
 
Quais ricas vegetáveis ametistas,
 
As águas do violete em vária casta,
 
O áureo pequiá com claras vistas,
 
Que noutros lenhos por matiz se engasta;
 
O vinhático pau, que quando avistas
 
Massa de ouro parece extensa e vasta;
 
O duro pau que ao ferro competira,
 
O angelim, tataipeva, o supopira.
 
LIII
 
Troncos vários em cor e qualidade,
 
Que inteiriças nos fazem as canoas,
 
Dando a grossura tal capacidade,
 
Que andam remos quarenta e cem pessoas.
 
E há por todo o Brasil em quantidade
 
Madeiras para fábricas tão boas,
 
Que, trazendo-as ao mar por vastos rios,
 
Pode encher toda a Europa de navios.
 
LIV
 
Nutre a vasta região raros viventes
 
Em número sem conta e em natureza
 
Dos nossos animais tão diferentes,
 
Que enchem a vista da maior surpresa.
 
Os que têm mais comuns as nossas gentes
 
Ignora esta porção de redondeza:
 
O boi, cavalo, a ovelha, a cabra e o cão;
 
Mas, levados ali, sem conta são.
 
LV
 
Todo o animal é fero ali, levado
 
Donde tinha o seu pasto competente;
 
Nem era lugar próprio ao nosso gado,
 
Que fora o bruto manso e fera a gente.
 
Como entre nós é o tigre arrebatado,
 
Cruel a onça, o javali fremente,
 
Feras as antas são americanas,
 
E próprias do Brasil as suraranas.
 
LVI
 
Vêem-se cobras terríveis, monstruosas,
 
Que afugentam coa vista a gente fraca;
 
As jibóias, que cingem volumosas
 
Na cauda um touro, quando o dente o ataca;
 
Voa entre outras com forças horrorosas,
 
Batendo a aguda cauda a jararaca,
 
Com veneno, a quem fere tão presente,
 
Que logo em convulsão morrer se sente.
 
LVII
 
Entre outros bichos de que o bosque abunda,
 
Vê-se o espelho da gente, que é remissa,
 
No animal torpe de figura imunda,
 
A que o nome pusemos da preguiça:
 
Mostra no aspecto a lentidão profunda,
 
E, quando mais se bate e mais se atiça,
 
Conserva o tardo impulso por tal modo,
 
Que em poucos passos mete um dia todo.
 
LVIII
 
Vê-se o cameleão, que não se observa
 
Que tenha, como os mais, por alimento
 
Ou folha, ou fruto, ou nota carne, ou erva,
 
Donde a plebe afirmou que pasta em vento;
 
Mas sendo certo que o ambiente ferva
 
De infinitos insetos, por sustento
 
Creio bem que se nutra na campanha
 
De quantos deles, respirando, apanha.
 
LIX
 
Gira o sareué, como pirata,
 
Da criação doméstica inimigo;
 
À canção da guariba sempre ingrata
 
Responde o guassinim, que o segue amigo.
 
Da vária caça, que o cabelo mata,
 
A narração por longa não prossigo,
 
Veados, capivaras e coatias,
 
Pacas, teus, periás, tatus, cotias.
 
LX
 
O mono, que a espessura habita astuto,
 
De um ramo noutro buliçoso salta,
 
E para não se crer que nasceu bruto,
 
Parece que o falar somente falta;
 
O riso imita, e contrafaz o luto,
 
E a tanto sobre os mais o instinto exalta,
 
Que onde a espécie brutal chegar lhe veda
 
Tem arte natural com que o arremeda.
 
LXI
 
Entre as voláteis caças mais mimosa,
 
A zabelé, que os francolins imita.
 
É de carne suave e deliciosa,
 
Que ao tapuia voraz a gula incita.
 
Logo a enha-popé, carne preciosa,
 
De que a titela mais o gosto irrita;
 
Pombas verás também nesses países,
 
Que em sabor, forma e gosto são perdizes.
 
LXII
 
Juritis, pararis, tenras e gordas,
 
A hiraponga no gosto regalada,
 
As marrecas, que ao rio enchem as bordas,
 
As jacutingas, e a aracã presada.
 
E, se do lago na ribeira abordas
 
De galeirões e patos habitada,
 
Verás, correndo as águas na canoa,
 
A turba aquátil que, nadando, voa.
 
LXIII
 
Negou às aves do ar a natureza,
 
Na maior parte a música harmonia;
 
Mas compensa-se a vista na beleza
 
Do que pode faltar na melodia:
 
A pena no tucano mais se presa,
 
Que feita de ouro fino se diria,
 
Os guarazes pelo ostro tão luzidos,
 
Que parecem de púrpura vestidos.
 
LXIV
 
Vão pelo ar loquazes papagaios,
 
Como nuvens voando em copia ingente,
 
Iguais na formosura aos verdes Maios,
 
Proferindo palavras como a gente.
 
Os periquitos com iguais ensaios.
 
O canindé, qual Íris reluzente;
 
Mas falam menos, da pronúncia avaras,
 
Gritando, as formosíssimas araras .
 
LXV
 
Como melros, são negros os bicudos,
 
Mais destros e agradáveis no seu canto;
 
Na terra os sabiás sempre são mudos,
 
Mas junto d'água têm a voz que encanto.
 
Os coleirinhos no entoar agudos,
 
As patativas, que o saudoso pranto
 
Imitam requebrando com sons vários,
 
Os colibris e harmônicos canários.
 
LXVI
 
Das espécies marítimas de preço
 
Temos pérolas nestas preciosas;
 
Nem melhores aljôfares conheço
 
Que os das ostras brasílicas famosas;
 
Âmbar gris do melhor, mais denso e espesso,
 
Nas costas do Ceará se vê espaçosas,
 
Madrepérolas, conchas delicadas,
 
Umas parecem de ouro, outras prateadas.
 
LXVII
 
Piscoso o mar de peixes mais mimosos,
 
Entre nós conhecidos rico abunda,
 
Linguados, sáveis, meros preciosos,
 
A agulha, de que o mar todo se inunda,
 
Robalos, salmonetes deliciosos,
 
O xerne, o voador, que na água afunda,
 
Pescadas, galo, arraias, e tainhas,
 
Carapaus, encharrocos e sardinhas.
 
LXVIII
 
Outros peixes, que próprios são do clima,
 
Berupiras, vermelhos, e o garopa,
 
Pâmpanos, corimas, que o vulgo estima,
 
Os dourados, que presa a nossa Europa,
 
Carepebas, parus, nem desestima
 
A grande cópia, que nos mares topa,
 
A multidão vulgar do charéu vasto,
 
Que às pobres gentes subministra o pasto.
 
LXIX
 
De junho a outubro para o mar se alarga,
 
Qual gigante marítimo, a baleia,
 
Que palmos vinte seis conta de larga,
 
Setenta de comprido, horrenda e feia;
 
Oprime as águas com a horrível carga,
 
E de oleosa gordura em roda cheia,
 
Convida o pescador que ao mar se deite,
 
Por fazer, derretendo-a, útil azeite.
 
LXX
 
Tem por espinhas ossos desmarcados,
 
O ferro as duras peles representam,
 
Donde pendem mil buzios apegados,
 
Que de quanto lhe chupam se sustentam;
 
Não parecem da fronte separados
 
Os vastos corpos que na areia assentam.
 
Entre os olhos medonhos se ergue a tromba,
 
Que ondas vomita como aquátil bomba.
 
LXXI
 
Na boca horrível, como vasta gruta,
 
Doze palmos comprida a língua pende.
 
Sem dentes, mas da boca imensa e bruta
 
Barbatanas quarenta ao longo estende.
 
Com elas para o estomago transmuta
 
Quanto por alimento nágua prende,
 
O peixe ou talvez carne, e do elemento
 
A fez imunda, que lhe dá sustento.
 
LXXII
 
Duas asas nos ombros tem por braços,
 
Que aos lados vinte palmos se difundem,
 
Com asa e cauda os líquidos espaços
 
Batendo remam, quando o mar confundem;
 
E excitando no pélago fracassos,
 
Chorros de água nas naus de longe infundem.
 
E, andando o monstro sobre o mar boiante,
 
Crê que é ilha o inexperto navegante.
 
LXXIII
 
Brilha o materno amor no monstro horrendo,
 
Que, vendo prevenida a gente armada,
 
Matar se deixa nágua combatendo,
 
Por dar fuga, morrendo, à prole amada.
 
Onde no filho o arpão caçam metendo,
 
Com que atraindo a mãe dentro à enseada
 
Desde a longa canoa se alenceia,
 
Ao lado de seus filho a baleia.
 
LXXIV
 
Sobre a costa o marisco apetecido
 
No arrecife se colhe e nas ribeiras,
 
As lagostas, e o polvo retorcido,
 
Os lagostins, santolas, sapateiras,
 
Ostras famosas, camarão crescido,
 
Caranguejos também de mil maneiras,
 
Por entre os mangues, donde o tino perde
 
A humana vista em labirinto verde."
 
(1) Troféu. — Alude-se à imagem de Catarina Álvares, pintada sobre a casa da pólvora na Bahia.
 
(2) Bolandeiras e Tapitis. — Instrumento com que se fabrica a farinha de mandioca. Puba (ou fubá) é a flor da mesma farinha.
 
 
CANTO VIII
 
I
 
Três vezes tinha o sol no giro oblíquo
 
A carreira dos trópicos voltado,
 
E três de Europa pelo clima aprico
 
Tinha as plantas o Abril ressuscitado,
 
Depois que do Brasil se tinha rico
 
À França o nobre Diogo transportado,
 
Buscando nas viagens meio e lume
 
Com que reforme o bárbaro costume.
 
II
 
Mas da mísera gente na lembrança,
 
Que lhe excita da esposa a cara imagem,
 
Meditava deixar a amiga França,
 
Repetindo a brasílica viagem.
 
Na generosa empresa não descansa
 
De instruir a rudeza do selvagem,
 
E cuida com razão que é humanidade
 
Amansar-lhe a cruel barbaridade.
 
III
 
Enquanto nau e embarque negoceia,
 
Do amigo Du-Plessis solicitado,
 
Foi-lhe do rei francês proposta a idéia
 
De erguer as lizes no país buscado.
 
Terás (lhe disse, e é fácil que se creia,
 
Que lho dizia do seu rei mandado),
 
Terás da França auxílio e tropa imensa,
 
E, maior que o serviço, a recompensa.
 
IV
 
Que, se o empenho te ocupa generoso,
 
De amansar do gentio a mente impia,
 
Trazendo a França um povo numeroso,
 
Melhor se amansará na companhia.
 
Que engano fora à Europa pernicioso,
 
Quando colônias derramando envia,
 
Extinguir sem remédio a infeliz gente,
 
E despovoar-se com a tropa ausente.
 
V
 
Desta arte Roma o império seu fazia,
 
Que, as colônias pelo orbe derramando,
 
Do país conquistado outras unia,
 
Com que ia a falta própria reparando.
 
Num século, que o bárbaro vivia,
 
Na grã-Roma romano ia ficando,
 
E, neste arbítrio de pensar profundo,
 
Foi mundo Roma e foi romano o mundo.
 
VI
 
Este meio, portanto, eu te sugiro, (1)
 
Que se a tua prudência hoje executa,
 
Verás em pouco tempo, como aspiro,
 
Francesa pelo trato a gente bruta.
 
Vive sempre brutal no seu retiro
 
Quem ninguém comunica e nada escuta,
 
Nem o selvagem tirarás da toca,
 
Se outro país não trata e o seu não troca.
 
VII
 
E entanto que o terreno nosso habita,
 
Transmigrada a infeliz gentilidade,
 
A gente, que perdemos infinita,
 
Suprirá com comua utilidade.
 
Assim a agricultura mais se excita,
 
Cresce a plebe no campo e na cidade,
 
E a turba inerte, que corrompe a terra,
 
Ou se deixa emendada, ou se desterra."
 
VIII
 
Disse o francês prudente, e o nobre Diogo,
 
Leal à amada pátria, respondendo,
 
"Sábio projeto dás (replicou logo)
 
Sobre a população; nada o contendo.
 
Mas não posso convir no exposto rogo,
 
Sendo fiel ao rei, português sendo,
 
Quando o luso monarca julgo certo
 
Senhor de quanto deixa descoberto.
 
IX
 
Vivendo ex lege um povo na anarquia,
 
Tem direito o vizinho a sujeitá-lo,
 
Que a natureza mesma inspiraria
 
Ao que fosse mais próximo a amansá-lo.
 
Deixo que o céu parece que o queria, (2)
 
Dando a Cabral o instinto de buscá-lo,
 
E o ser em caso tal comum conceito,
 
Que quem primeiro o ocupa tem direito.
 
X
 
E, sem que ofenda a França a minha escusa,
 
É bem que esta conquista a Lísia faça;
 
Mas, enquanto a Bahia o não recusa,
 
Ser-vos-á no comércio a melhor praça.
 
Cópia de drogas achareis profusa,
 
E o lenho precioso ali de graça;
 
E, durando eu na pátria obediença,
 
Serei francês na obrigação e agência."
 
XI
 
Admirou Du Plessis no peito nobre
 
O generoso ardor e o pátrio zelo,
 
Que a ilustre condição no obrar descobre
 
Novo motivo para mais querê-lo;
 
Sem mais receio que o contrário ele obre,
 
Na nova expedição quer sócio tê-lo.
 
Mas, antes de embarcar-se, o herói prudente
 
Avisa o luso rei da empresa ingente.
 
XII
 
Já pelo salso oceano navega
 
A franca nau, e o Cabo se divisa
 
Donde a Europa no oceano ao termo
 
Tido do antigo nauta por baliza.
 
A terra ali se vê que o Minho rega,
 
Correndo a costa da feliz Galiza;
 
E o rumo então seguido do ocidente
 
Ao meio-dia se navega ardente.
 
XIII
 
Não longe do equador, o mar cortava,
 
Quando Paraguassu, já Catarina,
 
Como era seu costume, atenta orava,
 
Implorando o favor da Mão Divina;
 
E eis que à vista da turba, que a observava,
 
Enquanto adora a majestade trina,
 
Em sono fica suspendida e absorta,
 
E algum cuida que dorme, outro que é morta.
 
XIV
 
Brilha no aspecto um ar do afeto interno;
 
Mas, em funda abstração com doce calma,
 
Bem se lhe vê pelo semblante externo
 
Que ocupa em grande objeto a feliz alma.
 
Vê-se nela arraiar do lume eterno,
 
Que no céu goza quem já logra a palma,
 
Admirável vislumbre, que suspende
 
E infunde um pio afeto em quem o atende.
 
XV
 
Assim por longas horas abstraída
 
Deixava o caro esposo na ansiedade,
 
Se era sono, em que estava suspendida,
 
Se era efeito da cruel enfermidade;
 
Ora suspeita que perigue a vida,
 
Ora na celestial tranqüilidade,
 
Crê que do claro empíreo habitadora
 
Imortal sobre o céu reinando mora.
 
XVI
 
Até que, a si tornada docemente,
 
Corre a turba coa vista em grato giro;
 
E, como quem esta aura ingrata sente,
 
Rompe os longos silêncios dum suspiro.
 
"Oh! doce (disse), oh! pátria permanente!
 
Que escuro ar parece que respiro!
 
Feliz quem contemplando o céu formoso,
 
Vive no seio do celeste esposo!"
 
XVII
 
Pasmado Diogo e a multidão que a ouvia,
 
Calam todos no assombro de admirados:
 
Nem já duvidam que visão seria
 
Em que ouvira os mistérios revelados.
 
"Quando ocultos segredos Deus confia,
 
Não devem ser (diz Diogo) propalados;
 
Mas, se em parte, como este, é manifesto,
 
Temerário não sou, se inquiro o resto.
 
XVIII
 
Narra-nos, feliz alma, a visão bela!
 
Quem sabe se por ti nos manda aviso
 
A Providência, que ao governo vela,
 
Do mortal nos seus fins sempre indeciso!
 
Não nos cales entanto o que revela
 
Por nosso lume, o excelso Paraíso,
 
E a nossos rogos com memória pronta,
 
Dizendo quanto viste, tudo conta."
 
XIX
 
Calaram todos com ouvido atento,
 
Pendendo da expressão de Catarina;
 
E, tomando na popa em roda assento,
 
Dão-lho sobre um canhão, que ao bordo inclina.
 
"Mandais-me (a dama disse) que o portento
 
Haja de expor-vos da impressão divina:
 
Quem poderá contar coisa tão alta,
 
Quando o lume cessou, a ciência falta?
 
XX
 
Nem inculco em meu sonho um sacro instinto,
 
Que tudo fingir pode a fantasia;
 
Porque a imagem talvez, que n'alma pinto,
 
Por força natural se fingiria.
 
Pode ser, se pressaga a idéia sinto,
 
Que, sem extraordinária profecia,
 
Anteveja o sucesso, o tempo e o prazo,
 
E depois não suceda, ou seja acaso.
 
XXI
 
Vi, não sei se era impulso imaginário,
 
Um globo de diamante claro e imenso
 
E nos seus fundos figurar-se vário
 
Um país opulento, rico e extenso;
 
E, aplicando o cuidado necessário,
 
Em nada do meu próprio o diferenço:
 
Era o áureo Brasil tão vasto e fundo,
 
Que parecia no diamante um mundo.
 
XXII
 
Fixo os olhos atenta no estupendo
 
Milagroso espetáculo que via,
 
E em três léguas de boca vi correndo
 
Por doze de diâmetro a Bahia.
 
Seis rios pelo golfo discorrendo,
 
Engenhos, povoações que descobria,
 
Eram como ornamentos da cidade,
 
De que se ergue no plano a majestade.
 
XXIII
 
Parecia em seis bairros dividida,
 
Com duas praças de extensão formosa,
 
Fortaleza ali vi na barra erguida,
 
Outra a parte de terra majestosa;
 
A enseada por oito defendida,
 
E outra em Taparica poderosa;
 
Duas casas de pólvora e na entrada
 
Vi-me a mim de uma delas retratada.
 
XXIV
 
Dentro a um templo magnífico se via
 
De seus prelados turma numerosa,
 
De que um às mãos dos bárbaros morria,
 
Outro a espada cingia valorosa.
 
Muitos da alta virtude os matos via,
 
Com caridade discorrer zelosa,
 
Sem poupar tempo, estudo, ou vida, ou gasto,
 
Por propagar a fé no sertão vasto.
 
XXV
 
No grão-palácio em tintas retratados
 
Os que o governo do Brasil tiveram,
 
Os Sousas na Bahia decantados,
 
Os nobres Costas, que depois vieram;
 
Mas entre outros na guerra celebrados,
 
Por troféus que vencendo mereceram,
 
Mendo de Sá de gloriosa fama,
 
Que pai da pátria no Brasil se aclama.
 
XXVI
 
Deste era prole o intrépido Fernando,
 
Que ali vi fulminando a forte espada,
 
E contra a feroz gente pelejando,
 
Deixou a morte com valor vingada.
 
Mas, da Bahia os olhos levantando,
 
Vi discorrer no mar potente armada,
 
Que, as ilhas ocupando e a vasta terra,
 
Movia no Brasil funesta guerra.
 
XXVII
 
Parecia-me a frota belicosa
 
Francesa gente, que o Brasil tentava
 
Pedro Lopes de Sousa em furiosa
 
Naval batalha o mar lhe contestava;
 
Noutra ação com esquadra numerosa
 
Luís de Melo e Silva pelejava;
 
Cristóvão Jacques, que este mar corria,
 
Dois navios lhe afunda na Bahia.
 
XXVIII
 
Era de França, sim, a adversa gente;
 
Mas por culto inimigo ao rei contrária,
 
E ao rito Calvinístico aderente,
 
Enviava ao Brasil tropa adversária.
 
E, protegida da facção potente
 
Com as forças e armada necessária,
 
Queriam para a infanda cerimônia
 
Fabricar a Calvino uma colônia.
 
XXIX
 
Cavalheiro de Malta e franco nobre
 
Era Villegaignon de forte peito
 
Soldado antigo, que o valor descobre,
 
E entre os huguenotes do maior respeito.
 
De mil promessas o partido cobre,
 
Havendo-o a empresa do Brasil eleito;
 
E, abonada de um chefe de esperança,
 
Dá-lhe a mão a heresia em toda a França.
 
XXX
 
Este vi navegando a Cabo Frio,
 
Seguido de outras naus a forte empresa;
 
E que, tratando afável co gentio,
 
Explorava do sítio a natureza;
 
Mostrava aos naturais animo pio;
 
E argüindo-lhe a gente portuguesa,
 
Induz a nação bruta a que lhe assista
 
Na empresa do comércio e da conquista.
 
XXXI
 
Voltou a França o Cabo diligente,
 
Tendo de ricas drogas carregado,
 
E, convocando às naus armada gente,
 
Torna de turba ingente acompanhado.
 
Nem tarda do sertão cópia potente
 
De um povo, que, nas armas aliado,
 
Por amigo estimava mais sincero,
 
Menos inculto sim, porém mais fero.
 
XXXII
 
Ali Villegaignon, que o troço aloja,
 
Às gentes do sertão se confedera,
 
E toda a costa a dominar se arroja,
 
De onde os nossos expulsar já espera.
 
De seu comércio o português despoja
 
Na fértil Paraíba, em que útil era;
 
Nem há na costa do Brasil enseada
 
Que o huguenote não tenha bloqueada.
 
XXXIII
 
Mendo de Sá, que adverte no perigo
 
Três naus que em guerra cuidadoso armara,
 
Com oito de comércio tem consigo,
 
Além das que em socorro convocara;
 
E por ter força igual às do inimigo,
 
Sobre longas canoas, que ajuntara,
 
Guia contra os tamoios prepotentes,
 
Do bravo Carijó turmas valentes.
 
XXXIV
 
Nhighe-teroi se chama a vasta enseada,
 
Que estreita boca, como barra encerra,
 
Fechando em vasto porto à grande armada,
 
Um lago, que em redondo cinge a terra.
 
Vê-se ilha penhascosa sobre a entrada,
 
Com fortaleza, que, disposta em guerra,
 
Por boca dos canhões rumor fazendo,
 
Fechava a barra ao valoroso Mendo.
 
XXXV
 
Era a ilha de rochas guarnecida,
 
Que em torno tem por natural muralha,
 
Donde a força das balas rebatida,
 
Faz inútil dos lusos a batalha.
 
Três dias foi dos nossos combatida,
 
Sem que o fogo incessante aos nossos valha,
 
Até que, fatigado o invicto Mendo,
 
Invade à escala vista o forte horrendo.
 
XXXVI
 
Entre as frechas e balas destemido
 
Na penha o português trepando, salta,
 
E, deixando o Francês esmorecido,
 
Degola, mata, fere, invade e assalta.
 
Nem do antigo valor cede esquecido
 
O francês animoso, até que, falta
 
De sangue a brava gente na contenda,
 
Faz a perda e cansaço que a ilha renda.
 
XXXVII
 
Nem mais demora teve o invicto Mendo
 
Ao ver a gente adversa dissipada,
 
E, a excelsa fortaleza desfazendo,
 
A costa visitou na forte armada.
 
E tudo ao nome seu sujeito havendo,
 
A Bahia tornou, que, iluminada,
 
Entre o som do clarim e alegre trompa,
 
Em triunfo a Mendo recebeu com pompa.
 
XXXVIII
 
Mas a facção do hugnote, enfurecida,
 
Villegaignon potente ao Brasil manda,
 
Que, a ilha recobrando já perdida,
 
Guerra intenta fazer por toda banda.
 
Vê-se a nossa marinha combatida,
 
E a forte esquadra, que o francês comanda,
 
Dominante no oceano por modo
 
Que impedia o comércio ao Brasil todo.
 
XXXIX
 
Mais não tolera a lusa monarquia,
 
Que, ao rei cristianíssimo aderente,
 
Contra a rebelde, herética porfia,
 
Armada põe na América potente.
 
Chefe Estácio de Sá prudente envia,
 
De válidos galeões com forte gente,
 
Que, o herege expulsando da enseada,
 
Deixe nova cidade ali fundada.
 
XL
 
Obsequioso abraçava o claro Mendo
 
O valoroso chefe seu conjunto,
 
As forças de Bahia unido tendo
 
As que trouxera sobre o mesmo assunto;
 
Contra os esforços do tamoio horrendo
 
Acomete o rebelde em liga junto,
 
Incorporando à armada lusitana
 
Vasto esquadrão da turba americana.
 
XLI
 
Chama-se Pão de Açúcar o penedo,
 
Em pirâmide as nuvens levantado,
 
Onde de um salto tinha já sem medo
 
A turba militar desembarcado.
 
Nadava pelo mar vasto arvoredo
 
Do gentio em canoas habitado;
 
E do ardente francês luzida tropa,
 
Que hábil na arte de guerra fez a Europa.
 
XLII
 
Destes o luso campo acometido
 
De dardos, frechas, balas se embaraça,
 
Em sombra o seio todo escurecido,
 
As naus ocultam nuvens de fumaça;
 
E ao eco dos canhões entre o ruído,
 
Tudo está cego e surdo em campo e praça;
 
E no horrível relâmpago das peças
 
Caem por terra os bustos sem cabeças.
 
XLIII
 
Voam as naus de chamas ocupadas,
 
Enchendo a enseada do infernal estrondo,
 
As canoas dos nossos abordadas,
 
E os galeões, que em linha se vão pondo.
 
Os golpes, que retinem das espadas,
 
O golfo, que arde em chamas em redondo,
 
Eram na terra e mar em sangue tinto
 
Um abismo, um inferno, um labirinto.
 
XLIV
 
Depois que largo tempo em márcio jogo
 
Dura a batalha com comum perigo,
 
Cessando o impulso do contrário fogo,
 
Todo o estrago aparece do inimigo:
 
Tinha cedido da contenda logo
 
Receoso o tamoio do castigo;
 
E os franceses, que as naus mal sustentavam,
 
Entre as penhas o asilo procuravam.
 
XLV
 
Não cessa o bravo Sá contra o gentio,
 
E a forte tropa pelo mato avança;
 
Porque, batendo o orgulho e insano brio,
 
Se apartasse o sertão da infame aliança,
 
Nem receia o tamoio o desafio,
 
Tendo no seu valor tanta confiança,
 
Que, fugindo da aldeia ao mato e gruta,
 
A liberdade ao português disputa.
 
XLVI
 
Era áspero o combate e lenta a guerra,
 
E sem efeito o assédio ao francês posto
 
E o bárbaro, embrenhado dentro a terra,
 
Tinha emboscada ao português disposto.
 
Mendo, que n'alma o grão cuidado encerra,
 
Tendo de Estácio socorrer proposto,
 
Paz levas, busca naus e a gente incita,
 
E em auxilio dos seus partir medita.
 
XLVII
 
Já dobra o frio Cabo a esquadra ingente,
 
E à vista do penhasco lança a amarra..
 
Pasma o rebelde, vendo a armada à frente
 
Ocupar numerosa a estreita barra.
 
Une-se a frota ali da lusa gente,
 
E os mútuos casos vanglorioso narra
 
Irmão à irmã e o filho ao pai, festivo
 
Por ter chegado são e achá-lo vivo.
 
XLVIII
 
Chega aos braços de Estácio o forte Mendo,
 
E por festiva salva estrepitosa
 
Faz que vomite o bronze o fogo horrendo
 
Contra a ilha, que avistam penhascosa;
 
E, largamente consultado havendo
 
Os dois chefes da empresa gloriosa,
 
Contra o penedo tentam no mais alto,
 
A peito descoberto, um fero assalto.
 
XLIX
 
Vêem-se entre as penhas formidáveis bocas
 
De canhões e mosquetes trovejando,
 
E nas quebradas espantosas rocas
 
Do bárbaro tamoio o imenso bando.
 
Muitos ali das ásperas barrocas
 
Vão os nossos fuzis precipitando,
 
Outros da rota penha em meio às gretas,
 
Cobriam contra nós todo o ar de setas.
 
L
 
Não cessava o rebelde belicoso
 
Com vivo fogo o assalto rebatendo,
 
Enquanto sobe o Luso valoroso,
 
Trepando em fúria no penedo horrendo.
 
Quem no meio do impulso impetuoso,
 
Cai na ruína o próximo envolvendo;
 
Quem, ferido da frecha, ou veloz bala,
 
Do mais alto da penha ao mar resvala.
 
LI
 
Todo o penhasco em fogo se fundia,
 
Enquanto o mar em roda em chamas ferve
 
Entre fracasso e fumo que saía,
 
De nada o ouvido vale e a vista serve.
 
A terra toda em roda estremecia;
 
E sem que a água do incêndio se preserve,
 
Parecia ferver do fogo insano,
 
Escondendo a cabeça o Padre Oceano.
 
LII
 
Qual do Vesúvio a boca pavorosa,
 
Quando rios de fogo ao mar derrama,
 
Arroja ao ar com fúria impetuosa
 
Parte do vasto monte envolta em chama;
 
A cinza cobre o céu caliginosa,
 
Muge o chão, treme a terra, o pego brama,
 
E o mortal, espantado e tremebundo,
 
Crê que o céu caia e que se funda o mundo.
 
LIII
 
Tal Villegagnon na penha dura,
 
Do horrífico trovão freme a tormenta,
 
E a chama entre a fumaça horrenda escura
 
Do infernal lago; as furnas representa.
 
Porem do próprio fumo na espessura,
 
Apontaria, que rebelde intenta.
 
Evita o português, que ataca, incerto,
 
A escala vista e a peito descoberto.
 
LIV
 
E já no grão-penedo tremulavam
 
As lusas quinas pelo forte Estácio,
 
E as lizes do penhasco se arrancavam,
 
Donde a Villegaignon se ergue um palácio.
 
Pela roca os tamoios se arrojavam,
 
E o valor luso dando inveja ao Lácio,
 
A guarnição francesa investe à espada,
 
E obriga em duro choque à retirada.
 
LV
 
O valente francês, que a bélica arte
 
Já com valor na Europa professara,
 
O peito à fuga opõe por toda a parte;
 
E, vendo Estácio só junto ao estandarte,
 
Que por chefe lusos se declara,
 
Cuida de um golpe terminar a empresa
 
No general da gente a portuguesa.
 
LVI
 
Não desfalece o capitão valente;
 
E, de um e de outro lado acometido,
 
Rebate as balas sobre o escudo ingente,
 
E arroja-se ao rebelde enfurecido.
 
Lebrum despoja do mosquete ardente,
 
Com que muitos de um golpe tem ferido,
 
Outros do íngreme posto ao mar despenha,
 
E alguns expulsa da soberba penha.
 
LVII
 
E já fugia a tímida caterva,
 
Quando Rochefoucauld, que a pugna iguala,
 
Donde a viseira descoberta observa,
 
Lhe aponta desde longe ardente bala.
 
Caindo o herói, na espada, que conserva,
 
Adora humilde a cruz, e perde a fala.
 
Banha-se em sangue o chão, e em tanta glória
 
Regada a terra produzia vitória.
 
LVIII
 
Porque, enquanto em segui-lo divertido,
 
Abandona o francês a fortaleza,
 
Tinha parte do exército subido,
 
A dar fim com vitória à forte empresa.
 
Admira Mendo o braço esclarecido,
 
E, bem que do sobrinho o valor presa,
 
No juvenil ardor notou magoado
 
O tomar chefe as partes de soldado.
 
LIX
 
"A pátria (o nobre Sá diz lagrimando)
 
Vitima irás da fé, da liberdade,
 
Vigor no sangue heróico à terra dando,
 
Donde se erga imortal nova cidade.
 
O caso acerbo aos pósteros contando,
 
Tenham seus cidadãos da heroicidade
 
Cara lição no fundador primeiro,
 
Glória eterna do Rio de Janeiro."
 
LX
 
Tal nome deu á enseada no recordo
 
Do mês que ilustre foi por acaso tanto,
 
E a cidade deixou com justo acordo
 
A clara invocação de um mártir santo.
 
E, havendo as tropas recolhido a bordo,
 
Descansadas do bélico quebranto,
 
Faz imortais no tempo transitório
 
Os correias e Sás no novo empório.(3)
 
LXI
 
Entanto do tamoio a gente bruta,
 
Mais feroz sempre na marcial contenda,
 
Contra a nova cidade em fera luta
 
Movia guerra pelo mar tremenda.
 
Mas Mendo para a bárbara disputa
 
Faz que um chefe tapuia o mar defenda:
 
Ararigbóia aos seus nomeia a fama,
 
Martim Afonso por cristão se chama.
 
LXII
 
Príncipe foi nas tabas respeitado,
 
Que, ao nome português na guerra adito,
 
Tinha com Mendo os seus capitaneado,
 
Sempre contra o tamoio o campo invicto.
 
Quatro guerreiras naus tinha avançado
 
O rebelde, depois do grão-conflito,
 
E, em oito lanchas Ararig buscando,
 
Do Cabo Frio a ponta iam dobrando.
 
LXIII
 
Saltam da noite no silencio escuro
 
As belicosas mangas guarnecidas
 
De imensas chusmas do tamoio duro
 
Que obrar deviam na campanha unidas;
 
E, enquanto tem o campo por seguro,
 
Jaziam pelas praias estendidas,
 
Para investir coa luz, que já arraiava,
 
A aldeia Ararig, que os esperava.
 
LXIV
 
Mas o bravo tapuia belicoso,
 
Antevendo o descuido do inimigo,
 
Busca o manto da noite insidioso,
 
Para investi-lo no noturno abrigo.
 
Convoca os seus guerreiros animoso,
 
E, sem dizer-lhes mais do seu perigo,
 
Depois que um breve espaço os olhou mudo,
 
Disse cheio de ardor, batendo o escudo:
 
LXV
 
"Sus valorosa, intrépida caterva!
 
Que esperamos no nosso alojamento?
 
Acaso até que o campo em chusma ferva
 
E nos busque o francês no próprio assento?
 
Se por espia, que o seu campo observa,
 
Que dorme sobre as praias desatento,
 
Onde, se o surpreendermos de improviso,
 
Sentirão todo o dano antes do aviso.
 
LXVI
 
Basta que em marcha procedais quieta,
 
E que, invadindo a turba descuidada,
 
Não cuideis de empregar a bala, ou seta,
 
Mas que tudo leveis à pura espada;
 
E, quando o vasto campo se acometa,
 
Deixando-lhe às canoas livre entrada,
 
Antes que o ferro vibre os seus reveses,
 
Desarmai, se puderdes, os franceses.
 
LXVII
 
Chamam corpo da guarda onde o soldado
 
Costuma pôr as armas nas vigias;
 
Ali correi com ímpeto apressado,
 
Seguindo o passo sempre das espias.
 
Que nada o francês pode desarmado,
 
E, sem as chamas que derrama impias,
 
Ficara desde o ímpeto primeiro
 
Nas mãos da nossa tropa prisioneiro."
 
LXVIII
 
Disse o astuto Ararig, e a lento passo
 
Cada um pela brenha vai disperso,
 
Devendo a dado tempo e a certo espaço
 
Qualquer unir-se em batalhão diverso.
 
E, achando em sono descuidado e lasso,
 
Em sentinelas ter, o campo adverso,
 
Um a um, pé ante pé, em marcha tarda,
 
Assaltam juntos a sopita guarda.
 
LXIX
 
Juntas as armas de improviso apanham,
 
Matando as guardas meio adormecidas;
 
E, depois que a armaria toda ganham,
 
Quantos as vêm buscar perdem as vidas.
 
O sono com as mortes acompanham;
 
E outros, vendo sem armas as partidas,
 
Porque a causa não sabem do tumulto,
 
Buscam as lanchas, por fugir do insulto.
 
LXX
 
Ararigbóia, como um raio ardente,
 
Uns dormindo degola pela areia,
 
Outros sem armas, que rendidos sente,
 
Prisioneiros com cordas encadeia.
 
A fiel tropa pela praia ingente
 
Toda deixa a campanha de horror cheia,
 
Cobrindo de cadáveres o plano,
 
Alagado coa espada em sangue humano.
 
LXXI
 
E já nos céus risonha aparecia
 
A estrela d'alva as trevas apartando,
 
E com trêmula luz o incerto dia
 
No extremo do horizonte ia arraiando,
 
Quando o estrago da noite aparecia,
 
E preso ou morto o franco demonstrando,
 
Nem as lanchas se salvam, que a vazante
 
Em seco as pôs na mão do triunfante.
 
LXXII
 
Não cessava Martim contra a espantada
 
Multidão de tamoios, que se embrenha;
 
E, deixando-lhe a aldeia derribada,
 
Não sê-lhe esconde algum no mato ou brenha.
 
Muitos no averno lança com a espada,
 
Fugindo outros ao mar n’água despenha,
 
Nem fulminando a massa a algum perdoa,
 
Oculto na cabana ou na canoa.
 
LXXIII
 
Fez este marte do Brasil constante
 
A nação dos tamoios tanta guerra,
 
Que ele só com a espada fulminante
 
Lhe extingue o nome e despovoa a terra.
 
Mais não ousa o rebelde mariante,
 
Enquanto Ararigbóia no campo erra,
 
Desembarcar na costa, sem que o bravo
 
O deixe combatendo, ou morto, ou escravo.
 
LXXIV
 
Vi que do excelso trono vinha entanto
 
Uma augusta donzela adormecida,
 
De quem brilhava sobre o aspecto santo
 
A piedade, a abundância, a ciência, a vida.
 
Do seio derramava do áureo manto
 
A opulência no mundo apetecida,
 
E, logo que foi vista sobre a terra,
 
Submergiu-se no averno a fausta guerra.
 
LXXV
 
Era a divina paz, que o céu nos manda,
 
Prêmio de um cetro, que da fé zelante
 
Propaga o santo culto onde comanda,
 
E as leis defende da justiça amante.
 
Sem os estragos de uma guerra infanda.
 
Gozará o Brasil de paz constante
 
Por setenta anos de mm governo justo.
 
Tendo tranqüila a terra e o mar sem susto.
 
LXXVI
 
Nem mais a espada e bomba pavorosa
 
Se ouvirá na marinha e sertão vasto;
 
A voz só do Evangelho poderosa,
 
Simples, sem artifício, indústria ou fasto,
 
A semífera gente viciosa
 
No jugo conterá de um temor casto;
 
E às mãos dos seus apóstolos se avista
 
Com as armas da cruz feita a conquista.
 
LXXVII
 
Mas vi em tanto lusitano império
 
Na Líbia ardente em sangue submergido,
 
E o seu domínio no indico hemisfério
 
Do batavo nas águas invadido.
 
E, ou por descuido do governo espério,
 
Ou de mil contratempos combatido,
 
Cedeu no vasto mar por toda a banda
 
O império do Brasil à fria Holanda.
 
LXXVIII
 
Dezesseis longos séculos contando,
 
Com anos vinte quatro a vulgar era,
 
Vi a batava esquadra o mar sulcando,
 
Onde Wilhekens general modera.
 
Petre Petrid os mares assombrando
 
Por almirante aos náuticos se dera
 
Poder que à índia navegar fingia,
 
E contra a expectação veio à Bahia.
 
LXXIX
 
A fonte descobri da excelsa praça,
 
As armas governando o bom Furtado,
 
Que. antevendo os efeitos da desgraça
 
Tudo dispunha com valor frustrado.
 
Convoca quantos encontra e tudo abraça
 
Por opor-se ao perigo ameaçado;
 
Mas dissipa-se a gente sem batalha,
 
Por faltar não valor, mas vitualha.
 
LXXX
 
Dispunha assim o batavo experiente,
 
Antevendo que a turba mal unida,
 
Sem cauta providência que a sustente,
 
Esfriando no ardor toma a fugida;
 
E, vendo a multidão menos freqüente
 
E a plebe na tardança esmorecida,
 
Quando menos o espera a chusma fraca,
 
Ocupando um castelo, o povo ataca.
 
LXXXI
 
Ruiter e Duchs com legião potente
 
A porta invadem de S. Bento em fúria;
 
Mas, rebatidos de impressão valente,
 
Cessam, fugindo da intentada injúria.
 
Mas tão funesto horror concebe a gente,
 
Que a guerra ignora com profunda incúria,
 
Que. quando faz que Ruiter não se arroje,
 
Deixa o terreno e do vencido foge.
 
LXXXII
 
Furtado de Mendonça, que não vira
 
Jamais do medo vil a fronte escura,
 
Com setenta somente a face vira,
 
E sem mais que o seu peito a praça mura:
 
O amor da pátria, que o furor lhe inspira,
 
Faz que, da vida desprezando a cura,
 
Se arroje o luso ao batavo que o inunda,
 
E um fira, um despedace, outro confunda.
 
LXXXIII
 
Mas, vendo na manhã que o céu descobre
 
A cidade do povo abandonada,
 
Nem mais que o peito de Furtado nobre
 
Com poucos dos setenta na esplanada,
 
Teme que num só peito o valor sobre,
 
E que, deixando a empresa retardada,
 
Socorro venha donde bom partido
 
Ao bravo chefe se ofereceu rendido.
 
LXXXIV
 
Não tarda a fama a divulgar voando
 
Da capital brasílica o sucesso,
 
Enquanto o belga, que lhe ocupa o mando,
 
Recolhe da vitória o imenso preço.
 
Treme em Madrid o trono, receando
 
Que o bélgico leão, com tanto excesso,
 
Prostre o de Espanha e, como o vulgo narra,
 
No México e Peru lhe imprima a garra.
 
LXXXV
 
Cobre-se o mar de esquadra numerosas,
 
Move-se a lusa e hispana fidalguia,
 
Vão-se embarcando legiões famosas,
 
Todo em náutica chusma o mar fervia.
 
Fradique as naus hispanas poderosas,
 
Menezes as de Lísia prevenia,
 
Vendo-se terra e mar, no caso incerto,
 
De petrechos, canhões e armas coberto.
 
LXXXVI
 
Já pela barra entrava da Bahia,
 
Com sessenta e seis naus soberba a armada,
 
Doze mil homens de alta valentia
 
Ocupavam sobre elas a enseada,
 
De tanto nome em militar porfia,
 
Que a guarnição da praça, de assombrada,
 
Bem que finja valor nesta conquista,
 
Antes que ao ferro, se lhe abate à vista.
 
LXXXVII
 
Dispõe-se em meia lua a armada inteira,
 
Cerrando a fuga ao belga esmorecido;
 
Ocupa o forte exército a ribeira
 
Em dois quartéis aos lados dividido,
 
Mas o batavo Quif na ação primeira,
 
Tendo o campo a Fradique acometido,
 
Com sortida deixou no ardor insana
 
Suspensa a lusa gente e rota a hispana.
 
LXXXVIII
 
Cheio o belga de orgulho na ação brava,
 
Por que mais prove pela pátria o zelo,
 
Contra a esquadra, que os muros varejava,
 
Em dois baixéis arroja um mongibelo.
 
Crê que é fuga o Menezes, que observava,
 
E move toda a esquadra sem prevê-lo;
 
E parece que Deus o impulso inspira,
 
Com que do oculto incêndio as naus retira.
 
LXXXIX
 
Um giro a lua fez na azul esfera,
 
Enquanto os belgas, de valor já faltos,
 
Ceder dispunham na contenda fera
 
Ao furor incessante dos assaltos;
 
E, quando mais socorro não se espera,
 
Vendo que os mares se empolavam altos,
 
Cede o batavo humilde ao luso-hispano
 
A capital do império americano."
 
XC
 
Falando prosseguia Catarina,
 
Tendo a assembléia no discurso atenta,
 
Quando com fúria o bordo ao mar inclina
 
A nau batida de hórrida tormenta.
 
Tudo à manobra o capitão destina;
 
E, vendo que onda horrível se apresenta,
 
Lança-se o marinheiro à vela em pressa,
 
Acode o Diogo e Catarina cessa.
 
(1) Este meio — projeto admirável de fazer úteis as conquistas a população das nações que as fazem, pois é certo que, com esta política se formou e cresceu a antiga republica de Roma
 
(2) Note-se que Colon não foi o descobridor do Brasil mas Pedro Álvares Cabral; ao mesmo Colon, então habitante na Madeira, deu os roteiros com que descobriu a América Francisco Sanches, o qual fazem uns Andalus, outros Biscainho, mas o espanhol Gomara autor coevo, e que militou entre os soldados de Colon, atesta que era português. Não é portanto ocasião de notar-se a expressão:dando a Cabral o instinto,etc.
 
(3) Os Corrêas e Sás. Esta é a rama nobilíssima dos condes de Penaguião, que, passando ao Brasil, deu os primeiros conquistadores àquele Estado, família que existe com a antiga glória na excelentíssima casa de Asseca e nos dois digníssimos ramos da mesma os excelentíssimos senhores Sebastião Correia de Sá e João Correia de Albuquerque, fidalgos que o Brasil deve considerar por seus perpétuos pais e protetores.
 
 
CANTO IX
 
I
 
Depois que o tempo torna bonançoso
 
E a noite vem tranqüila em branda calma,
 
De ouvir o mais do sonho portentoso
 
Se acende a todos o desejo n'alma;
 
E no empenho do belga belicoso,
 
Desejando escutar quem teve a palma,
 
Suplicam Catarina que prossiga
 
Na narração do sonho e tudo diga.
 
II
 
"Vi (prossegue a matrona) em Marte duro
 
Confundir-se o Brasil, vagar potente
 
O batavo feroz, e o reino escuro
 
Encher Plutão da desditosa gente.
 
Vi descendo as milícias do céu puro
 
A plebe inerme com o zelo ardente
 
Infundir valor tal, que conte a história
 
Por milagre do céu cada vitória
 
III
 
Petrid e Íolo, raios da marinha,
 
Com esquadra do pélago senhoras,
 
Qualquer do lado seu queimado tinha
 
Com chamas o Brasil desoladoras;
 
Petrid a frota que das Índias vinha
 
Com procelas de fogo abrasadoras,
 
E nas naus lavra, de tesouros cheias,
 
Ao infausto Brasil novas cadeias.
 
IV
 
Máquina move o belga ambiciosas,
 
Suprindo os gastos com a imensa prata;
 
E, armando em guerra esquadras numerosas,
 
Ocupar Pernambuco ao luso trata:
 
Nem As forças da Holanda poderosas
 
Opõe o hispano, com a nova ingrata,
 
Tal socorro que a praça na contenda
 
Do grão-poder dos batavos defenda.
 
V
 
Rege de Pernambuco a terra extensa
 
O intrépido Albuquerque, a tudo atento.
 
Guarnece a praça, os esquadrões condensa,
 
Dispõe ao fogo o bélico instrumento,
 
Quando à maneira de floresta densa
 
Se viu coberto o liquido elemento,
 
Onde proas setenta o mar rompiam,
 
E o Wandemburgo general seguiam.
 
VI
 
Chamam Pau amarelo um sitio ao lado
 
Da cidade que a frota acometia.
 
Cômodo ao desembarque e mal guardado
 
De Albuquerque, que as praias defendia:
 
Ali, com quatro legiões formado,
 
A bela Olinda o batavo se envia
 
Onde com turmas de inexperta gente
 
E opôs o luso chefe ao belga ardente.
 
VII
 
Nem muito dura ao fogo desusado
 
O tímido esquadrão da gente lusa,
 
Que, do insólito horror preocupado,
 
A fuga empreende em multidão confusa:
 
Um sobre outro, ao fugir precipitado,
 
Render-se ao fero belga não recusa;
 
E, a cidade infeliz deixando aberta
 
Qualquer se salva donde mais o acerta.
 
VIII
 
Entra o holandês na praça abandonada,
 
E quando de riqueza a cuidou cheia,
 
Em triste solidão desamparada,
 
E acha sem prêmio a cobiçosa idéia
 
Vingam nos templos a intenção malvada,
 
E o altar profanam com infâmia feia,
 
Tratando o pio rito e o santo culto
 
Com sacrílega mente e horrendo insulto.
 
IX
 
Mas não sofre da fuga o torpe medo
 
O valente fortíssimo Temudo;
 
E, tendo ao lado o intrépido Azevedo,
 
A espada empunha embaraçando o escudo.
 
Ao ser do saco no funesto enredo
 
A forma do holandês turbar-se em tudo,
 
Une alguns, que, odiando a vil fugida,
 
Dão por preço da glória a heróica vida.
 
X
 
"Oh, disse, honra imortal do nome luso,
 
Corações valorosos, que em tal sorte
 
Fazeis da doce vida o melhor uso,
 
Comprando a glória com a invicta morte!
 
Vedes sem forma o batavo confuso,
 
Da valorosa espada exposta ao corte:
 
Corra-se às armas, que, se os não vencemos,
 
Sem a pátria vingar não morreremos."
 
XI
 
Disse; e, empregando a fulminante espada,
 
Uma esquadra invadiu que discorria,
 
Com cálices da igreja profanada,
 
Que com insulto em derrisão metia;
 
De uns a fronte no chão deixou truncada,
 
De outros o peito com o ferro enfia,
 
De alguns, que insano acometendo freme,
 
Talhado o braço sobre a terra treme.
 
XII
 
Azevedo entre os mais, que no chão lança,
 
Tendo das balas empregado o impulso,
 
Com fero golpe de alabarda alcança
 
De Ruiter, que o acomete, o horrível pulso:
 
Despoja-o da arma e furioso avança,
 
Deixando-o em terra com tremor convulso,
 
Cornelisten derriba e o ferro emprega
 
Em Blá, que todo o chão com sangue rega.
 
XIII
 
Com fúria igual e impulso destemido
 
Invade contra o batavo a caterva,
 
E, bem que a legião em corpo unido,
 
Em roda ao luso disparando ferva,
 
Resiste o português nunca rendido,
 
Enquanto a vida com vigor conserva,
 
Até que sobre 08 belgas derribados
 
Caíram mortos sim, porém vingados.
 
XIV
 
Tem por nome Arrecife um forte posto,
 
Que um istmo separou do continente,
 
Donde o Castelo de S. Jorge oposto
 
Defende o passo ao transito iminente.
 
Ali fazia aos inimigos rosto
 
O bravo Lima, que do belga ardente,
 
Sem mais que trinta invictos defensores,
 
Trezentos sacrifica aos seus furores.
 
XV
 
Pasma de assombro Wandemburgo insano,
 
Nem pode crer, se o não convence a vista
 
Que com força tão pouca o lusitano
 
De dois mil belgas ao furor resista.
 
Sai com todo o poder e ocupa o plano,
 
E em forma regular tenta a conquista;
 
E nem assim o Lima ao fogo cede,
 
Enquanto auxilio ao general não pede.
 
XVI
 
Recobrava-se entanto valorosa
 
Do primeiro terror a lusa gente,
 
Que. inexperta da pugna belicosa,
 
Cedera no improviso do acidente.
 
E, acompanhando em tropa numerosa
 
Do intrépido Albuquerque o ardor valente,
 
O belga usurpador pelas ribeiras
 
Cercaram com redutos e trincheiras.
 
XVII
 
Plantam depois um forte acampamento,
 
Donde se insulte o batavo inimigo;
 
Nem deixavam que um só pudesse isento
 
Sair sem dano ao campo, ou sem perigo.
 
Cortam-lhe o passo, impedem-lhe o sustento,
 
Nem lhe concedem no terreno abrigo,
 
E, ocupando-lhe o giro dilatado,
 
O belga cercador deixam cercado.
 
XVIII
 
Dois mil dos seus guerreiros escolhidos
 
Contra Albuquerque Wandenburg avança;
 
Mas achavam os lusos prevenidos
 
Do seu valor na nobre confiança:
 
Caiam das trincheiras rebatidos
 
Do fogo os belgas, ou da espada e lança,
 
E, sem que combatendo a mais se arrojem,
 
Em desordem do campo à praça fogem.
 
XIX
 
Com quatro companhias numa armada
 
Socorro de Lisboa recebendo,
 
Foi outra vez a tropa reforçada
 
Com gente e munições noutra de Oquendo:
 
Mil mosqueteiros, tropa exercitada,
 
No duro jogo de Mavorte horrendo,
 
S. Félice conduz mestre de guerra (1)
 
Mas menos apto na que usava a terra.
 
XX
 
Com socorro maior de Holanda armado
 
Contra Itamaracá corre o inimigo;
 
Duas vezes, porém, foi rechaçado
 
Com perda o belga para o noto abrigo
 
A Paraíba e Rio Grande enviado,
 
Mudava de lugar, não de perigo;
 
E, já menos bisonha a lusa topa,
 
Põe em fuga o holandês, se em campo o topa.
 
XXI
 
A Wandemburgo no holandês império
 
Sucedera Rimbach em guerras noto,
 
Que. estimando dos belgas vitupério
 
Ser cada dia pelos nossos roto,
 
Enquanto celebrava atento e sério
 
A páscoa o campo em procissão devoto,
 
Com todo o poder batavo acomete,
 
E o campo em confusão, batendo, mete.
 
XXII
 
Não se interrompe a cerimônia augusta;
 
Orando o clero com o sexo pio,
 
Sai o ortodoxo conta a turma injusta,
 
Tomando por sagrado o desafio;
 
E, fundando no céu confiança justa,
 
Pelejam com tal fé, com tanto brio,
 
Que. matando Rimbach em feio estrago,
 
Deram aos belgas da blasfêmia o pago.
 
XXIII
 
Mas o céu, que o flagelo destinava,
 
Poder tão grande aos batavos concede,
 
Que nada a Vandescop, que os moderava,
 
Depois desta campanha o curso impede.
 
Fica Itamaracá de Holanda escrava,
 
Desfaz-se o campo, a Paraíba cede,
 
Perde-se o Rio Grande, e noutra empresa
 
Rende o luso o Pontal e a Fortaleza.
 
XXIV
 
Salva-se o resto, da facção perdida
 
Nas Alagoas, sítio defensável,
 
Onde, de fero belga perseguida,
 
Asilo busca a turba miserável.
 
Mas foi da Espanha em breve socorrida
 
Com brava tropa em frota respeitável;
 
Rosas de Borja, a Pernambuco enviado,
 
De Albuquerque o bastão tomou deixado.
 
XXV
 
Roxas, pronto no obrar, posto em batalha,
 
De Vandescop as tropas investia;
 
Mas o belga Arquichofe a marcha atalha
 
Com socorro que válido trazia
 
Com tenebrosa sombra os lutos talha
 
A noite, que começa, à morte impia,
 
Dispondo Roxas em defesa armado
 
Esperar o socorro convocado.
 
XXVI
 
Mas, logo que a manhã mostrou formosa
 
Da batalha inimiga a forma unida,
 
Mais não sossega a chama generosa,
 
E investe ardente a batava partida:
 
Cobre os céus a fumaça tenebrosa,
 
Perde o hispano e o holandês na empresa a vida,
 
E nem este, nem o outro ali vencera,
 
Se o temerário Roxas não morrera.
 
XXVII
 
S. Félice, na guerra mestre astuto,
 
Sucede no governo ao bravo hispano,
 
E brasílico Fábio entanto luto
 
Salvou na retirada o lusitano.
 
Foi das palmas batávicas produto
 
Governar o país pernambucano
 
O conde de Nassau, que o belga envia,
 
General das conquistas que emprendia.
 
XXVIII
 
Era Nassau nas armas celebrado,
 
Com que ilustrava o excelso nascimento,
 
Príncipe então no império respeitado,
 
Nutrindo igual ao sangue o pensamento
 
Entrou de forte armada acompanhado,
 
E, no Arrecife situado o assento,
 
Levantou fortes, e em países belos
 
Guarneceu as colônias com castelos.
 
XXIX
 
Mas, aspirando a empresa memorável,
 
Todo o exército e armada prevenia,
 
E, achando Pernambuco defensável,
 
Invadiu no recôncavo a Bahia.
 
S. Félice com resto miserável
 
Ali novo socorro ao rei pedia,
 
Quando ao bravo Nassau dispunha a sorte
 
Um chefe nele opor prudente e forte
 
XXX
 
Tudo dispunha o conde em forma e arte
 
De rebater do batavo a interpresa,
 
Dispõe pela cidade em toda a parte
 
Os meios e instrumentos da defesa;
 
Faz grossas levas e esquadrões reparte,
 
E, tudo preparando à forte empresa,
 
Nada esqueceu de quanto na milícia
 
Inventa a militar sábia perícia.
 
XXXI
 
Entrava entanto pela vasta enseada
 
Nassau, que as praias enche da Bahia
 
Com a terrível majestosa armada
 
Que com quarenta naus linha fazia;
 
E, ao som da trompa marcial tocada
 
Em gratos ecos de hórrida harmonia,
 
Enche a horrenda procela em tais ensaios
 
A enseada de trovões e o céu de raios.
 
XXXII
 
Entanto o claro Silva, que ocupava
 
Do supremo governo o excelso mando,
 
A S. Félice o posto renunciava,
 
Ficando por soldado ao seu comando.
 
Heróica ação, que pela pátria obrava,
 
Maior perícia em outrem confessando,
 
E merecendo nela em tanta empresa
 
Da corte aclamações, do rei grandeza (2).
 
XXXIII
 
Desembarca Nassau com turba ingente
 
Junto de Tapagipe, e empreende o oiteiro
 
Que nomear costuma a vulgar gente
 
Do antigo habitador Padre Ribeiro.
 
Mas S. Félice, que o anteviu prudente,
 
De posto o bate, que ocupou primeiro;
 
E, depois que seiscentos destro mata,
 
Em grande parte o belga desbarata.
 
XXXIV
 
Largos dias Nassau bate a trincheira,
 
Que lhe opôs ao quartel Banholo à frente;
 
Mas o belga em batalha verdadeira
 
Por muitos dias se avançava ardente.
 
Cobre-se a terra em hórrida maneira
 
De um monte de cadáveres ingente,
 
Vendo os belgas cair, sem que desista
 
Nassau com tanto sangue da conquista.
 
XXXV
 
E já desfeito o exército se via,
 
Ferido o oficial, e a gente morta,
 
Sem que cessasse o ardor nos da Bahia,
 
Que o S. Félice rege e o Silva exorta.
 
Pede tréguas Nassau nesta porfia,
 
E tudo com a tropa as naus transporta,
 
Fugindo do perigo o infausto efeito.
 
Com perda igual de gente e de conceito.
 
XXXVI
 
Dois dias na enseada por vingança
 
Bate a esquadra a cidade sem perigo,
 
Com balas e granadas, que em vão lança,
 
Parecendo mais salva que castigo.
 
Sobreveio ao Brasil nova esperança
 
De expugnar com mais forças o inimigo;
 
Mas foi o efeito das promessas vário,
 
Impedindo o socorro o mar contrário.
 
XXXVII
 
Vi neste tempo em confusão pasmosa
 
A monarquia em Lísia dominante,
 
E a casa de Bragança gloriosa
 
Nos quatro impérios triunfar reinante,
 
A Bahia com pompa majestosa
 
Festejar o monarca triunfante,
 
E o Pernambuco, de desgraças farto,
 
Invocar pai da pátria D. João Quarto.
 
XXXVIII
 
Tratava o novo rei com fé provada
 
A batávica paz, que sem justiça
 
Deixava ao mesmo tempo quebrantada
 
O belga injusto pela vil cobiça .
 
Ocupa o Maranhão batava armada,
 
E outra esquadra em Sergipe o incêndio atiça,
 
Pretendendo ocupar com falso engano
 
Toda África e Brasil ao lusitano.
 
XXXIX
 
Cede do seu governo de afrontado
 
O general Nassau, tornando à Holanda,
 
Tendo o conselho do Arrecife armado
 
Mil artifícios de calúnia infanda.
 
Nem contra os habitantes moderado
 
O duro freio no governo abranda,
 
Onde a plebe agravada que o experimenta
 
O Jugo sacudir com glória intenta.
 
XL
 
João Fernandes Vieira foi na empresa
 
O instrumento da pátria liberdade,
 
Herói que soube usar da grã-riqueza,
 
Libertando o Brasil desta impiedade.
 
De amigos e parentes na defesa
 
Tentou furtivamente a sociedade,
 
E como a pedra a estátua de Nabuco.
 
O belga derribou de Pernambuco.
 
XLI
 
Nomeou cabos, tropas, companhias,
 
Pediu socorros e invocou prudente,
 
Expondo do holandês as tiranias,
 
O governo brasílico potente.
 
Avisa sem demora Henrique Dias (3),
 
Capitão dos etíopes valente,
 
E o forte Camarão, que em guerra tanta (4)
 
Com os seus carijós o belga espanta.
 
XLII
 
Ouse o holandês com susto o movimento;
 
E, querendo oprimir nascente a chama,
 
Com dois mil homens prevenia atento
 
A nova guerra que o Vieira inflama.
 
Deixara o luso chefe o alojamento,
 
E os belgas, que à cilada oculto chama,
 
Empenhou de um lugar nas duras rocas,
 
A que o monte chamaram das Tabocas.
 
XLIII
 
Entre arbustos e canas de improviso
 
Dispara o luso sobre a incauta gente,
 
E, precedendo o dano antes do aviso,
 
Desbarata o holandês com fúria ardente.
 
Suspende a marcha o batavo indeciso,
 
E, sem ver o inimigo, o golpe sente,
 
Até que, vendo o estrago dos soldados,
 
Cedem o campo e fogem destroçados
 
XLIV
 
Holanda era potente e o luso aflito,
 
Onde enchendo Lisboa de ameaças,
 
Por ter notícia do infeliz conflito,
 
Meditava ao Brasil novas desgraças.
 
Mas, por guardar os seus, o rei invicto
 
Dispôs piedoso nas providências lassas
 
Providências que à paz chamar pudessem
 
O tumulto em que os nossos permanecem.
 
XLV
 
Vão com dois regimentos destacados
 
O moreno e o negreiros da Bahia
 
A dar paz (se é possível) destinados
 
Na guerra que o Vieira então movia.
 
Vieram veigas e Campos abrasados,
 
E o colono infeliz, que perecia,
 
Com lastima da tropa, que observara,
 
Todo o estrago que o belga ali causara.
 
XLVI
 
Avistado o Negreiros e o Vieira
 
"Venho (disse o primeiro) a prisão dar vos,
 
Por haver provocado a ira estrangeira
 
A uma guerra que acabe de assolar-vos."
 
"É justo que eu também prender-vos queira;
 
Mas será (disse o herói) com abraçar-vos."
 
E, assim dizendo, alegre move o passo,
 
E os dois recebe com festivo abraço.
 
XLVII
 
Outro tanto fazia a tropa unida
 
Ao invicto esquadrão pernambucano;
 
E, aplaudindo a vitória conseguida,
 
Detestam do holandês o enorme engano.
 
Nem muito tarda a gente fementida
 
Que não abrase ao lusitano,
 
Onde embarcado pela paz chegara,
 
Com o batavo próprio o convidara.
 
XLVIII
 
Ouvem-se entanto os míseros clamores
 
De turba feminina, que invocava
 
O socorro dos seus libertadores
 
Contra o belga cruel que a cativava.
 
Mas não cessa o Vieira e sem rumores
 
O engenho, aonde incauto descansava
 
O belga general cercado, bate,
 
E, rendendo-o à prisão, vence o combate.
 
XLIX
 
Henrique Huss, no Arrecife comandante,
 
Era o cabo dos belgas prisioneiro,
 
Blac rendido também, chefe importante,
 
Subalterno nas armas do primeiro.
 
Foge do luso o batavo arrogante,
 
Espalhando fuzis no grão-terreiro,
 
E a chama teme que no horrendo empenho
 
Lançara o Vieira pelo vasto engenho.
 
L
 
Com fama de vitória tão brilhante
 
Toma as armas a plebe e o belga invade;
 
Serenhaem tomou, vila possante,
 
O partido comum da liberdade.
 
Segue Itaramaracá com fé constante,
 
Porto Calvo e os contornos da cidade,
 
Deixando no Arrecife sem remédio
 
Encerrado o holandês com duro assédio,
 
LI
 
Mas não cessa na Holanda a companhia,
 
E ao numeroso exército que ordena,
 
Segismundo Van-Scop por chefe envia,
 
Munido em guerra de potência plena;
 
Do experto general, que desconfia
 
O prêmio valoroso, do fraco apena,
 
E empreendendo com forças o combate,
 
O inimigo Vieira ou prenda, ou mate.
 
LII
 
Abordando o Arrecife então cercado,
 
A inércia dos seus chefes repreende;
 
Nem muito tarda que no campo armado
 
Não saia a Olinda, que expugnar emprende.
 
Em assalto a acomete duplicado,
 
E a brava tropa, que ao presídio atende,
 
Com tanto alento o batavo rechaça,
 
Que ferido Van-Scop se acolhe à praça.
 
LIII
 
Sem que desista da passada instância,
 
Tenta de novo a empresa da Bahia;
 
Mas, notando nos lusos a constância,
 
Que injúria do poder lhe parecia,
 
Consome do Recôncavo a abundância
 
Com freqüentes sortidas, que emprendia,
 
E, porque cresça na cidade o tédio,
 
Ocupa Taparica e põe-lhe o assédio.
 
LIV
 
Teles entanto, que expulsar pretende
 
Sem igual força o batavo contrário,
 
Contra o comum conselho o ataque emprende,
 
E tudo expõe no impulso temerário
 
Mas, vendo o luso rei que a nada atende
 
O belga nos seus pactos sempre vário,
 
Manda armada ao Brasil, que poderosa
 
A batava nação dome orgulhosa.
 
LV
 
Teme o golpe Van-Scop e desampara,
 
Por guardar o Arrecife, Taparica,
 
Antevendo que a esquadra se prepara
 
Contra a praça, que auxílio lhe suplica.
 
Barreto de Menezes, que chegara
 
De novo general patente indica,
 
E em Pernambuco sublimado ao mando
 
Com prudência e valor foi governando.
 
LVI
 
Nove mil homens, tropa valorosa,
 
E com freqüentes palmas veterana,
 
Manda o batavo a empresa perigosa,
 
Que à guerra ponha fim pernambucana.
 
Ocupa o mar armada poderosa,
 
E, dominando a praia americana,
 
Usurpa em mar e terra alto domínio,
 
Ameaçando dos lusos o extermínio.
 
LVII
 
Põe-se em campanha o batavo terrível,
 
Com sete mil de veterana tropa;
 
Vão densos bandos de gentio horrível,
 
Com destro gastador vindo da Europa;
 
E, estimando a potência irresistível,
 
Cende ao belga a Barreta e quanto topa (5),
 
Enquanto em defensiva o luso fica,
 
E o campo contra o belga fortifica.
 
LVIII
 
Segismundo, porém, que os bastimentos
 
Em Moribeca assegurar procura,
 
Dispunha ali tomar alojamentos,
 
Estimando a vitória já segura.
 
Mas Barreto e Vieira a tudo atentos,
 
Na justiça, que a causa lhe assegura,
 
Confiam que na empresa o céu lhe valha,
 
E tudo vão dispondo a uma batalha.
 
LIX
 
Nem com tanto poder Van-Scop recusa
 
Decidir numa ação toda a contenda,
 
Antevendo, se a perde a gente lusa,
 
Que outra força não tem que a guerra emprenda;
 
E já na marcha a multidão confusa
 
A ação começa pelo fogo horrenda,
 
E, turbando dos belgas toda a forma,
 
Combatem com valor, porém sem norma.
 
LX
 
Nos montes Guararapes se alojava
 
Formando o português, que o belga espera;
 
E a escaramuça, que emprendera brava,
 
Traz a sítio o holandês, que adverso lhe era;
 
Desde alto monte o luso fogo obrava,
 
Com ruína dos batavos tão fera,
 
Que, ou seja ao lado, ou na espaçosa fronte,
 
Se cobriu de cadáveres o monte.
 
LXI
 
Reúne os batalhões Van-Scop irado,
 
E à frente com valor da linha posto
 
Tenta desalojar do alto ocupado
 
O invicto Camarão, que lhe faz rosto;
 
Mas, com chuva de balas rechaçado,
 
Perde três vezes o ganhado posto,
 
E já ferido com mil mortos cede,
 
Em vil fuga, que a noite lhe concede.
 
LXII
 
Noventa dos seus perde o lusitano;
 
E enquanto o belga se retira incerto,
 
Descobre a aurora todo o monte e plano
 
De bandeiras, canhões, e armas coberto.
 
Muitos ali do batavo tirano,
 
Perdidos pela noite em campo aberto,
 
Deixa o dia, inexpertos nos roteiros,
 
Nas mãos da nossa tropa prisioneiros.
 
LXIII
 
Horroriza-se Holanda, pasma Europa,
 
Exalta Portugal, canta a Bahia,
 
Vendo-se triunfar tão pouca tropa
 
Da terrível potência que a invadia.
 
Nada de humano o pensamento topa,
 
Que em tudo a mão de Deus clara se via,
 
Pois sempre elege para os seus portentos
 
Os mais fracos e humildes instrumentos.
 
LXIV
 
Tinha exausta a ambição, mas não cansada
 
A cobiçosa Holanda em tal conquista;
 
E, para novo empenho aparelhada,
 
Escolhe os capitães e a gente alista;
 
Mas do Britano às armas provocada,
 
Sobre interesse que mais alto avista,
 
Suspende influxo na famosa empresa,
 
Deixando em Pernambuco a guerra acesa.
 
LXV
 
Brinca este tempo, coronel valente,
 
Impetra de Van-Scop tropa luzida,
 
Com petrechos e número potente,
 
Que em batalha cruel toda decida.
 
Cinco mil homens de escolhida gente,
 
De canhões, e petrechos guarnecida,
 
Põe no campo assombrado da potência,
 
Igualando o valor coa diligência.
 
LXVI
 
Com dois mil e seiscentos veteranos
 
Fez-lhe frente Barreto e o belga invade;
 
Correm de toda a parte os lusitanos
 
A sustentar a pátria liberdade.
 
Aloja o luso sobre os mesmos planos
 
Onde fora passada a mortandade;
 
O belga na montanha se distingue,
 
Um que estrago renove, outro que o vingue.
 
LXVII
 
Mas Brinc, a tudo atento desde o cume,
 
Com perícia guerreira ocupa o monte,
 
Onde, seguindo o militar costume,
 
Dá forma à retaguarda e ordena à fronte;
 
Nem tão ousado o português presume,
 
Que em vantajoso posto o belga afronte,
 
Esperando a ocasião dali oportuna
 
De poder atacar com mais fortuna.
 
LXV
 
Reconhece Barreto o sítio e forma,
 
E, vendo o ardor da lusitana gente,
 
Que, hábil no passo, da subida o informa,
 
Faz que o bravo Vieira ataque ardente;
 
E, cobrindo a invasão com sábia norma,
 
Com o fogo protege o assalto ingente,
 
Até que por mil casos duvidosos
 
Vê sobre o monte os campeões briosos.
 
LXIX
 
Nova batalha ali com fogo vivo
 
Move impávido o belga e firme insiste;
 
E, por mais que o Vieira invada ativo,
 
Onde um corpo vacila, outro resiste.
 
Tal há que ainda combate semi-vivo;
 
Tal que, cadáver já na morte triste,
 
A terra morde e em raiva enfurecida,
 
Blasfemando do céu, despede a vida.
 
LXX
 
A toda a parte voa o grão-Barreto,
 
E um anima, outro ajuda, outros exorta;
 
E, excitando no luso o pátrio afeto,
 
Incita o fone, o inválido conforta.
 
Bramava o fero Brinc em sangue infecto,
 
Entre a batava turba opressa e morta;
 
Assalta horrendo um batalhão potente,
 
E outros reprime com ferócia ardente.
 
LXXI
 
Mas o invencível Camarão, que o nota,
 
Um forte troço da reserva abala;
 
E, suspendendo a misera derrota,
 
Lança o belga por terra de uma bala.
 
Logo o almirante da soberba frota,
 
Vendo invadido Brinc cair sem fala,
 
Ocupa o mando, que já vago estima,
 
E o batavo à peleja altivo anima.
 
LXXII
 
Não sofre Henrique Dias, que observava
 
Do novo chefe a intimação constante;
 
E de um tiro, que fero lhe apontava,
 
Derriba morto o intrépido almirante.
 
Sem comandante, o belga trepidava,
 
E, de um e de outro lado vacilante,
 
Uma vil fuga tímido declara,
 
E o campo com desordem desampara.
 
LXXIII
 
O estandarte soberbo dos Estados,
 
Tendas, peças, bandeiras numerosas,
 
Mil e trezentos mortos numerados,
 
Prisioneiros, bagagens preciosas,
 
Muitos centos na fuga degolados,
 
A caixa militar, armas custosas,
 
Foram, nesta ocasião, de tanta glória,
 
O merecido prêmio da vitória.
 
LXXIV
 
Cinge o Arrecife de um assédio estreito
 
Com pronta cura o chefe lusitano;
 
Mas, tendo longa guerra o belga feito,
 
Era contínuo sim, mas mútuo o dano;
 
Até que Jacques ao comando eleito
 
No campo se avistou pernambucano.
 
Conduzindo em fortuita derrota
 
Para o luso comércio a usada frota.
 
LXXV
 
Por mar e terra sitiada a praça,
 
Depois do longo assédio de nove anos,
 
Com mil desastres fatigada e lassa,
 
Cedeu todo o Brasil aos lusitanos:
 
Mercê clara do céu, patente graça,
 
Que a tão poucos e míseros paisanos
 
Cedesse uma nação que enchia em guerra
 
De armadas todo o mar, de espanto a terra.
 
LXXVI
 
Assim modera o Padre Onipotente
 
Do ignorante mortal a incerta sorte,
 
Por fazer com tais casos evidente
 
Que não é quem mais pode o que é mais forte.
 
Tudo rege na terra a mão potente;
 
Dele a vitória pende, a vida, a morte;
 
E, sem o seu favor, que o distribui,
 
Todo o humano poder nada conclui.
 
LXXVII
 
Triunfou Portugal; mas, castigado,
 
Teve em tal permissão severo ensino,
 
Que só se logrará feliz reinado,
 
Honrando os reis da terra ao rei divino;
 
E que o Brasil aos lusos confiado
 
Será, cumprindo os fins do alto destino,
 
Instrumento talvez neste hemisfério
 
De recobrar no mundo o antigo império.
 
LXXVIII
 
Vi ne sonho mil casos diferentes,
 
Que no curso virão de outras idades.
 
Vi províncias notáveis e potentes,
 
Vi nascer no Brasil áureas cidades;
 
Famosos vice-reis e ilustres gentes,
 
Tantos sucessos, tantas variedades,
 
Que somente pintado, como em sombra,
 
Confunde o pensamento, a vista assombra.
 
LXXIX
 
Prelados vi de excelsa jerarquia,
 
E entre outros da maior celebridade
 
O claro Lemos, que enriqueça um dia
 
De novas ciências a universidade:
 
Ele ornará depois a academia
 
Com construções de excelsa majestade,
 
E em doutrina a fará com sábio modo
 
O Ateneu mais famoso do orbe todo."
 
LXXXX
 
Deu Catarina fim, e arrebatada
 
Num êxtase ficou, vibrando ardores;
 
Corriam pela face em luz banhada
 
Lágrimas belas, como orvalho em flores.
 
Fica a pia assembléia esperançada
 
De outros sucessos escutar maiores;
 
E, dando tempo ao sono milagroso,
 
No abraço a deixam do celeste esposo.
 
(1) S. Félice. — É o célebre conde de Banholo oficial prático, mandado de Espanha para exercitar e disciplinar as nossas milícias.
 
(2) Do rei grandeza. — Por esta ação generosa, que salvou a Bahia, foi criado por Felipe IV primeiro conde de S. Lourenço.
 
(3) Henrique Dias. —Negro valorosíssimo e comandante dos Etíopes, que tiveram grande parte na restauração do Brasil.
 
(4) Camarão. — D. Antônio Felipe Camarão, americano de origem e nação, bravíssimo capitão dos Carijós, que se fez terrível aos holandeses em freqüentes combates que lhes deu.
 
(5) Barreta. — Fortaleza importante dos nossos, junto do Arrecife.
 
 
CANTO X
 
I
 
Cheia de assombro a turba a dama admira
 
Tornada a si da suspensão pasmosa;
 
E da nova visão, que ali sentira,
 
Prossegue a ouvir-lhe a narração gostosa.
 
"Mais bela que esse sol que o mundo gira,
 
E com dor (disse) de purpúrea rosa,
 
Vi formar-se no céu nuvem serena,
 
Qual nasce a aurora em madrugada amena.
 
II
 
Vi luzeiros de chama rutilante
 
Sobre a esfera tecer claro diadema
 
Da matéria mais pura que o diamante,
 
Que obra parece de invenção suprema;
 
Luzia cada estrela tão brilhante,
 
Que parecia um sol, precioso emblema
 
De admirável, belíssima pessoa,
 
Que à roda da cabeça cinge a coroa.
 
III
 
De ouro fino os cabelos pareciam,
 
Que uma aura branda aos ares espalhava,
 
E uns dos outros talvez se dividiam,
 
E outra vez um com outro se enredava;
 
Frechas voando, mais não feririam,
 
Do que um só deles n'alma penetrava;
 
Cabelos tão gentis, que o esposo amado
 
Se queixa que de um deles foi chagado.
 
IV
 
A fronte bela, cândida, espaçosa,
 
Cheia de celestial serenidade,
 
Vislumbres dava pela luz formosa
 
Da imortal soberana claridade.
 
Vê-se ali mansidão reinar piedosa,
 
E envolta na modéstia a suavidade,
 
Com graça, a quem a olhava tão serena,
 
Que, excitando prazer, desterra a pena.
 
V
 
Dos dois olhos não há na terra idéia,
 
Que astros, flores, diamantes escurecem,
 
Ou na beleza de mil graças cheia,
 
Ou nos agrados, que brilhando of’recem,
 
Num olhar seu toda dama se encadeia,
 
E mil votos à roda lhe aparecem
 
Dos que a seu culto glorioso alista,
 
Outorgando o remédio numa vista.
 
VI
 
Das faces belas, se na terra houvera
 
Imagem competente que pintara,
 
As flores mais gentis da primavera
 
Pelo encarnado e branco eu comparara;
 
Mas flor não nasce na terrena esfera,
 
Não há estrela no céu tão bela e clara,
 
Que não seja, se a opor-se-lhe se arrisca,
 
Menos que à luz do sol breve faísca.
 
VII
 
Da boca formosíssima pendente
 
Pasma em silêncio todo o céu profundo:
 
Boca que um Fiat pronunciou, potente,
 
Com mais efeito que se criasse um mundo.
 
Odorífero cheiro em todo o ambiente
 
Do lábio se espalhava rubicundo:
 
Fragrância celestial, que amante e pia,
 
No filho com mil ósculos bebia.
 
VIII
 
Todos suspende em pasmo respeitoso
 
O amável formosíssimo semblante,
 
E mais nele se ostenta poderoso,
 
O soberano autor do céu brilhante:
 
Pois quanto tem o Empiro de formoso,
 
Quanto a angélica luz de rutilante,
 
Quanto dos serafins o ardente incêndio,
 
De tudo aquele rosto era um compêndio.
 
IX
 
Nas brancas mãos, que angélicas se estendem,
 
Um desmaiado azul nas veias tinto,
 
Faz parecer aos olhos, quando atendem,
 
Alabastros com fundos de jacinto.
 
Ambas com doce abraço ao seio prendem
 
Formosura maior, que aqui não pinto;
 
Porque para pincel me não bastara,
 
Quando Deus já criou, quanto criara.
 
X
 
Mas, se não se dedigna o verbo santo,
 
Por nosso amor, de um símbolo rasteiro,
 
Dentro parece do virgíneo manto,
 
Pascendo em brancos lídios um cordeiro.
 
Os olhos com suavíssimo quebranto
 
Lhe ocupa um doce sono lisonjeiro;
 
À roda os serafins, que o estrondo impedem,
 
Para o não despertar silêncio pedem.
 
XI
 
Aos pés da mãe piedosa superada
 
Vê-se a antiga serpente insidiosa,
 
De que a fronte na culpa levantada
 
Quebra a planta virgínea gloriosa;
 
E, enroscando os mortais já quebrantada,
 
Ao céu só da Virgem poderosa,
 
No mais fundo do abismo se submerge,
 
E o feral antro do veneno asperge.
 
XII
 
Ao ver beleza tanta, o pensamento,
 
Que a linda imagem surprendia absorto,
 
Ouve no centro d'alma um doce acento
 
Que o peito enchia de vital conforto.
 
E, como infunde às plantas novo alento
 
O matutino orvalho em fértil horto,
 
Tal dos doces influxos na abundância
 
Dentro d'alma eu senti nova constância.
 
XIII
 
"Catarina (me diz), verás ditosa
 
Outra vez do Brasil a terra amada;
 
Faze que a imagem minha gloriosa
 
Se restitua de vil mão roubada!"
 
E assim dizendo, nuvem luminosa,
 
Como véu, cobre a face desejada,
 
E faz que na memória firme exista
 
Entre amor e saudade a doce vista.
 
XIV
 
Assim conclui Catarina, enchendo
 
De duvidoso assombro a companhia.
 
Que imagem fosse aquela, iam dizendo,
 
Ou qual deles acaso a roubaria?
 
Se a Mãe de Deus, mistérios envolvendo,
 
Doutra cópia interior o entenderia,
 
Ou queria talvez que em santo trato
 
Se restitua n'alma o seu retrato?
 
XV
 
Mas vela em tanto apareceu boiante
 
Que junto da Bahia o mar cortava,
 
Onde em bandeira, que lançou flamante,
 
O leão das Espanhas tremulava.
 
Vem à fala com salva fulminante,
 
E a franca nau, que à terra velejava.
 
Posto à capa o espanhol, cortês visita,
 
E o claro Diogo a visitá-lo incita.
 
XVI
 
E, depois que em festivo amigo abordo
 
O bom Gonzales o hóspede festeja,
 
Excitou-se nos dois claro recordo
 
De quem o hispano foi, quem Diogo seja;
 
Ambos nos braços, de comum acordo,
 
Um a outro mil ditas se deseja,
 
Reconhecendo o luso o nobre hispano,
 
Por um dos companheiros de Arelhano.
 
XVII
 
"Carlos o grande, o imperador famoso,
 
Grato por mim a saudar-te envia
 
(Disse a Diogo o hispano generoso,
 
Socorrido a outro tempo na Bahia).
 
Ouviu o invicto César, gracioso,
 
O teu obséquio à espanha monarquia,
 
E o serviço, que grande considera,
 
Por mim do seu agrado remunera.
 
XVII
 
E por que possa em caso equivalente
 
Retribuir-te aquela ação piedosa,
 
Salva aqui te ofereço a infausta gente,
 
Perdida nessa praia desditosa,
 
De cativeiro bárbaro e inclemente
 
Vivia na opressão laboriosa,
 
Até que destas armas protegida
 
Remiu na liberdade a infausta vida."
 
XIX
 
Garcez então, da gente lusitana
 
O mais distinto que o discurso ouvia,
 
Confessa o benefício a força hispana,
 
E a história de seus casos principia:
 
"Depois que a gente abandonaste insana,
 
Com seu aviso, a lusa monarquia
 
Gente aqui mandou, naus poderosas,
 
Que as nações sujeitassem belicosas.
 
XX
 
Foi Pereira Coutinho o destinado
 
A fazer da Bahia a grã-conquista,
 
Herói no índico império celebrado,
 
Em quem nova esperança o luso avista,
 
Tudo tinha o bom chefe preparado,
 
Formosas naus ajunta e gente alista
 
E à grã-população que meditava
 
De um sexo e doutro as gentes convidava.
 
XXI
 
E, sem demora as praias ocupando,
 
Foi dos Tupinambás, com teu recordo,
 
As potentes aldeias visitando,
 
Com amiga aliança em firme acordo.
 
Do sertão vasto em numeroso bando
 
Desciam, festejando o nosso abordo,
 
Os carijós, tapuias e outras gentes,
 
Por fama do teu nome obedientes.
 
XXII
 
Gupeva e Taparica celebrados
 
Entre os tupinambás, nação que habita
 
Os campos da Bahia dilatados,
 
Antes de outros Coutinho solicita;
 
E, por vê-los contigo emparentados,
 
Povoar o Recôncavo medita
 
Da gente, que o teu nome reconhece,
 
Onde de dia a dia o povo cresce.
 
XXIII
 
Todo o fértil terreno utilizando,
 
Donde riqueza se oferece tanta,
 
Engenhos vai de açúcar fabricando,
 
Aldeias, casas, máquinas levanta.
 
E as drogas preciosas comutando,
 
A mandioca, arroz e a cana planta;
 
Nem dúvida que seja em tempo breve
 
A colônia melhor que Europa teve.
 
XXIV
 
Escolha faz nas tabas numerosas
 
Dos que acha no trabalho mais ativos;
 
Mas guarda para empresas belicosas
 
Os que em ferócia reconhece altivos.
 
A todos com maneiras amorosas
 
Propõe da fé cristã claros motivos;
 
E, a condição notando em cada raça.
 
Uns doma com terror, outros com graça.
 
XXV
 
Sabe que em gente tal nada se colhe,
 
Depois de endurecer na idade adulta,
 
Onde na puerícia os mais escolhe,
 
Por dar-lhe em breve a educação mais culta.
 
Nem dos pais violento algum recolhe;
 
Mas do proveito, que de alguns resulta,
 
Induz a gente bárbara que o segue
 
Que a prole à educação gostosa entregue.
 
XXVI
 
Em cuidadosa escola, o temor santo
 
Antes das artes a qualquer se ensina;
 
Dão-lhes lições de ler, contar, de canto,
 
E o catecismo da cristã doutrina;
 
Vendo-os o rude pai, concebe espanto,
 
E pelo filho a mãe à fé se inclina;
 
Nem de meio entre nós mais apto se usa
 
Que aquela gente bárbara reduza.
 
XXVII
 
E estes serão, se a idéia não me engana,
 
Meios à grande empresa necessários,
 
Que em breve a gente rude fora humana,
 
Com escolas e régios seminários.
 
Foge, sem se domar, a gente insana,
 
Se em forças e poder nos vê contrários;
 
Mas, educada em tenra mocidade,
 
Dilataria o reino e a cristandade.
 
XXVIII
 
Mas no meio das belas esperanças,
 
Com que a nova colônia florescia,
 
Move a serpe infernal desconfianças
 
Entre os tupinambás e os da Bahia:
 
Foi a causa infeliz destas mudanças
 
Um interesse vil de gente impia,
 
Que os povos ofendendo em paz amigos,
 
Cobriram toda a terra de inimigos.
 
XXIX
 
Gupeva foi dos seus abandonado;
 
Taparica foi mono; a lusa gente
 
Do gentio nos matos rebelado
 
Contínua perda nas lavouras sente.
 
Queimada a planta foi, perdido o gado,
 
E, cercado o arraial em contingente,
 
Viu Coutinho por bárbara violência
 
Perdido o seu tesouro e diligência
 
XXX
 
Na geral aflição do luso povo
 
A lugar se recorre mais tranqüilo;
 
Buscamos nos Ilhéus um sítio novo
 
Contra a turba feroz, seguro asilo.
 
E já Coutinho se dispõe de novo,
 
Vendo manso o gentio, a reduzi-lo,
 
Fabricando colônia de mais dura,
 
Menos fecunda, sim, mas mais segura.
 
XXXI
 
Mas os Tupinambás, melhor cuidando,
 
Com promessas os nossos convidavam,
 
Com mil amigas provas protestando
 
De conservar a paz que antes guardavam,
 
Creu o infeliz Coutinho, celebrando
 
Pactos que segurança a todos davam;
 
E, sem temor de mais, voltar queria
 
Ao Recôncavo antigo da Bahia.
 
XXXII
 
E já no mar a frota se equipava,
 
E cada um de nós na empresa absorto,
 
Sem temor, ou receio, só cuidava
 
Em fazer ao Recôncavo transporto,
 
Navegamos o espaço que distava,
 
E, tendo à vista o desejado porto,
 
Com fúria o mar aos astros se levanta,
 
Em cerração do céu que à vista espanta.
 
XXXIII
 
O ar caliginoso e em névoa impuro
 
Tirou-nos toda a vista, e sem destino
 
Batemos cegos num penhasco duro,
 
Sem termos do lugar notícia ou tino.
 
Neste momento horrível, transe escuro,
 
Suplicando o favor do céu divino,
 
Vemos a nau, com hórridos fracassos,
 
Desfazer-se na penha em mil pedaços.
 
XXXIV
 
Ficamos, como o entendes, alagados,
 
Nadando em meio da procela horrenda;
 
Uns das ondas se afogam devorados,
 
Outros na praia em confusão tremenda.
 
E eis que os cruéis tupis encarniçados
 
Com frechas se empenharam na contenda,
 
Por levar-nos da areia semi-vivos
 
À sorte dos seus míseros cativos.
 
XXXV
 
Muitos vimos dos bárbaros comidos,
 
Alguns dispostos ao funesto ocaso,
 
Aflitos todos nós e esmorecidos,
 
E esperando qualquer seu triste prazo;
 
Mas de ti sobretudo condoídos,
 
Triste Coutinho, que no acerbo caso,
 
Depois de triunfar da Ásia assombrada,
 
Perdeste infelizmente a vida amada.
 
XXXVI
 
Tu, que mil vezes no remoto oriente
 
Levantaste troféus de gloria onustos,
 
A quem cedera o Malabar potente
 
Em armadas e exércitos robustos;
 
Tu, que foste o terror da índica gente,
 
Que da Lísia humilhaste aos reis augustos,
 
Lá estava entanto a tua sorte escrita
 
De vires a acabar nesta desdita."
 
XXXVII
 
Mais prosseguir não pôde sufocado
 
O bom Garcez em amargoso pranto;
 
E condoeu-se Diogo, recordado
 
De ver-se em outro tempo em caso tanto;
 
E, havendo os naufragantes consolado:
 
" Não sou (diz) insensível, que sei quanto
 
Acerbo o caso é, cruel o artigo,
 
E a piedade aprendi no meu perigo.
 
XXXVIII
 
Recebei, entretanto, valorosos
 
Corn magnânimo peito a adversidade;
 
Conseguireis por transes perigosos
 
Fazer-vos dignos da imortalidade.
 
Deixareis monumentos gloriosos
 
A uma longa e feliz posteridade;
 
E ganhando obtereis com tanta glória
 
Um nome eterno nos padrões da história."
 
XXXIX
 
Disse o piedoso herói, reconhecendo
 
Ao hispano monarca pelo enviado
 
O distinto favor, e a mercê tendo
 
Achar memória no real agrado.
 
À nau depois os sócios recolhendo,
 
No Recôncavo entrava desejado,
 
Onde a vista formosa da Bahia
 
Com perspectiva amena aparecia.
 
XL
 
A ver na estranha nau que gente aporte
 
Desde o interior sertão turba recresce,
 
E, bem que diferente em trajo e porte,
 
Catarina dos seus se reconhece.
 
Entre aplausos recebe a nação forte
 
O grão-Caramuru, como merece,
 
Mostrando pelo amor e reverência
 
No antigo afeto a nova obediência.
 
X LI
 
Carrega entanto o lenho desejado
 
A nau de Du-Plessis, que Diogo estuda
 
Que seja em toda a terra obsequiado,
 
Dando-lhe ao talho da madeira ajuda.
 
Um carijó, porém, nisto empregado,
 
Enquanto a carga em toda a nau se muda,
 
Uma imagem roubou formosa e bela,
 
Que a nau venera na interior capela.
 
XLII
 
Observou-a Diogo na cabana
 
Tratada dos Tupis com reverência,
 
Estimando-a por coisa mais que humana,
 
Que excedia dos seus a inteligência.
 
Surprendeu-se da imagem soberana
 
O lusitano herói; e à competência
 
Com eles venerando a Mãe Divina
 
Chama a vê-la a piedosa Catarina.
 
XLIII
 
Pôs-lhe os olhos a dama, e transportada:
 
"Esta é (disse) , é esta a grã-senhora
 
Que vi no doce sonho arrebatada,
 
Mais que o sol pura, mais gentil que a aurora!
 
Eis aqui! esta é a imagem veneranda,
 
Este era aquele roubo, entendo agora :
 
Oh minha grande sorte! Oh imensa dita!
 
Isto me quis dizer a Mãe bendita."
 
 
XLIV
 
Dizendo assim, com ânsia fervorosa,
 
Prostrada, abraça a imagem veneranda;
 
Beija, aperta-a, de gosto lacrimosa
 
Mil saudosos ais ao céu lhe manda.
 
"Aqui vos venho achar, Mãe piedosa,
 
No meio (disse) desta gente infanda!
 
Infanda como eu fui, se o vosso lume
 
Não me emendara o bárbaro costume."
 
XLV
 
Olha entanto suspensa a gente bruta,
 
E os excessos que vê cuidando admira;
 
Nem concebe nas vozes que lhe escuta
 
Se prazer seja, se de dor suspira;
 
Mas, como a imagem celestial reputa,
 
Quanto à dama piedosa obrando vira
 
Qualquer à imitação fazer deseja,
 
E este a adora, outro a abraça, e aquele a beija.
 
XLVI
 
O lusitano e franco religioso
 
Veneraram com fé prodígio tanto,
 
Lembrando-se do sonho portentoso
 
Com claro indício do presságio santo,
 
Enquanto o brutal povo numeroso
 
Tudo nota em um êxtase de espanto,
 
Até que a um templo em pompa veneranda
 
A pia multidão a imagem manda.
 
XLVII
 
Por santa invocação foi aclamada
 
A senhora da Graça, e com fé pia
 
Foi desde aquele dia venerada
 
Singular Protetora da Bahia.
 
Igreja primitiva dedicada
 
Em meio às trevas dessa gente impia,
 
Memorável (se a fama é verdadeira)
 
Porque em todo o Brasil fora a primeira.
 
XLVIII
 
 
Neste festejo a plebe se entretinha,
 
E eis que uma salva se ouve estrepitosa
 
De grande armada, que estendendo vinha
 
Galhardetes e flâmulas lustrosa.
 
Tudo ao rumor da frota se encaminha,
 
Vendo a bandeira tremular famosa,
 
Que no brasão das quinas representa
 
A redenção que o céu na terra intenta.
 
XLIX
 
Era Tomé de Sousa o comandante.
 
Que ali governador fora mandado
 
Com multidão de gentes abundante,
 
Para dar forma ao povo começado.
 
Num sítio com mil mangues verdejante,
 
Que o grão-Caramuru tinha habitado,
 
Da colônia, que às tabas se assemelha,
 
O nome nos ficou de Vila Velha.
 
L
 
Ali por principal constituído
 
Foi dos Tupinambás o claro Diogo
 
Das tabas do sertão reconhecido,
 
Como dragão do mar, filho do fogo.
 
Catarina, por sangue esclarecido,
 
Herda de seus avós o império logo (1),
 
Convocando à Bahia nesta idéia
 
Dos seus Tupinambás toda assembléia.
 
LI
 
A taba de Gupeva, já habitada,
 
Onde hoje é Vila Velha, a turba corre;
 
Das outras tabas toda a gente armada
 
Com os seus principais a ouvir concorre.
 
Toda a cidade em corpo congregada
 
A grande casa concorreu da torre,
 
Paço de Catarina, que na empresa
 
Presidia aos Tupis, como princesa.
 
LII
 
A seu lado Diogo, e Sousa armado,
 
À Câmara preside da Bahia; (2)
 
O clero santo a Deus tendo invocado,
 
Ouviu-se dos clarins doce harmonia.
 
A tropa portuguesa ocupa um lado,
 
Todo o outro espaço o bárbaro cobria,
 
E, em meio a cada casta ali presente,
 
Brilha emplumado a principal potente.
 
LIII
 
De varões apostólicos um bando
 
Tem de inocentes o esquadrão disposto,
 
Que iam na santa fé disciplinando.
 
Todos assistem com modesto rosto,
 
O catecismo em cântico entoando,
 
No idioma brasílico composto
 
Do exército, que Inácio à igreja alista,
 
Para emprender a bárbara conquista.
 
LIV
 
Sentiu da pátria o público proveito
 
O monarca piíssimo que impera,
 
E estes varões famosos tinha eleito
 
A instruir o Brasil na fé sincera.
 
Eles toda a conquista houveram feito,
 
E o imenso gentio à fé viera,
 
Se cuidasse fervente o santo zelo, (3)
 
Sem humano interesse em convertê-lo.
 
LV
 
São desta espécie os operários santos,
 
Que com fadiga dura, intenção reta,
 
Padecem pela fé trabalhos tantos,
 
O Nóbrega famoso, o claro Anchieta.
 
Por meio de perigos e de espantos,
 
Sem temer do gentio a cruel seta,
 
Todo o vasto sertão têm penetrado,
 
E a fé com mil trabalhos propagado.
 
LVI
 
Muitos destes ali, velando pios,
 
Dentro às tocas das arvores ocultos,
 
Sofrem riscos, trabalhos, fomes, frios,
 
Sem recear os bárbaros insultos;
 
Penetram matos, atravessam rios,
 
Buscando nos terrenos mais incultos
 
Com imensa fadiga e pio ganho
 
Esse perdido, mísero rebanho.
 
LVII
 
Mais de um verás pela campanha vasta
 
Derramar pela fé ditoso sangue:
 
Quem morto às chamas o gentio arrasta,
 
Quem deixa a seta com o tiro exangue.
 
Vê-los-ás discorrer de casta em casta,
 
Onde o rude pagão nas trevas langue,
 
E ao céu lucrando as miseráveis almas,
 
Carregados subir de ínclitas palmas.
 
LVIII
 
Com corte tanta no sublime Paço,
 
Que a grã-Casa da Torre se apelida,
 
Orando Catarina um breve espaço,
 
O trono ocupa e as atenções convida.
 
Tinha emplumada a fronte, e o forte braço,
 
Como insígnia de império conhecida,
 
Um marraque por cetro sustentava,
 
Que toda a turba com respeito olhava.
 
LIX
 
" Venturosos paisanos, que o céu ama,
 
(Disse a dama real) , povo disperso,
 
Que ele ao rebanho seu piedoso chama,
 
Desde o antigo dilúvio em sombra imerso!
 
Hoje vos quer livrar da averna chama,
 
Vendo arrastar-vos do dragão perverso,
 
Esse Grão-Deus que de uma crua sublime
 
A pena satisfaz e a culpa oprime.
 
LX
 
Da antiga Lusitânia o rei potente,
 
Acompanhando o sol no giro imenso,
 
Vai rodeando todo o globo ingente,
 
Desde o aurífero Tago ao China extenso.
 
Por ele a fé recebe todo o Oriente,
 
O mouro cede de pavor suspenso,
 
E Europa admira pelo mar profundo
 
Que o seu reino menor subjugue um mundo.
 
LXI
 
Deste grande monarca é tanto o império,
 
Que aonde a própria luz não se caminha,
 
Nos limites extremos do hemisfério,
 
O lusitano exército caminha.
 
A África e Ilhas, o Árabe Cimério,
 
Duas vezes passando a imensa linha,
 
Possui tantos povos, que a contá-los
 
São mais que os portugueses seus vassalos.
 
LXII
 
Este rei glorioso foi o eleito,
 
Por providência da eternal bondade,
 
A fazer do Brasil um povo aceito
 
E digno de a gozar na eternidade.
 
Pudera desta gente o forte peito,
 
Tendo na Ásia opulenta imensidade,
 
Estes nossos sertões trocar incultos
 
Por nações ricas e terrenos cultos.
 
LXIII
 
Pudera com as forças, que aqui manda,
 
Com pouca utilidade, ou mais que fora,
 
Domar o roxo mar por toda banda,
 
E o reino todo possuir da aurora.
 
Mas a piedade faz, com que comanda,
 
Que, antepondo o Brasil a tudo agora,
 
Mostre aos homens que o impulso que o domina
 
É propagar no mundo a fé divina.
 
LXIV
 
Generoso pensar! sagrada empresa!
 
Longe da vã política de Estado,
 
Que, se a milícia, se o comércio presa,
 
Não tem da Santa Fé menor cuidado.
 
Mas o que rege a vasta redondeza,
 
E a sorte dos impérios tem fixado,
 
La vira tempo enfim que o zelo pague,
 
E em ouro o Tago do Brasil se alague.
 
LXV
 
Um rei, se não me engana oculto instinto,
 
Quando o Quarto remir as duas quinas,
 
Depois do Sexto Afonso e Pedro extinto,
 
Abrira no sertão famosas minas.
 
Fará de ouro Lisboa D. João Quinto,
 
Altas disposições do céu divinas!
 
Pois no tremor e incêndio, que a ameaça,
 
Prepara este subsidio à grã-desgraça.
 
LXVI
 
Tempo vira que a dama majestosa
 
Por soberana a Lísia reconheça,
 
Época ilustre, insigne e venturosa,
 
Em que tenha uma santa por cabeça.
 
Descera sobre o reino a paz formosa,
 
E com a paz fará que a gloria desça,
 
Atlantes tendo de seu régio Estado
 
Quatro sábios e um ínclito prelado.
 
LXVII
 
E tu, monarca justo, do céu vindo,
 
Venha-te a palma sobre o empíreo tarda,
 
E pai da pátria, ao reino presidindo,
 
Com zelo a antiga fé nos nossos guarda!
 
Enche o grão-nome, as portas reprimindo
 
Do monstro Averno, que nos fundos arda;
 
Que deixe Portugal, que na fé medra,
 
E Cristo firma sobre a imóvel pedra.
 
LXVIII
 
Esta insigne progênie o céu promete,
 
Brasil agora rude, aos teus vindouros!
 
O colo humilde entanto ao rei submete,
 
E oferece-lhe contente os teus tesouros.
 
E entre tantas nações, que ao jugo mete
 
À sombra Portugal dos verdes louros,
 
Sem provares da guerra o furor vário,
 
Chega ao trono a humilhar-te voluntário.
 
LXIX
 
E, se princesa me chamais sublime
 
Dos vossos principais nascida herdeira,
 
Se ao grão-Caramuru, que o raio imprime,
 
Jurastes vassalagem verdadeira,
 
Ele da sujeição tudo hoje exime,
 
Cedendo ao trono luso a posse inteira,
 
E eu do monarca na real pessoa
 
Cedo todo o direito e entrego a c’roa. "
 
LXX
 
Dizendo assim, a dama generosa
 
Desce do trono e o esplêndido diadema
 
Entrega ao Sousa, e toma majestosa
 
Um baixo assento com modéstia extrema.
 
Pasma o Tupinambá, vendo a formosa,
 
Nobre Paraguassu, de claro estema,
 
Que, o seu régio marra que ao Sousa dando,
 
Despia a pompa do real comando.
 
LXXI
 
Logo o Caramuru, na língua e estilo
 
Dos naturais falando ao chefe novo,
 
Posto tudo em silêncio para ouvi-lo,
 
O escudo da Bahia mostra ao povo:
 
A pomba de Noé, que ao noto asilo
 
Com ramo de oliveira vem de novo,
 
Dando a entender a paz, que à crua gente
 
Com a fé dispensava o rei clemente.
 
LXXII
 
" Este é o título (disse) verdadeiro,
 
Com que ocupa o Brasil nesta anarquia:
 
O muito alto senhor D. João Terceiro,
 
A fim que em paz se tenha a turba impia,
 
Porque ao supremo ser e ente primeiro
 
Reconheça o sertão, sirva a Bahia ;
 
E porque propagada a fé se veja
 
No novo império que conquista à igreja. "
 
LXXIII
 
Disse Diogo, e as quinas tremulando,
 
" Real, Real! com voz clama expressiva,
 
Por D. João monarca venerando,
 
Príncipe do Brasil, que fausto viva. "
 
Responde a turba os vivas replicando,
 
Com tão alto clamor que o ouvido priva,
 
É ao rumor dos canhões e das cornetas
 
Correspondem as bélicas trombetas.
 
LXXIV
 
Então, sentado sobre o sólio ingente,
 
Que já desocupara a dama bela,
 
Como governador da lusa gente,
 
Tomé de Sousa cortejado dela,
 
Toma posse legítima e patente
 
Da Bahia e sertão, e sem querê-la
 
Do habitante, que os campos desocupa,
 
Em nome dos seus reis a terra ocupa.
 
LXXV
 
Depois ao povo e ilustre magistrado
 
Por leis do novo império manifesta
 
Que seja o nome santo venerado,
 
Que cesse nos sertões a guerra infesta;
 
Que o homicídio se veja castigado,
 
Que o antropófago atroz, que a lei detesta,
 
Que a embaixada evangélica, que envia,
 
Se ouça com paz, que se honre o que a anuncia.
 
LXXVI
 
Que o indígena seja ali empregado,
 
E que à sombra das leis tranqüilo esteja ;
 
Que viva em liberdade conservado,
 
Sem que oprimido dos colonos seja;
 
Que às expensas do rei seja educado
 
O neófito, que abraça a santa igreja,
 
E que na santa empresa ao missionário
 
Subministre subsídio o régio erário.
 
LXXVII
 
Por fim publica do monarca reto
 
Em favor de Diogo e Catarina
 
Um real honorífico decreto,
 
Que ao seu merecimento honras destina:
 
E em recompensa do leal afeto,
 
Com que a coroa a dama lhe consina,
 
Manda honrar na colônia lusitana
 
Diogo Álvares Correia, de Viana.
 
 
(1) De seus avós. - Vê-se ainda hoje a inscrição da sua sepultura, que a intitula Princesa do Brasil.
 
(2) A Câmara. - Ainda hoje por assento feito em câmara se faz na Bahia o aniversário de Catarina Álvares com esta memória.
 
( 3) O Santo zelo. – Não referimos esta expressão aos sujeitos de que se fala, que fora uma contradição; mas vagamente a quem houvesse sido causa de decaírem aquelas ; missões.
 
FIM