Caramuru/VII: diferenças entre revisões

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==[[Página:Caramuru 1781.djvu/201]]==
<poem>
;I
Era o tempo em que o sol na vasta esfera
O claro dia com a noite iguala,
E o velho outono, que o calor modera,
De seus pâmpanos tece a verde gala;
E quando todo monte Baco altera,
E os capazes tonéis na adega abala,
Tocava a franca nau do claro Sena
Na deliciosa foz a praia amena.
 
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;II
Na grã-Lutécia, capital do estado,
A ligeira falua dava fundo,
E esse orbe na cidade abreviado
Enchia Diogo de um prazer jocundo;
Templos, torres, palácios, casas, prados,
O famoso Ateneu mestre do mundo,
A corte mais augusta, que se avista,
Enche-lhe o coração e assombra a vista.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/202]]==
<poem>
;III
Paraguassu, porém, que jamais vira
Espetáculo igual, suspensa pára:
Nem fala, nem se volta, nem respira,
Imóvel a pestana e fixa a cara
E cheia a fantasia do que admira,
Causa lhe tanto pasmo a visão rara,
Que estúpida parece ter perdido
O discurso, a memória, a voz e o ouvido.
 
;IV
Qual pende o terno infante ao colo da ama,
Se um novo e belo objeto tem presente,
Que nem a doce mãe, que ao peito o chama,
Nem os mimos do pai pasmado sente,
Toda alma no que vê fixo derrama,
E só parece pelo olhar vivente,
Não foi da americana o ar diverso,
Vendo em Paris a suma do universo.
 
;V
Por fama que se ouviu da novidade,
A admirar o espetáculo se ajunta
Curiosa do sucesso a grã-cidade,
E um se admira, outro o conta, algum pergunta.
Cresce o vago rumor sobre a verdade;
E a plebe, que a Diogo acode junta,
Dele e da esposa divulgada tinha
Que era o rei do Brasil e ela a rainha.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/203]]==
<poem>
;VI
E já avistavam do palácio augusto
Em bela perspectiva o régio espaço,
E o átrio vendo de troféus onusto,
Entram do franco rei no excelso paço.
Cinge as portas exército robusto,
Brilhante guarda, de que o invicto braço
Ao lado sempre da real pessoa,
Sustenta as lises e defende a cr’oa.
 
;VII
Era ali cristianíssimo reinante
Entre os franceses o segundo Henrique,
Meta então do germano fulminante,
Que opôs de Carlos às vitórias dique:
Ortodoxo monarca, da fé amante,
Que faz que em toda a França imóvel fique
O antigo culto e religião paterna,
Que invadiu de Calvino a fúria averna.
 
;VIII
Senta se ao régio lado a grã-princesa,
Formosa Lis, que do Arno florentino
Trouxe à França um tesouro de beleza,
E outro maior no engenho peregrino:
Formoso par, que a sábia natureza
Não sem instinto conjugou divino;
Por que, roubando Henrique a dura morte,
Sustente França Catarina a forte.
 
</poem>
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<poem>
;IX
Ao trono cristianíssimo prostrado,
A régia mão dos dois monarcas beija
O bom Diogo, tendo a esposa ao lado,
E faz que atenta toda a corte esteja;
E, havendo por três vezes humilhado,
A fronte aos reis, que respeitar deseja,
É fama que com gesto reverente
Falara deste modo ao rei potente:
 
;X
"Tendes a vossos pés, Sire, invocando
No trono da grandeza a majestade,
Estes dois peregrinos, que, sulcando
Do poderoso mar a imensidade,
No império, que regeis com sábio mando,
Buscam asilo na real piedade;
E a vós e ao vosso reino se dirigem,
Donde tem Portugal o nome e a origem.
 
;XI
O Brasil, Sire, infunde-me a confiança
Que ali renasça o português império,
Que, estendendo-se ao Cabo da Esperança,
Tem descoberto ao mundo outro hemisfério.
Tempo virá, se o vaticínio o alcança,
Que o cadente esplendor do nome hespério
O século, em que está, recobre de ouro,
E lhe cinja o Brasil mais nobre louro.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/205]]==
<poem>
;XII
E tu, que ao luso reino um germe augusto
No grão-Burgundo a propagar mandaste,
Contempla, ó França heróica, o império justo
Como ramo do teu, que ali plantaste;
E, se o inculto Brasil, se o Cafre adusto
Por teus famosos netos subjugaste,
Admite ao trono do Solar primeiro
Este teu não indigno aventureiro.
 
;XIII
E esta, que ao lado meu teu cetro beija,
Princesa do Brasil, que um tempo fora,
No seio da cristã piedosa Igreja,
Como mãe pia regenera agora.
É bem que a mãe primeira o Brasil veja,
Donde a gente nasceu, que lhe é senhora;
E, quando Lusitânia lhe é rainha,
Tome o Brasil a França por madrinha."
 
;XIV
Disse o herói generoso, e o rei potente,
Recordando os anais de antiga história,
Com vista majestosa, mas clemente,
Deu sinal de agradar-lhe esta memória.
Com sussurro entretanto a áulica gente
Celebra, como própria, a lusa glória;
E, impondo-lhe silêncio alto respeito,
Respondem com os olhos e co peito.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/206]]==
<poem>
;XV
Mongoméry, que serve na assembléia
De intérprete do rei, falou benigno,
Conforme na resposta à justa idéia,
De que o bom Diogo se mostrou tão digno,
Nem vendo a Lísia de conquistas cheia
Lhe inspira o impulso da ambição maligno,
A invejar-lhe já mais troféus tamanhos,
Que em prole sua não reputa estranhos.
 
;XVI
"Ide, disse a rainha, ó par ditoso,
Que o banho santo, donde a culpa amara
Se apague nesse peito generoso,
Comigo a França apadrinhar prepara.
E, quando o sol seu curso luminoso
Três vezes repetir na esfera clara,
Será das nódoas do tartáreo abismo
Lavada a bela dama no batismo."
 
;XVII
Era o dia em que é fama que o homem feito
De terra foi na estátua preciosa,
Em que Deus lhe infundira no seu peito
Do soberano ser cópia formosa.
Dia do nosso rito ao culto eleito
De Simão e Tadeu, quando formosa
Entrou Paraguassu com feliz sorte
No banho santo, rodeando-a a corte.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/207]]==
<poem>
;XVIII
À roda o real clero e grão-Jerarca
Forma em meio à capela a augusta linha;
Entre os pares seguia o bom monarca,
E ao lado da neófita a rainha.
Vê-se cópia de lumes nada parca,
E a turba imensa que das guardas vinha,
E, dando o nome a augusta à nobre dama,
Põe-lhe o seu próprio e Catarina a chama.
 
;XIX
Banhada a formosíssima donzela
No santo Crisma, que os cristãos confirma,
Os desposórios na real capela
Com o valente Diogo amante firma.
Catarina Alves se nomeia a bela,
De quem a glória no troféu se afirma,
Com que a Bahia, que lhe foi senhora,
Noutro tempo, a confessa, e fundadora.
 
;XX
Prepara-se um banquete com grandeza,
Em que a cópia compita coa elegância,
E aos dois consortes se dispõe a mesa
No magnífico paço em régia estância.
Nem se dedigna a Soberana Alteza,
Depois de os regalar com abundância,
De dar rainha e rei, de ouvir curiosos,
Uma audiência privada aos dois esposos.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/208]]==
<poem>
;XXI
"Depois (disse o monarca) que informado
De meus ministros tenho a história ouvido,
Como foste das ondas agitado,
Como da gente bárbara temido,
Sabendo que os sertões tens visitado,
E o centro do Brasil reconhecido,
Quero das terras, dos viventes, plantas,
Que a história contes de províncias tantas."
 
;XXII
"Mandas-me, rei augusto, que te exponha
(Diz cheio de respeito o herói prudente),
E aos olhos teus em um compêndio ponha
A história natural da oculta gente;
Se esperas de mim, Sire, que componha
Exata narração de cópia ingente,
Empresa tanta é, quando obedeça,
Que faz que o tempo falte e a voz faleça.
 
;XXIII
Mil e cinqüenta e seis léguas de costa,
De vales e arvoredos revestida,
Tem a terra brasílica composta
De montes de grandeza desmedida.
Os Guararapes Borborema posta
Sobre as nuvens na cima recrescida,
A serra de Aimorés, que ao pólo é raia,
As de Ibo-ti-catu e Itatiaia.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/209]]==
<poem>
;XXIV
Nos vastos rios e altas alagoas
Alares dentro das terras representa;
Coberto o Grão-Pará de mil canoas,
Tem na espantosa foz léguas oitenta.
Por dezessete se deságua boas
O vasto Maranhão; léguas quarenta
O Jaguaribe dista; outro se engrossa
De S. Francisco, com que o mar se adoça.
 
;XXV
O Sergipe, o real de licor puro,
Que com vinte o sertão regando correm,
Santa Cruz, que no porto entra seguro,
Depois de trinta, que no mar concorrem;
Logo o das Contas, o Taigipe impuro,
Que, abrindo a vasta foz, no oceano morrem.
O Rio Doce, a Cananéia, a Prata,
E outros cinqüenta mais, com que arremata.
 
;XXVI
O mais rico e importante vegetável
É a doce cana, donde o açúcar brota,
Em pouco às nossas canas comparável;
Mas nas do milho proporção se nota:
Com manobra expedita e praticável,
Espremido em moenda, o suco bota,
Que acaso a antiguidade imaginava,
Quando o néctar e ambrósia celebrava.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/210]]==
<poem>
;XXVII
Outra planta de muitos desejada,
Por fragrância que o olfato ativa sente,
Erva santa dos nossos foi chamada,
Mas tabaco depois da espana gente,
Pelo franco Nicot manipulada,
Expele a bile, e o cérebro cadente
Socorre em modo tal, que em quem o tome
Parece o impulso de o tomar que é fome.
 
;XXVIII
É sustento comum raiz presada,
Donde se extrai com arte útil farinha,
Que, saudável ao corpo, ao gosto agrada,
E por delícia dos Brasis se tinha.
Depois que em bolandeiras foi ralada,
No Tapiti se espreme e se convinha;
Fazem a puba então e a tapioca,
Que é todo o mimo e flor da mandioca.
 
;XXIX
Chama o agricultor raiz gostosa
Aipi por nome, e em gosto se parece
Com a mole castanha saborosa,
De que tira o país vário interesse,
Ótimo arroz em cópia prodigiosa
Sem cultura nos campos aparece,
No Pará, Cuiabá, por modo feito,
Que iguala na bondade o mais perfeito.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/211]]==
<poem>
;XXX
Ervilha, feijão, favas, milho e trigo,
Tudo a terra produz, se se transplanta;
Fruta também, o pomo, a pera, o figo
Com bífera colheita e em cópia tanta,
Que mais que no país que o dera antigo
No Brasil frutifica qualquer planta;
Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente
Os que a nós transplantamos de outra gente.
 
;XXXI
Nas comestíveis ervas, é louvada
O quiabo, o jiló, os maxixeres,
A maniçoba peitoral presada,
A taioba agradável nos comeres,
O palmito de folha delicada,
E outras mil ervas, que, se usar quiseres,
Acharás na opulenta natureza
Sempre com mimo preparada a mesa.
 
;XXXII
Sensível chama-se erva pudibunda,
Que, quando a mão chegando, alguém lhe ponha,
Parece que do tato se confunda
E que fuja o que o toca por vergonha.
Nem torna a si da confusão profunda,
Quando ausente o agressor se lhe não ponha,
Documento à alma casta, que lhe indica
Que quem cauta não foi nunca é pudica.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/212]]==
<poem>
;XXXIII
De ervas medicinais cópia tão rara
Tem no mato o Brasil e na campina,
Que quem toda a virtude lhe explorara
Por demais recorrera a Medicina.
Nasce a gelapa ali, a sene amara,
O filopódio, a malva, o pau da China,
A caroba, a capeba, e mil que agora
Conhece a bruta gente e a nossa ignora.
 
;XXXIV
Tem mimosos legumes, que não cedem
Aos que usamos na Europa mais presados:
Gingibre, gergelim, que os mais excedem,
Mendubim, mangaló, que usam guisados;
Alguns medicinais, com que despedem
Do peito estilicídios radicados;
Tem o cará, o inhame, e em cópia grata
Mangarás, mangaritos e batata.
 
;XXXV
Das flores naturais pelo ar brilhante
É com causa entre as mais rainha a rosa,
Branca saindo a aurora rutilante,
E ao meio-dia tinta em cor lustrosa;
Porém, crescendo a chama rutilante,
É purpúrea de tarde a cor formosa;
Maravilha que a Clície competira,
Vendo que muda a cor, quando o sol gira.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/213]]==
<poem>
;XXXVI
Outra engraçada flor, que em ramos pende
(Chamam de S. João), por bela passa
Mais que quantas o prado ali comprende,
Seja na bela cor, seja na graça:
Entre a copada rama, que se estende
Em vistosa aparência, a flor se enlaça
Dando a ver por diante e nas espaldas
Cachos de ouro com verdes esmeraldas.
 
;XXXVII
Nem tu me esquecerás, flor admirada.
Em quem não sei se a graça, se a natura
Fez da Paixão do Redentor Sagrada
Uma formosa e natural pintura;
Pende com pomos mil sobre a latada,
Áureos na cor, redondos na figura,
O âmago fresco, doce e rubicundo,
Que o sangue indica que salvara o mundo.
 
;XXXVIII
Com densa cópia a folha se derrama,
Que muito à vulgar hera é parecida,
Entressachando pela verde rama
Mil quadros da Paixão de Autor da vida;
Milagre natural, que a mente chama
Com impulsos da graça, que a convida,
A pintar sobre a flor aos nossos olhos
A cruz de Cristo, as chagas e os abrolhos.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/214]]==
<poem>
;XXXIX
É na forma redonda, qual diadema,
De pontas, como espinhos, rodeada,
A coluna no meio, e um claro emblema
Das chagas santas e da cruz sagrada;
Vêem-se os três cravos e na parte extrema
Com arte a cruel lança figurada;
A cor é branca, mas de um roxo exangue,
Salpicada recorda o pio sangue.
 
;XL
Prodígio raro, estranha maravilha,
Com que tanto mistério se retrata!
Onde em meio das trevas a fé brilha,
Que tanto desconhece a gente ingrata!
Assim, do lado seu nascendo filha
A humana espécie, Deus piedoso trata,
E faz que quando a graça em si despreza,
Lhe pregue co esta flor a natureza.
 
;XLI
Outras flores suaves e admiráveis
Bordam com vária cor campinas belas,
E em vária multidão por agradáveis
A vista encantam, transportada em vê-las;
Jasmins vermelhos há, que inumeráveis
Cobrem paredes, tetos e janelas;
E, sendo por miúdos mal distintos,
Entretecem purpúreos labirintos.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/215]]==
<poem>
;XLII
As açucenas são talvez fragrantes,
Como as nossas na folha organizadas;
Algumas no candor lustram brilhantes,
Outras na cor reluzem nacaradas.
Os bredos namorados rutilantes,
As flores de courana celebradas,
E outras sem conto pelo prado imenso,
Que deixam quem as vê como suspenso.
 
;XLIII
Das frutas do país a mais louvada
É o régio ananás, fruta tão boa,
Que a mesma natureza namorada
Quis como a rei cingi-la da coroa.
Tão grato cheiro dá, que uma talhada
Surprende o olfato de qualquer pessoa;
Que, a não ter do ananás distinto aviso,
Fragrância a cuidará do Paraíso.
 
;XLIV
As fragrantes pitombas delicadas
São como gemas de ovos na figura;
As pitangas com cores golpeadas
Dão refrigério na febril secura;
As formosas goiabas nacaradas,
As bananas famosas na doçura,
Fruta, que em cachos pende e cuida a gente
Que fora o figo da cruel serpente.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/216]]==
<poem>
;XLV
Distingue-se entre as mais na forma e gosto
Pendente de alto ramo o coco duro,
Que em grande casca no exterior composto,
Enche o vaso interior de um licor puro;
Licor que, à competência sendo posto,
Do antigo néctar fora o nome escuro;
Dentro tem carne branca como a amêndoa,
Que a alguns enfermos foi vital, comendo-a.
 
;XLVI
Não são menos que as outras saborosas
As várias frutas do Brasil campestres:
Com gala de ouro e púrpura vistosas,
Brilha a mangaba e os mocuiés silvestres;
Os mamões, morieis, e outras famosas,
De que os rudes cabelos foram mestres,
Que ensinaram os nomes, que, se estilam,
Janipo e caju vinhos distilam.
 
;XLVII
Nas preciosas árvores se conta
O cacau, droga em Espanha tão comua,
Pouco na altura mais que arbusto monta,
E rende novo fruto em cada lua;
A baunilha nos cipós desponta,
Que tem no chocolate a parte sua,
Nasce em bainhas, como paus de lacre,
De um suco oleoso, grato o cheiro e acre.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/217]]==
<poem>
;XLVIII
Ótimo anil de planta pequenina
Entre as brenhas incultas se recolhe;
Tece-se a roupa do algodão mais fina,
Que em cópia abundantíssima se colhe;
Que, se a abundância à indústria se combina,
Cessando a inércia, que mil lucros tolhe,
Houvera no algodão, que ali se topa,
Roupa com que vestir-se toda a Europa.
 
;XLIX
O uruçu, fruta de árvore pequena,
Como lima, em pirâmide elevada,
De que um extrato a diligência ordena,
Que a escarlata produz mais nacarada;
De imortal tronco a tarajaba amena
Rende a áurea cor dos belgas desejada,
O pau brasil, de que o engenhoso norte
Costuma extrair cor de toda a sorte.
 
;L
Há de bálsamos árvores copadas,
Que por léguas e léguas se dilatam;
Folhas cinzentas, como a murta, obradas,
E em grato aroma os troncos se desatam,
Se neles pelas luas são sangradas;
E uso vário fazendo os que contratam,
Lavram remédios mil e obras lustrosas,
Contas de cheiro e caixas preciosas.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/218]]==
<poem>
;LI
A copaíba em curas aplaudida,
Que a médica ciência estima tanto,
A bicuíba no óleo conhecida,
A almécega, que se usa no quebranto;
A preciosa madeira apetecida,
Que o nome nos merece de pau-santo,
O salsafraz cheiroso, de que as praças
Se vêem cobertas com formosas taças.
 
;LII
Quais ricas vegetáveis ametistas,
As águas do violete em vária casta,
O áureo pequiá com claras vistas,
Que noutros lenhos por matiz se engasta;
O vinhático pau, que quando avistas
Massa de ouro parece extensa e vasta;
O duro pau que ao ferro competira,
O angelim, tataipeva, o supopira.
 
;LIII
Troncos vários em cor e qualidade,
Que inteiriças nos fazem as canoas,
Dando a grossura tal capacidade,
Que andam remos quarenta e cem pessoas.
E há por todo o Brasil em quantidade
Madeiras para fábricas tão boas,
Que, trazendo-as ao mar por vastos rios,
Pode encher toda a Europa de navios.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/219]]==
<poem>
;LIV
Nutre a vasta região raros viventes
Em número sem conta e em natureza
Dos nossos animais tão diferentes,
Que enchem a vista da maior surpresa.
Os que têm mais comuns as nossas gentes
Ignora esta porção de redondeza:
O boi, cavalo, a ovelha, a cabra e o cão;
Mas, levados ali, sem conta são.
 
;LV
Todo o animal é fero ali, levado
Donde tinha o seu pasto competente;
Nem era lugar próprio ao nosso gado,
Que fora o bruto manso e fera a gente.
Como entre nós é o tigre arrebatado,
Cruel a onça, o javali fremente,
Feras as antas são americanas,
E próprias do Brasil as suraranas.
 
;LVI
Vêem-se cobras terríveis, monstruosas,
Que afugentam coa vista a gente fraca;
As jibóias, que cingem volumosas
Na cauda um touro, quando o dente o ataca;
Voa entre outras com forças horrorosas,
Batendo a aguda cauda a jararaca,
Com veneno, a quem fere tão presente,
Que logo em convulsão morrer se sente.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/220]]==
<poem>
;LVII
Entre outros bichos de que o bosque abunda,
Vê-se o espelho da gente, que é remissa,
No animal torpe de figura imunda,
A que o nome pusemos da preguiça:
Mostra no aspecto a lentidão profunda,
E, quando mais se bate e mais se atiça,
Conserva o tardo impulso por tal modo,
Que em poucos passos mete um dia todo.
 
;LVIII
Vê-se o cameleão, que não se observa
Que tenha, como os mais, por alimento
Ou folha, ou fruto, ou nota carne, ou erva,
Donde a plebe afirmou que pasta em vento;
Mas sendo certo que o ambiente ferva
De infinitos insetos, por sustento
Creio bem que se nutra na campanha
De quantos deles, respirando, apanha.
 
;LIX
Gira o sareué, como pirata,
Da criação doméstica inimigo;
À canção da guariba sempre ingrata
Responde o guassinim, que o segue amigo.
Da vária caça, que o cabelo mata,
A narração por longa não prossigo,
Veados, capivaras e coatias,
Pacas, teus, periás, tatus, cotias.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/221]]==
<poem>
;LX
O mono, que a espessura habita astuto,
De um ramo noutro buliçoso salta,
E para não se crer que nasceu bruto,
Parece que o falar somente falta;
O riso imita, e contrafaz o luto,
E a tanto sobre os mais o instinto exalta,
Que onde a espécie brutal chegar lhe veda
Tem arte natural com que o arremeda.
 
;LXI
Entre as voláteis caças mais mimosa,
A zabelé, que os francolins imita.
É de carne suave e deliciosa,
Que ao tapuia voraz a gula incita.
Logo a enha-popé, carne preciosa,
De que a titela mais o gosto irrita;
Pombas verás também nesses países,
Que em sabor, forma e gosto são perdizes.
 
;LXII
Juritis, pararis, tenras e gordas,
A hiraponga no gosto regalada,
As marrecas, que ao rio enchem as bordas,
As jacutingas, e a aracã presada.
E, se do lago na ribeira abordas
De galeirões e patos habitada,
Verás, correndo as águas na canoa,
A turba aquátil que, nadando, voa.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/222]]==
<poem>
;LXIII
Negou às aves do ar a natureza,
Na maior parte a música harmonia;
Mas compensa-se a vista na beleza
Do que pode faltar na melodia:
A pena no tucano mais se presa,
Que feita de ouro fino se diria,
Os guarazes pelo ostro tão luzidos,
Que parecem de púrpura vestidos.
 
;LXIV
Vão pelo ar loquazes papagaios,
Como nuvens voando em copia ingente,
Iguais na formosura aos verdes Maios,
Proferindo palavras como a gente.
Os periquitos com iguais ensaios.
O canindé, qual Íris reluzente;
Mas falam menos, da pronúncia avaras,
Gritando, as formosíssimas araras .
 
;LXV
Como melros, são negros os bicudos,
Mais destros e agradáveis no seu canto;
Na terra os sabiás sempre são mudos,
Mas junto d'água têm a voz que encanto.
Os coleirinhos no entoar agudos,
As patativas, que o saudoso pranto
Imitam requebrando com sons vários,
Os colibris e harmônicos canários.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/223]]==
<poem>
;LXVI
Das espécies marítimas de preço
Temos pérolas nestas preciosas;
Nem melhores aljôfares conheço
Que os das ostras brasílicas famosas;
Âmbar gris do melhor, mais denso e espesso,
Nas costas do Ceará se vê espaçosas,
Madrepérolas, conchas delicadas,
Umas parecem de ouro, outras prateadas.
 
;LXVII
Piscoso o mar de peixes mais mimosos,
Entre nós conhecidos rico abunda,
Linguados, sáveis, meros preciosos,
A agulha, de que o mar todo se inunda,
Robalos, salmonetes deliciosos,
O xerne, o voador, que na água afunda,
Pescadas, galo, arraias, e tainhas,
Carapaus, encharrocos e sardinhas.
 
;LXVIII
Outros peixes, que próprios são do clima,
Berupiras, vermelhos, e o garopa,
Pâmpanos, corimas, que o vulgo estima,
Os dourados, que presa a nossa Europa,
Carepebas, parus, nem desestima
A grande cópia, que nos mares topa,
A multidão vulgar do charéu vasto,
Que às pobres gentes subministra o pasto.
 
</poem>
==[[Página:Caramuru 1781.djvu/224]]==
<poem>
;LXIX
De junho a outubro para o mar se alarga,
Qual gigante marítimo, a baleia,
Que palmos vinte seis conta de larga,
Setenta de comprido, horrenda e feia;
Oprime as águas com a horrível carga,
E de oleosa gordura em roda cheia,
Convida o pescador que ao mar se deite,
Por fazer, derretendo-a, útil azeite.
 
;LXX
Tem por espinhas ossos desmarcados,
O ferro as duras peles representam,
Donde pendem mil buzios apegados,
Que de quanto lhe chupam se sustentam;
Não parecem da fronte separados
Os vastos corpos que na areia assentam.
Entre os olhos medonhos se ergue a tromba,
Que ondas vomita como aquátil bomba.
 
;LXXI
Na boca horrível, como vasta gruta,
Doze palmos comprida a língua pende.
Sem dentes, mas da boca imensa e bruta
Barbatanas quarenta ao longo estende.
Com elas para o estomago transmuta
Quanto por alimento nágua prende,
O peixe ou talvez carne, e do elemento
A fez imunda, que lhe dá sustento.
 
</poem>
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;LXXII
Duas asas nos ombros tem por braços,
Que aos lados vinte palmos se difundem,
Com asa e cauda os líquidos espaços
Batendo remam, quando o mar confundem;
E excitando no pélago fracassos,
Chorros de água nas naus de longe infundem.
E, andando o monstro sobre o mar boiante,
Crê que é ilha o inexperto navegante.
 
;LXXIII
Brilha o materno amor no monstro horrendo,
Que, vendo prevenida a gente armada,
Matar se deixa nágua combatendo,
Por dar fuga, morrendo, à prole amada.
Onde no filho o arpão caçam metendo,
Com que atraindo a mãe dentro à enseada
Desde a longa canoa se alenceia,
Ao lado de seus filho a baleia.
 
;LXXIV
Sobre a costa o marisco apetecido
No arrecife se colhe e nas ribeiras,
As lagostas, e o polvo retorcido,
Os lagostins, santolas, sapateiras,
Ostras famosas, camarão crescido,
Caranguejos também de mil maneiras,
Por entre os mangues, donde o tino perde
A humana vista em labirinto verde."
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