A Linha da Cor: diferenças entre revisões

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Revisão das 04h34min de 22 de abril de 2017

Poucos males são menos acessíveis à força da razão, ou mais tenazes em vida e poder, do que o preconceito de longa data. É uma desordem moral, que cria as condições necessárias para a sua própria existência, e que se fortalece, recusando toda contradição. Ele pinta um retrato odioso de acordo com sua própria imaginação doentia, e distorce as características do original imaginando-as para se adequar ao retrato. Como aqueles que acreditam na visibilidade de fantasmas podem facilmente vê-los, assim é sempre fácil enxergar qualidades repulsivas naqueles que desprezamos e odiamos.

O preconceito de raça tem, em algum momento da sua história, afligido todas as nações. "Eu sou mais santo que tu" se vangloriam as raças, como faziam os fariseus. Muito tempo depois da invasão normanda, e do declínio do poder normando, muito depois que os resistentes saxões tinham sacudido a poeira de sua humilhação e de forma grandiosa afirmou suas qualidades por todas as direções, os descendentes dos invasores continuam a considerar seus irmãos saxões como feitos de uma argila mais grosseira do que a deles mesmos, e não ficaram satisfeitos quando alguém da raça anterior veio junto deles ao sol e sua nobreza. Habituados a ver o saxão como um criado, um cavalariço, e um trabalhador braçal comum, oprimido e subalterno por séculos, foi fácil investi-lo com todos os tipos de peculiaridades odiosas, e negar-lhe todos os predicados viris. Apesar de oitocentos anos se passarem desde que o poder normando entrou na Inglaterra, os saxões durante séculos terem oferecido sua educação, sua literatura, sua linguagem e as suas leis ao mundo mais do que qualquer outro povo no planeta, os homens naquele país ainda se vangloriam de sua origem e perfeição normandas. Esta superstição da antiga grandeza serve para preencher os lados definhados de um orgulho racial sem sentido que se manteve quando o seu poder desapareceu. Com uma lição muito diferente daquela que este artigo foi concebido para impressionar, o grande Daniel Webster certa vez disse do povo de Massachusetts (cujos preconceitos neste caso específico eram corretos) que eles "tinham conquistado o mar, e tinham conquistado a terra" mas que "lhes restava conquistar seus preconceitos". E uma vez fomos informados que as pessoas de algumas vilas de Yorkshire alimentavam um preconceito tão forte e violento contra estrangeiros e forasteiros que se um deles se aventurasse a cruzar suas ruas seria apedrejado.

De todas as raças e variedades de homens que penaram com esse sentimento, as pessoas de cor deste país são as que mais o têm sofrido. Eles não podem recorrer a disfarces que lhes permitam escapar ao seu destino fatal. Eles carregam diante de si a evidência que os marca para a perseguição. Estão no ponto extremo de diferença com a raça caucasiana, e sua origem africana pode ser instantaneamente reconhecida, mesmo que esteja bem distante da raça africana típica. Eles podem até protestar, como Shylock — "Não têm os olhos como um judeu? Como um judeu, não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Não se alimentam com a mesma comida, são feridos com as mesmas armas, sujeitos às mesmas doenças, e são curados pelos mesmos meios, aquecidos e resfriados pelos mesmos verão e inverno, que os cristãos?" — mas tal eloquência é inútil. Eles são negros — e isso é suficiente, na ótica desse preconceito irracional, para justificar a indignidade e violência. Quase todos os setores da vida estadunidense estão impregnados por essa influência insidiosa. Ela enche o ar. Os espera nas oficinas e nas fábricas, quando se candidatam ao trabalho. Ela os aguarda na igreja, na hospedaria, nas urnas e, o pior de tudo, ela os espera na bancada do júri. Sem crime ou ofensa contra a lei ou contra os evangelhos, o homem de cor é o Jean Valjean[1] da sociedade estadunidense. Ele saiu das galés e, portanto, todas as presunções são contra ele. O mercado lhe nega trabalho, a pousada lhe nega abrigo; a urna não lhes dá votação justa, nem os jurados um julgamento justo. Ele deixou de ser escravo da sociedade. Ele agora não pode mais ser comprado e vendido como um animal na feira, mas ele é a constrangida vítima do preconceito, bem calculado para reprimir sua ambição viril, para refrear suas energias, e fazer dele um homem abatido e sem espírito, ou então um intratável inimigo da sociedade, apto a depredar a vida e a propriedade e para criar problemas em geral.

Quando este espírito maligno é o juiz, o júri e o promotor, nada menos do que a evidência esmagadora é suficiente para superar a força de presunções desfavoráveis.

Tudo contra a pessoa com a cor odiada é prontamente tomado como certo; por outro lado tudo em seu favor é recebido com suspeita e dúvida.

Um garoto com esta cor é achado amarrado em sua cama, mutilado, e sangrando, então imediatamente toda experiência ordinária é posta de lado, e presume-se que ele foi o culpado por ultrajar a si mesmo; por semanas e meses ele é mantido em julgamento por tal ofensa, e todos os esforços são feitos para enredar o pobre nas teias confusas do testemunho de peritos (a menos confiável de todas as provas). E este mesmo espírito que tão prontamente admite tudo contra nós, bem rapidamente nega ou refuta qualquer coisa a nosso favor. Não temos, como raça, sequer a permissão para nos apropriarmos das virtudes e realizações de nossos representantes individuais. O valor, a capacidade, o aprendizado, a ambição louvável, o serviço heroico, por qualquer de nossa gente, é facilmente levado ao crédito da raça superior. Uma gota de sangue alemão é suficiente para explicar todas as boas e grandes qualidades ocasionalmente presentes junto a uma pele de cor; e, por outro lado, uma gota de sangue negro, embora nas veias de um homem de brancura teutônica, é suficiente para antever todas as ofensivas e ignóbeis qualidades. Na presença deste espírito, se um crime é cometido e o criminoso não é conhecido de forma positiva, um homem de cor de aparência suspeita com certeza foi visto no bairro. Se um homem de cor desarmado é alvejado e morre em seu caminho um júri, sob a influência deste espírito, não hesitará em encontrar no homem assassinado o verdadeiro criminoso, e o assassino restará inocente.

Agora vamos examinar este assunto um pouco mais de perto. Isto é alegar um trabalho miraculoso para o preconceito — ter a magia moral de mudar a virtude em vício, e a inocência em crime; transformar o homem morto no seu assassino, e manter o homicida vivo inocente — é um atributo natural, instintivo e invencível da raça branca, que não pode ser erradicado; nem a própria evolução pode nos levar para além ou acima dele. Uma infelicidade para este pobre mundo de sofredores (os quatro quintos da humanidade que são de cor), caso esta afirmação seja verdadeira! Nesse caso homens serão para sempre condenados à injustiça, à opressão, ao ódio e à discórdia; e o sentimento religioso do mundo, com sua grande ideia de uma fraternidade humana, com sua máxima de "paz na terra aos homens de boa vontade" como sua regra de ouro, deve ser levado como sonho, ilusão, como um embuste.

Mas é este preconceito de cor a coisa natural e inevitável que afirma ser? Se é assim, então é totalmente ocioso escrever contra ela, pregar, orar ou legislar contra ela, ou aprovar emendas constitucionais contra ela. A natureza seguirá seu curso e se poderá pregar e orar a um cavalo contra o galope, a um peixe contra a natação ou a um pássaro contra o voo. Felizmente, contudo, existe um bom fundamento para pôr em cheque esta alta pretensão da vulgar e cruel ideia preconcebida.

Se eu pudesse falar com todos os meus compatriotas brancos sobre este assunto, eu lhes diria, na linguagem das Escrituras: "Venham e vamos raciocinar juntos". Agora, sem ser demasiado elementar e formal, pode-se afirmar que há pelo ao menos sete pontos que os homens sinceros serão suscetíveis de admitir mas que, se admitirem, será fatal para o pensamento popular e para a prática ao longo dos tempos.

Primeiro. Se o que chamamos de preconceito contra a cor for natural, ou seja, uma parte da própria natureza humana, conclui-se que ele deve ser amplamente integrado à natureza humana, pode e deve se manifestar quando e onde duas raças forem colocadas em contato. Não iria variar em qualquer latitude, longitude ou altitude; mas tal como fogo e pólvora, sempre que se reúnem, haverá uma explosão de desprezo, aversão e ódio.

Segundo. Se puder ficar demonstrado que exista em qualquer lugar do globo um país considerável onde o contato entre africano e caucasiano não se distinga por essa explosão de ira racial, não há razão para duvidar de que o preconceito é uma parte indelével da natureza humana.

Terceiro. Se este pretensamente natural e instintivo preconceito puder ser explicado por fatos e considerações totalmente à parte das características de cor das respectivas raças, colocando-a assim entre as coisas subordinadas à vontade e controle humanos, podemos nos aventurar a negar a reivindicação de que faz parte da natureza humana.

Quarto. Se um número considerável de pessoas brancas superou em si mesmos este preconceito, expulsando-os de si como um sentimento indigno, e tiverem sobrevivido a tal operação, o fato mostra que esse preconceito não é de qualquer forma uma parte vital da natureza humana, e pode ser eliminado da raça sem qualquer dano.

Quinto. Se este preconceito deve, ao final, para se revelar em sua essência e natural manifestação, ser simplesmente contra uma determinada condição, e não contra uma raça ou cor, e que desaparece quando esta ou aquela condição esteja ausente, então o argumento elaborado de que faz parte da raça caucasiana cai por terra.

Sexto. Se o preconceito racial e de cor é natural no mesmo sentido de que a ignorância, a superstição, a intolerância e o vício são naturais, então ele não tem melhor defesa do que eles, e deve ser desprezado e extirpado das relações humanas como um inimigo da paz, boa ordem e felicidade da sociedade humana.

Sétimo. Se, finalmente, esta aversão ao negro surge do fato de que ele é como o vemos, pobre, sem espírito, ignorante e degradado, então será humano, nobre e superior, na mente da superior e mais afortunada raça, desejar que todas as barreiras arbitrárias contra seu valor, inteligência e elevação deva ser removido, e uma chance justa na corrida da vida seja dada a ele.


Notas e referências

  1. Jean Valjean: personagem simplório e injustiçado que é retratado na obra "Os Miseráveis", de Victor Hugo.