Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro XXIV: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Ozymandias (discussão | contribs)
nova página: {{navegar |obra=Fausto |autor=Goethe |tradutor=António Feliciano de Castilho |anterior=Fausto (traduzi...
(Sem diferenças)

Revisão das 19h37min de 30 de abril de 2020

Prisão. Janela alta gradeada. Uma alcova ao fundo da prisão, onde há, sobre uma tarimba, uma cama de palha, com um cobertor velho, e uma bilha d’água ao pé. À esquerda do espectador, no primeiro plano, supõe-se ser a entrada da prisão, fechada com uma portinha de grades de ferro, que abre para o palco.

Cena I

FAUSTO, por trás da grade, com um molho de chaves e uma lanterna. MARGARIDA, deitada na cama de rosto para o espectador, ferros aos pés e nos pulsos, e o cobertor por cima de si; está pálida, e numa espécie de sonolência.

FAUSTO
Arrepios assim nunca eu senti. (Fraqueza
da humana condição.) Aqui, nesta escura,
nesta humidade infecta onde entro horrorizado,
e que ela está vivendo, é que ela tem penado
por um sonho de gosto horas sem fim de luto.

Que é isto, coração! Tremes irresoluto
no momento de ir vê-la! A sua aparição,
que tem para assustar-te? Avante, coração!
Valor! Para a salvar apenas resta um passo.
Cada instante perdido acerca-a do trespasso.

(Mete a chave na fechadura.)

MARGARIDA (cantando em delírio)
Nasci de uma perdida.
Gerou-me um salteador.
A mãe roubou-me a vida.
O pai tragou-me em flor.
Saltou-me a irmã vizinha
do fresco seu coval;
mudou-me em avezinha
no agreste matagal;
fugi da terra feia;
vim ser feliz no ar;
aqui só me recreia
voar, voar, voar.

FAUSTO (diligenciando abrir a fechadura)
Ah! Mal sabe a infeliz, que o seu querido ausente
já tão perto lhe está, que lhe ouve claramente
o tinir dos grilhões, das palhas o soído,
cada vez que revolve o corpo dolorido.

(Entra)

MARGARIDA (desvairada, envolve-se no cobertor, voltando-se para a parede)
Jesus, vê-los lá vem! Que horrendo fim!

FAUSTO (mansinho)
Não tremas.
Não grites; sou eu; venho arrancar-te as algemas
salvar-te.

MARGARIDA (arrastando-se para Fausto)
Se és acaso um ente humano, e pode
tocar-te um mal extremo, ao meu martírio acode!

FAUSTO
Silêncio! O teu clamor acorda os guardas.

(Pega nos grilhões para os abrir.)

MARGARIDA (de joelhos)
Não!
Não! Quem te deu licença, algoz, de me pôr mão?

Antes da meia noite! É cedo. Tem piedade!
Um pouco mais de vida! Espera a claridade!

(Levanta-se)

Sou tão nova, tão nova! Hei-de morrer tão nova?
Meu Deus! diz que sou bela, e vou por isso à cova.
Ai! qu’é do meu querido? antes sempre ao meu lado,
e agora tão distante? a c’roa do noivado
desmanchou-se-me; o pó sumiu-lhe as tristes flores.

(Fausto forceja para a levar)

Larga-me os pulsos, larga! «Acrescentar-me dores,
selvagem! para quê? fiz-te algum mal? até
nunca te vi.

FAUSTO
Que transe!

MARGARIDA
Estás-me aqui ao pé;
bem vês que te não fujo. É mister que amamente
primeiro o meu menino, e depois o adormente,
que toda a santa noite a levámos de vela,
a criancinha a rir-me, e eu a afagá-la a ela.
Para me atormentar, furtam-ma, e agora teimam
que a matei eu! Vê, vê, co’as penas que me afreimam
se posso nunca mais ter hora de alegria?
Até já pela rua (olha que tirania!)
cantam a Margarida; a moda é moda antiga,
mas comigo é que entende a letra da cantiga.

FAUSTO (caindo em joelhos)
É ele, o amado, o teu, que te ora de mãos postas
ajoelhado a teus pés, que o sigas, que dês costas
a este infame horror.

MARGARIDA (ajoelhando ao lado dele)
Oh sim; ajoelhemos.
Nos céus mora a piedade; os santos invoquemos.
Vê, ouve lá por baixo o inferno em fúria, a sanha
com que o espírito mau o fogo eterno assanha!

FAUSTO (em voz mais alta)
Margarida, repara! Atende, Margarida!

MARGARIDA (atenta)
Ouvi-lhe a voz... Chamou-me... Onde está?

(Caem-lhe os grilhões e as algemas)

Desprendida!
Já o posso abraçar; já posso neste peito
senti-lo palpitar no abraço mais estreito.
Chamou-me. Vi-o ali. Todo o motim do inferno
a escarnecer-me em coro, e a blasfemar do Eterno,
não lhe encobriu a voz; reconheci-lha; disse
Margarida! e era a mesma, a mesma na meiguice.

FAUSTO
Sou eu.

MARGARIDA
És tu?! Repete-o.

(Tacteando-o)
És; és; já não duvido.
Ficai-vos, meus grilhões, meu cárcere insofrido!
Vens salvar-me: estou salva e livre... Espera!... aqui
é (se a não reconheço?!) a rua em que eu te vi
pela primeira vez; a porta além diviso
que entra ao quintal da Marta, ao nosso paraíso.

FAUSTO (forcejando para que saiam)
Vem, vem! Segue-me!

MARGARIDA
Espera. É tão grande a alegria
que estou sentindo aqui na tua companhia!

(Afagando-o.)

FAUSTO
Se teimas em ficar, perdemo-nos.

MARGARIDA
Já vejo
que tudo lhe esqueceu: pois nem sequer um beijo?
Não me entendo! a abraçar-te e inda aflita! Mas dantes
quando o teu falar terno, os teus olhos amantes
me envolviam de céu, beijavas-me; um beijar
como quem me queria em beijos sufocar.
Beija-me, ou beijo-te eu.

(Beija-o)

Que lábios! que regelo!
que mudez! Tanto amor, pudeste-me esquecê-lo?

(Vai-se afastando dele)

FAUSTO
Vem! Segue-me, querida! Anima-te! Protesto
que ardo por ti, mas sai deste lugar funesto!
Nada mais te suplico. Anda comigo.

MARGARIDA (encarando-o, indecisa)
Creio...
mas não sei se és o mesmo. Afirma-mo! Receio

FAUSTO
Sou, sou; fujamos!

MARGARIDA
Bom. Tens-me desalgemada.
Senta-me no teu colo!... Estou maravilhada
de me olhares sem tédio. Ignoras por ventura
quem seja esta mulher, a quem vens dar soltura,
meu amigo?

FAUSTO
Vem, vem! Já rompe a alva.

MARGARIDA
A mãe
matei-a; a criancinha afoguei-a também...
mas não era só minha, era tua igualmente;
para os dois, é que Deus a dera de presente;
sim, também para ti...
Mas, fala-me sincero:
és na verdade o mesmo? ou será sonho? Quero
sentir nas minhas mãos a tua mão querida.

(Toma-lhe a mão)

Enxuga-a! que lentor!

(Encarando fitamente na mão)

De sangue vem tingida!
Justos céus, que fizeste? Embainha essa espada!
Pela cruz to suplico.

FAUSTO
O pretérito é nada.
Matas-me.

MARGARIDA
Não te hás-de ir, antes de satisfeito
o que aos mortos se deve, e exige pronto efeito,
e amanhã já. Repara! Importa que to explique:
No principal sepulcro a mãe; meu mano fique
logo ao pé dela. A mim, talha-me a cama fria
mais longe, mas, por Deus, não longe em demasia.
Ao meu seio direito, o nosso pequenino
muito aconchegadinho; e mais, só determino
que junto a mim, ninguém. Por suma glória tinha
jazer-me ao pé de ti; foi outra sorte a minha.
Como que sinto um braço a empuxar-me invisível
para ti... de ti outro a repulsar-me horrível.
E mesmo assim és tu, que me olhas tão piedoso.

FAUSTO
Pois se vês que sou eu, se vês que te amo, e ouso
salvar-te, é vir comigo, e já.

MARGARIDA
Lá para fora?

FAUSTO
Sim, sim, para o ar livre.

MARGARIDA
Ai, não, não. Nesta hora
anda por lá a morte à minha espreita. Escuta!
Avizinha-se; fico; e espero-a resoluta.
Não movo pé daqui senão para a jazida
onde nunca se acorda, e todo o mal se olvida.
Adeus, e para sempre, amado Henrique! Parte!
Vive!... Não poder eu agora acompanhar-te!

FAUSTO
Podes, queira-lo tu. A porta está patente.

MARGARIDA
Não me é dado sair. Perdida totalmente
a esperança! Fugir! E para quê, se eu sei
que me alcançavam logo? oh! não, não fugirei.
Achavas que era dita andar de terra em terra
a mendigar o pão, comigo própria em guerra?
sempre em sustos? Quem foge a tantos mil espias?

FAUSTO
Bem; morrerei contigo, uma vez que aporfias.

MARGARIDA
Vem! Corre! Dá-te pressa!
Acude ao teu filhinho!
Sabes? a via é essa,
que borda o ribeirinho.
Remonta-lhe a corrente!
Corta-o na ponte! Dás
num matagal em frente!
À esquerda encontrarás
o açude de um moinho...
É lá, é lá,
que inda boiando está
o inocentinho.
Vai, salva-o, que és seu pai!
vai! vai!

FAUSTO
Deliras, Margarida! Ah! torna em ti! Desperta!
Decide-te! Um só passo, ó cara, e estás liberta.

MARGARIDA
Oh! quem já me dera passado este monte!
A mãe lá em cima diviso sentada
na penha escalvada, que fica defronte!
Que mão regelada as tranças me aferra!
Não posso; fujamos; assombra-me; aterra
ver sempre defronte a mãe assentada
na penha escalvada no cimo do monte.
Meneia a fronte,
sem que me veja.
Não pestaneja.
Que ar de quebranto!
Se dormiu tanto!
Dorme, e jamais há-de acordar:
adormeceu para deixar
o nosso amor em liberdade.
Gostos da minha mocidade,
quão breve tínheis de acabar!

FAUSTO
Já que és surda à razão, e às súplicas do amor,
levo-te à força.

(Deitando-lhe as mãos.)

MARGARIDA
Pára! Afasta-te! Ousas pôr

mãos violentas em mim? Neguei-te eu nunca outrora
nada do que é devido àquele a quem se adora?

FAUSTO
Doce amor da minha alma, é dia; vês? é dia.

(Apontando-lhe para as grades da janela)

MARGARIDA
Vejo; o meu derradeiro, o mesmo que devia
sagrar o nosso enlace.
Esconde a toda a gente
que estiveste comigo.
Adeus eternamente,
pobre coroa minha!
Hajamos esperança
de tornar-nos a ver, mas não será na dança.
... Em cada rua povo! e povo! e povo! a praça
apinhada em silêncio; o juiz que espedaça
a vara, e aos pés ma atira! aquilo é o campanário,
que lá me está chorando o dobre funerário!
Tomam-me; atam-me as mãos; chegam-me ao cepo, sente
cada um no seu colo o golpe ao meu pendente...
Acabou-se o universo.

FAUSTO
Antes não ter nascido
se tinha de ver isto: ela, assim! eu perdido!

Cena II

MEFISTÓFELES da parte de fora da grade, os DITOS

MEFISTÓFELES
Perdidos, se exauris em frases e terrores
o instante de escapar.

(Entra)

Os nosso corredores
escarvam d’impaciência. A manhã rasga.

MARGARIDA (com grande terror)
Aquilo
que surde além do chão... quem é?! Vai despedi-lo,
Ele, ele! que me quer! Tenta levar-me! Ousado
vem-me inda perseguir neste lugar sagrado!

FAUSTO
Viverás!

MARGARIDA (pondo os olhos no céu)
Juiz Sumo, a ti me entrego.

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Vem,
ou deixo-te com ela. Escolhe!

MARGARIDA
Sumo Bem,
Pai meu, que estás nos céus, salva-me, que eu sou tua
Santos Anjos de Deus, levai-me à vista sua!
Henrique, horror a ti minha alma purifique!

Cena III

Abre-se por cima o Empíreo. CORO DE ANJOS e OS DITOS

MEFISTÓFELES
Sentenciada!

CORO DE ANJOS
Salva!

MEFISTÓFELES (apossando-se de Fausto e levando-o consigo)
És meu.

MARGARIDA (já nas alturas, para onde tem ido subindo)
Henrique! Henrique!

FIM DO POEMA