Sólon, Carlos Magno e Enéias: diferenças entre revisões

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Edição atual desde as 12h07min de 18 de junho de 2020

Na viagem, que lhe granjeou durante a travessia as honras de almirante, como após a chegada as de financeiro, um dos achados, que encantaram o Sr. Campos Sales, foi o desse judicioso e sólido publicista francês, que se chama Yves Guyot. Não era novidade esse nome, no Brasil, para os estudiosos de letras políticas e questões sociais. Mas ninguém, talvez, entre nós concebera pelo merecimento do laborioso escritor europeu o entusiasmo, que se apossou do ilustre viajante, a julgarmos das suas opiniões, como se costuma dos altos personagens, a cuja eminência é defesa a escrita, pela sua imagem autorizada nos refletores que os acompanham. Parece, entretanto, que esflorando as obras do autor de tantos livros preciosos, delas não acolheu o açodado ex­cursionista mais que a impressão das suas afinidades aparentes com o princípio econômico, a que no começo inculcava filiar-se a nova política financeira, para depois o renegar com o escândalo das últimas apostasias no reformismo murtinhiano. Felizes seríamos nós, se o honrado presidente da República tivesse a coragem de refazer a sua educação de estadista, embebendo-se no bom-senso e no espírito liberal, que emanam daqueles volumes, escritos sob a inspiração de uma escola, que não é a do liberalismo gaulês.

Se S. Ex.ª os leu, teria sido com a pressa dos carnívoros, não com a paciência dos ruminantes. Porque, para ler com proveito, necessário é digerir a quatro estômagos, remoendo, e remascando. Bastava-nos que S. Ex.ª se houvesse dado ao trabalho de ler A Polícia e A Prostituição, dois pequenos volumes do seu predileto. Não estaríamos assistindo à polícia do Sr. Enéias, nem à repressão do porneio, com que este magistrado vai conseguindo envolvê-lo em uma atmosfera de atenção e um nimbo de piedade, que certamente não estavam nos virtuosos desígnios do seu programa. Mas ainda será tempo de uma intervenção presidencial, que nos forre às vergonhas de um regímen, cuja imbecilidade, a pretexto de moralizar, oprime, atropela, corrompe, enxovalha, e assassina.

Não se dedigne o Sr. Campos Sales de um bom movimento neste sentido. O Cristo interveio em defesa da adúltera, e não se teve por maculado ao contacto de Madalena. Abra S. Ex.ª A Polícia de Yves Guyot, e logo às primeiras páginas se lhe deparará este ensinamento magistral: “Uma mulher é prostituta. Trata-se de saber se, por isso, já não existem, para ela, as leis. Oiço às vezes queixas de reclamantes, que me vêm dizer: ‘A polícia prendeu-me, e maltratrou-me. Ainda se eu fosse uma perdida. Mas sou mulher honesta!’ É o que me não importa. A polícia, a não haver delito, não tem mais direito de prender a messalina que a matrona. Não lhe assiste mais direito de maltratar a uma rameira que a uma senhora. Nosso direito político declara a lei igual para todos; não estabelece uma para as mulheres casadas, outra para as cortesãs”. Eis a doutrina, a verdade, o evangelho. Eis o nosso direito, a nossa constituição, a nossa legalidade.

Se os nossos administradores, os nossos magistrados, os nossos jornalistas ainda se não elevaram à modestíssima altura dessa idéia, estamos, com efeito, entre gente, a quem não faziam injustiça os assovios e os epítetos de monos, com que, em certa fronteira, outrora se rendiam as honras da vizinhança aos brasileiros. Se o Sr. Campos Sales não se quer levantar, não quer levantar os seus agentes à vulgaridade dessa noção, o seu republicanismo não vale a borralheira das queimas do Sr. Ministro da Fazenda. Creia-nos o honrado presidente da República. Amanhã estaremos, por este delito de hoje, entre os dentes dos podengos da Rua do Lavradio, e seremos diplomados em defensores da prostituição na chancelaria onde os bordeleiros se nomeiam exterminadores da libidinagem. Mas fique S. Ex.ª certo de uma coisa. Muito mais nos honra advogar pela miséria de uma hetaira cobardemente perseguida, que lutar pela violência de um governo odiosamente perseguidor. Na defesa das vítimas da luxúria humana contra a brutalidade policial há uma causa para os homens de bem, há um papel para os pais de família, há um assunto, até, para a influência civilizadora da mulher.

Não leve o Sr. Enéias as mãos à cabeça. Não erga o Sr. Campos Sales a destra oratória. Há, na Europa, uma Federação, cujo objeto consiste precisamente nessa advocacia, e o seu secretário geral era uma senhora, madama Josefina Butler, a quem Yves Guyot dedica o seu livro da Prostituição. Já vê o Sr. Campos Sales que, apesar da má cara, a obra lhe pode entrar em casa, e que o Sr. Enéias pode compulsá-la sem desvirtude. Ficam sabendo, outrossim, presidente e chefe que o estrampalho de advogados da prostituição apenas nos reuniria a uma associação de senhoras, a madama Josefina Butler, e ao respeitável Sr. Yves Guyot.

Antes de Enéias a humanidade já procriara Sólon, que iniciou, com alta sabedoria, a polícia dos costumes. “Ó Sólon!”, exclamava o poeta Filêmon, “tu foste realmente o benfeitor do gênero humano, pois se diz foste tu quem pensou uma coisa bem proveitosa ao povo, ou antes, à salvação pública. Com razão o digo, ao considerar nesta cidade nossa, cheia de moços de temperamento borbulhante, que, em conseqüência, se dariam a excessos intolerantes. Aí está por que fizeste provisão de cachopas, e as agregaste em sítios, onde, supridas de todo o necessário, se entregam em comum a quantos as buscam.”

De modo que Enéias hoje poderia levar a ascendência do seu sistema até a Grécia mais remota. Não militam com ele unicamente as Capitulares de Carlos Magno. Estão a seu lado as instituições do velho legislador de Salamina. Data, pois, de sete séculos antes da nossa era a veleidade de regular, tutelar, e organizar policialmente a prostituição. Porque de extingui-la, de limitá-la muito há que desesperaram os mais severos moralistas. Mas quer ver o Sr. Presidente da República o juízo contemporâneo das consciências mais retas e das inteligências mais luminosas acerca da política depurativa de Sólon, Carlos Magno e Enéias? Volva os olhos ao livro de Guyot, e veja, logo no capítulo primeiro, como a sua pena de filósofo, administrador e jurista qualifica a arregimentação do vício sexual.

Não nos pouparemos a transcrevê-lo: “Pretendendo que a prostituição é um mal, posto que necessário, essa administração só tem um alvo: manipular ‘vis prostitutas’, a quem não caiba ser nunca mais senão prostitutas, condenadas à prostituição perpetuamente. De boa mãe que é, a sociedade se obstina em constituir uma classe de mulheres, fadadas a um mister de vilipêndio; e, para o conseguir, instituiu um sistema, o ‘sistema francês’, como diz, no seu ignorante orgulho, o Sr. Lecour, de cujo ideal o objeto consiste em fazer, com a maior presteza e na maior escala possível, da mulher em mancebia a mulher pública e da mulher pública a mulher de conventilho. Há de ser certamente por antífrase que este sistema se denomina polícia dos costumes”.

Ora, imaginemos que o sistema francês caísse, semente perdida, entre o Congo e o Cunenê, em terra de bambas e bundos, e que um xeque ou quilamba, aceso em frenesins de zelo tropical pela regeneração da moral pública, empreendesse africanizá-lo. É o que está sucedendo com a polícia da prostituição no Rio de Janeiro, cuja estupidez, cuja torpeza, cujo selvagismo acaba de tocar logicamente o auge no caso doloroso e fúnebre de Ida Maria.