Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II: diferenças entre revisões

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<center> Segunda Parte- Livro Segundo-O TRABALHO<br>
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<[[Os Trabalhadores do Mar]]<br>
 
<[[Autor:Victor Hugo]]<br>
 
Tradução: Machado de Assis<br>
 
</center>
__TOC__
 
===OS RECURSOS DAQUELE QUE NÃO TEM RECURSOS===
 
A cava não soltava facilmente quem lá ia. A entrada era pouco
cômoda, a saída foi ainda pior. Gilliatt entretanto safou-se, mas
não voltou lá. Nada encontrou do que procurava, e não tinha
tempo para ser curioso.<br>
Pós imediatamente a forja em atividade. Faltava ferramenta, Gilliatt
fabricou-a.<br>
Tinha por combustível os destroços, a água por motor, o vento por
fole, uma pedra por bigorna, por arte o instinto, por força a vontade.<br>
Gilliatt entrou ardentemente nesse trabalho sombrio.<br>
O tempo mostrava-se complacente. Continuava belo, e o menos
equinocial possível. Chegara o mês de março, mas tranqüilamente.<br>
Os dias tornavam-se compridos. O azul do céu, a vasta doçura dos
movimentos da extensão, a serenidade do meio-dia, pareciam excluir
qualquer intenção má. Alegrava-se o mar debaixo do sol. Um
afago prévio tempera as traições. A água marinha não é avara
desses afagos. Com aquela mulher é preciso desconfiar do sorriso.<br>
Havia pouco vento; a hidráulica soprava bem. O excesso do vento
tolheria em vez de ajudar.<br>
Gilliatt tinha uma serra; fabricou uma lima; com a serra atacou a
madeira, com a lima, o metal; depois ajuntou as duas mãos do
ferreiro, uma tenaz e uma pinça: a tenaz agarra, a pinça maneja;
uma trabalha como a mão, a outra como o dedo. A ferramenta é
um organismo. A pouco e pouco Gilliatt arranjava auxiliares, e
construía as suas armaduras. Com um pedaço de ferro em folha
fez uma antepara na forja.<br>
Um dos seus primeiros cuidados foi a separação e a reparação das
roldanas. Consertou as caixas e as rodas das polés. Cortou a
esfoliação de todos os barrotes quebrados e aplainou as extremidades;
como dissemos, tinha para as necessidades da carpintaria
grande cópia de peças de madeira armazenadas, e aparelhadas,
segundo as formas, as dimensões e as essências, o carvalho de
um lado, o pinheiro de outro, as peças curvas, como as porcas,
separadas das peças direitas, como as que ligam as escotilhas.<br>
Era uma reserva de pontos de apoio e alavancas, de que podia
precisar em um momento dado.<br>
Quem quer construir um guindaste deve munir-se de traves e polés,
mas não basta isso, é preciso corda. Gilliatt restaurou os cabos e
as cordas. Estendeu as velas rasgadas, e conseguiu extrair excelente
fio com que compôs uma sarja, e cerziu o cordoame. Mas
essas costuras eram sujeitas a apodrecer, era preciso empregar as
cordas e os cabos, Gilliatt apenas pode fazer o massame sem ter
alcatrão.<br>
Consertou as cordas, consertou as correntes.<br>
Pode, graças à ponta lateral da bigorna, fazer anéis grosseiros,
mas sólidos; com esses anéis, prendeu uns aos outros os pedaços
de correntes quebrados, e fez correntes compridas.<br>
Forjar só e sem auxílio é mais do que incomodo. Contudo, Gilliatt
conseguiu faze-lo. É certo que só teve de trabalhar na forja peças
de pequeno volume; podia meneá-las com uma mão e martelar
com a outra.<br>
Cortou em pedaços as barras de ferro redondas do lugar do comando;
forjou nas duas extremidades de cada pedaço, de um lado
uma ponta, do outro uma larga cabeça chata, e desse modo fez
grandes pregos de palmo e meio. Esses pregos, muito usados em
trabalhos marítimos, são úteis para fixar os paus nas pedras.<br>
Por que motivo Gilliatt tomava todo este trabalho? Teve de refazer
muitas vezes o fio da machadinha e os dentes da serra. Para a
serra fabricou uma lima triangular.<br>
Servia-se também do cabrestante da Durande. Quebrou-se a fateixa
da corrente. Gilliatt fez outra.<br>
Com ajuda da pinça e da tenaz e servindo-se da faca como de um
virador empreendeu desmontar as duas rodas do navio; conseguiu.<br>
É preciso não esquecer que isso era exeqüível; essa era a
particularidade da construção das rodas. As caixas que as tinham
coberto serviram-lhes de capas; com as tábuas das caixas, Gilliatt
arranjou dois caixotes onde meteu peça por peça, as duas rodas,
cuidadosamente numeradas.<br>
O pedaço de giz serviu-lhe para essa numeração.<br>
Arranjou os dois caixotes na parte mais sólida do convés da Durande.<br>
Terminados estes preliminares, Gilliatt achou-se diante da dificuldade
suprema. Surgiu a questão da máquina.<br>
Desmontar as rodas foi possível; desmontar a máquina, não.<br>
Primeiramente, Gilliatt conhecia mal aquele mecanismo. Trabalhando
ao acaso, podia produzir algum desconserto irreparável. Depois,
mesmo para tentar desmontá-la peça por peça, se tivesse
esta imprudência, eram-lhe precisas outras ferramentas do que as
que ele podia fazer numa caverna por oficina, com o vento por
fole, e uma pedra por bigorna. Tentando desmontar a máquina
arriscava-se a despedaçá-la.<br>
Aqui podia-se crer que estava diante do impraticável.<br>
Afigurou-se-lhe que estava ao pé deste muro: o impossível.<br>
Que fazer?<br>
 
===DE QUE MODO SHAKESPEARE PODE ENCOSTRAR-SE COM ÉSQUILO===
 
Gilliatt tinha uma idéia.<br>
Desde aquele carpinteiro de Salbris que, no VI século, na infância
da ciência, muito antes que Amontons tivesse achado a primeira
fricção, Lahire a segunda, e Coulomb a terceira, sem conselho,
sem guia, sem mais auxiliar que um menino, filho dele, com uma
ferramenta informe resolveu em massa, arriando o grande relógio
da igreja de Charité-surLoire, cinco ou seis problemas de estática
e de dinâmica, todos juntos, como as rodas de carros embaraçados;
desde esse trabalhador extravagante que achou meio de,
sem quebrar um fio de latão e sem desfazer um encaixe, arriar de
uma só vez, por uma simplificação prodigiosa, do segundo - andar
da torre ao primeiro, aquela maciça gaiola de horas, toda de ferro
e cobre, grande como uma guarita, com o seu movimento, cilindros,
tambores, ganchos, mostrador, pêndulo horizontal, âncoras
de escapamento, meada de corda, pesos de pedra dos quais um
pesava 500 libras, tímpano, carrilhão; desde esse homem que fez
esse milagre, e cujo nome já se não sabe, jamais houve nada igual
à empresa que Gilliatt cometia.<br>
A operação de Gilliatt era talvez pior, isto é, mais bela ainda que a
outra.<br>
O peso, a delicadeza, o conjunto das dificuldades, não eram menores
na máquina da Durande que no relógio de Charité-surLoire.<br>
O carpinteiro gótico tinha um auxiliar, o filho; Gilliatt era só.<br>
Havia uma população vinda de Menug-sur-Loire, de Nevers, e mesmo
de Orleans, a qual podia, em caso de necessidade, ajudar o
carpinteiro de Salbris, e animá-lo com os seus rumores benévolos;
Gilliatt só tinha à roda de si o rumor do vento e a multidão das
ondas.<br>
Nada se compara à timidez da ignorância, a não ser a sua temeridade.<br>
Quando a ignorância começa a ousar é que tem uma bússola
consigo. Essa bússola é a intuição da verdade, mais clara às vezes
num espírito simples que num espírito complicado.<br>
Tais casos, digamo-lo de passagem, são a exceção, e tudo isto
não tira nada à ciência, que fica sendo a regra. O ignorante pode
achar, só o sábio inventa.<br>
A pança continuava a estar ancorada na angra do Homem, onde o
mar a deixava tranqüila. Gilliatt, como se sabe, arranjou tudo de
modo a ficar em livre prática com a barca. Foi ali e mediu-a em
diversos pontos. Depois voltou à Durande e mediu o grande diâmetro
da máquina. O grande
diâmetro, sem as rodas, bem entendido, era mais curto 2 pés que
o espaço da pança. Portanto, a máquina podia entrar na barca.<br>
Mas como mete-la aí?<br>
 
 
 
===A OBRA-PRIMA DE GILLIATT AJUDA A OBRA-PRIMA DE LETHIERRY===
 
Alguns dias depois, o pescador que fosse assaz tonto para ir
perlustrar aquelas paragens, em semelhante estação, teria pago a
sua ousadia com a visão de uma coisa singular entre as Douvres.<br>
Veria isto o pescador: quatro robustas pranchas com espaços
iguais entre si, indo de uma Douvre a outra, e como que forçadas
entre os rochedos o que é a melhor solidez deste mundo. Do lado
da pequena Douvre, as suas extremidades pousavam e fincavam-se
nas fendas da rocha; do lado da grande Douvre, essas extremidades
deviam ter sido violenta mente espetadas na coluna com
um martelo por um robusto trabalhador trepado na própria prancha.<br>
Essas pranchas eram um pouco mais longas que o intervalo
das Douvres; daí. a segurança e o plano inclinado em que estavam
for Ignorar convida a tentar. A ignorância é um devaneio e o mando
uma ladeira. Tocavam a grande Douvre em ângulo devaneio
curioso é uma força. Saber, desconcerta às vezes, e agudo e a
pequena em ângulo obtuso. Era suave o declive, desaconselha
muitas. Se Vasco da Gama soubesse, recuaria irias desigual, o que
se tornava defeito. A essas quatro ante o cabo das Tormentas. Se
Cristóvão Colombo fosse pranchas prendiam-se quatro polés
guarnecidas todas de
bom cosmógrafo, não teria descoberto a América.<br>
A essas prendiam-se cabos que de longe pareciam fios, e por
baixo desse aparelho aéreo de guindastes e tábuas, o maciço
casco da Durande parecia suspenso a esses fios.<br>
Ainda não estava suspensa. Perpendicularmente por baixo das pranchas,
oito aberturas foram praticadas no casco, quatro a bombordo
e quatro a estibordo da máquina, e mais oito debaixo dessas,
na carena. Os cabos desciam verticalmente, entravam no convés,
depois saíam pela carena, pelas aberturas de estibordo, passavam
por baixo da quilha e da máquina, entravam outra vez no navio
pelas aberturas de bombordo e, subindo, atravessando o convés,
voltavam a prender-se nos quatro guindastes das pranchas, onde
um guincho prendia-os e fazia um rolo de um cabo único podendo
ser dirigido por um só braço. Um gancho e um carretel por cujo
centro passava e dividia-se o cabo único completavam o aparelho,
e em caso de necessidade, continham-no. Esta combinação
obrigava as quatro polés a trabalharem juntas, e, verdadeiro freio
de forças pendentes, leme de dinâmica na mão do piloto da opera-
ção, mantinha a manobra em equilíbrio. O ajustamento engenhoso
do guincho tinha alguma das qualidades simplificadoras do guindaste
Weson de hoje, e do antigo polipastono de Vitrúvio. Gilliatt
descobriu isso, sem conhecer Vitrúvio, que já não existe, nem
Weson, que não existia ainda. O comprimento dos cabos variava
segundo o desigual declive das pranchas e corrigia um pouco a
desigualdade. As cordas eram perigosas, o massame branco podia
quebrar; era melhor empregar correntes, finas as correntes não
poderiam passar com facilidade nas polés.<br>
Tudo isso, cheio de defeitos, mas feito por um só homem, era
surpreendente.<br>
Demais, abreviemos a explicação. Compreender-se-á que omitimos
muitos pormenores que tornariam a coisa clara para as pessoas
do oficio, e obscura para as outras.<br>
O cimo do cano da máquina passava por entre as duas pranchas
do meio.<br>
Gilliatt, sem dar por isso, plagiário inconsciente do desconhecido,
refez, a três séculos de distância, o mecanismo do carpinteiro de
Salbris, mecanismo rudimentar e incorreto, assustador para quem
ousasse manobrá-lo.<br>
Digamos aqui que os defeitos mais grosseiros não impedem que um
mecanismo funcione. O obelisco da praça de São Pedro de Roma
foi levantado contra todas as regras da estática. O coche do Czar
Pedro era construído de tal modo que parecia tombar a cada passo;
entretanto, andava. Quantas deformidades na máquina de Marly.<br>
Tudo ali era mal feito. Nem por isso deixou de dar de beber a Luís
XIV.<br>
Fosse como fosse, Gilliatt tinha confiança. Contava até com o
sucesso ao ponto de fixar na borda da pança, no dia em que lá foi,
dois pares de argolas de ferro, diante um do outro, nos dois lados
da barca, nos mesmos espaços que as quatro argolas da Durande
às quais se prendiam as quatro correntes do cano.<br>
Gilliatt tinha evidentemente um plano muito completo e definitivo.<br>
Tendo contra si todas as probabilidades, queria por todas as precauções do seu lado.<br>
Fazia coisas que pareciam inúteis, sinal de uma premeditação atenta.<br>
A sua maneira de proceder desafiava um observador, e mesmo um
conhecedor.<br>
Uma pessoa que o visse, por exemplo, com esforços inauditos e
em risco de quebrar o pescoço, pregar com um martelo oito ou dez
grandes pregos que ele forjou, no esvazamento das duas Douvres,
na entrada da garganta do escolho, compreenderia dificilmente o
motivo desses pregos, e perguntaria provavelmente por que razão
fazia todo aquele trabalho.<br>
Se visse Gilliatt medir o pedaço da amurada da proa que ficara
pendurada, depois prender uma forte corda na borda superior desta
peça, cortar com um machado as madeiras descoladas que a
retinham, arrastá-las fora da garganta, com auxílio da maré que
descia, e enfim prender laboriosamente com a corda essa pesada
massa de tábuas e vigas, mais larga que a entrada da garganta,
aos pregos metidos na base da pequena Douvre, o observador
compreenderia menos ainda, e diria que se Gilliatt quisesse, para
facilidade da manobra, desimpedir o intervalo das Douvres, bastava
deixar cair aquele pedaço de tábuas na maré que o levaria à
flor da água. Gilliatt provavelmente tinha lá as suas razões.<br>
Gilliatt, para fixar os pregos na base das Douvres, tirava partido
de todas as fendas do granito, alargava-as quando era preciso, e
metia ao princípio tocos de paus, nos quais introduzia depois os
pregos. Emboçou a mesma preparação nas duas rochas que se
levantavam noutra extremidade do escolho, do lado de leste; guarneceu
de cavilhas de pau todos os buracos, como se as quisesse
ter prontas para receber ganchos; mas isso pareceu ser uma simples
reserva, porque Gilliatt não meteu pregos nessas fendas. Compreende-
se que, por prudência na sua penúria, ele não podia gastar
materiais senão à proporção que tivesse necessidade, e no
momento em que a necessidade se manifestasse. Era mais uma
complicação no meio de tantas dificuldades.<br>
Acabado um primeiro trabalho, surgia um segundo. Gilliatt passava
sem hesitar de um a outro e dava resolutamente esse pulo de
gigante.<br>
 
===SUBRE===
 
O homem que fazia estas coisas tornara-se medonho.<br>
Gilliatt, naquele trabalho múltiplo, gastava todas as suas forças;
dificilmente as refazia.<br>
Privações de uma parte, cansaço de outra. Gilliatt tinha emagrecido.<br>
Cresceram-lhe as barbas e cabelos. Exceto uma camisa,
todas as mais estavam em frangalhos. Tinha os pés nus, porque o
vento levara-lhe um sapato, e o mar o outro. Pedaços da bigorna
rudimentar, e mui perigosa, de que se servia, tinham-lhe feito nas
mãos e nos braços pequenas chagas, salpicos de trabalho. Essas
chagas, mais esfoladuras que feridas, eram superficiais, mas irritadas
pelo ar vivo e pela água salgada.<br>
Tinha fome, tinha sede, tinha frio.<br>
O pichel de água doce estava vazio. A farinha de centeio fora já
comida ou empregada no trabalho. Restava-lhe um pouco de biscoito.<br>
Não tendo água para molhá-lo, Gilliatt quebrava-o com os dentes.<br>
Dia a dia iam-lhe escasseando as forças.<br>
Aquele temível rochedo esgotava-lhe a vida.<br>
Beber era uma questão; comer era uma questão; dormir era uma
questão.<br>
Gilliatt comia quando apanhava algum marisco ou outro bichinho
do mar; bebia quando via um pássaro descer a alguma ponta da
rocha. Trepava então e achava numa cava um pouco de água
doce. Bebia depois do pássaro, às vezes ao mesmo tempo; porque
as gaivotas já estavam acostumadas a ele, e não fugiam quando
ele se aproximava. Gilliatt, mesmo na maior fome, não lhes fazia
mal. Sabemos que ele tinha a superstição dos pássaros. Os pássaros,
como os cabelos de Gilliatt estivessem eriçados e horríveis, e
a barba longa, já lhe não cobravam medo; a mudança do aspecto
tranqüilizava-os; já não viam naquilo um homem, acreditavam-no
bicho.<br>
Os pássaros e Gilliatt eram agora bons amigos. Todos aqueles
pobres ajudavam-se uns aos outros. Enquanto Gilliatt teve centeio,
deu-lhes algumas migalhas dos bolos que fazia; agora os
pássaros indicavam-lhe em que lugar havia água.<br>
Comia as conchas cruas; as conchas, em certa proporção, são
refrigerantes. Quanto aos caranguejos, cozia-os; não tendo vasilha
própria, cozia-os entre duas pedras abrasadas ao fogo, como
os selvagens das ilhas Feroe.<br>
Declarou-se, entretanto, um pouco de equinócio; veio a chuva;
mas chuva hostil. Nem ondas, nem aguaceiros, mas longos chuviscos,
finos, gelados, que atravessavam-lhe a roupa até a pele, e a
pele até os ossos. Era chuva que dava pouco de beber e molhava
muito.<br>
Avara de auxílio, pródiga de miséria, tal era aquela chuva, indigna
do céu. Gilliatt apanhou-a toda, durante uma semana, de noite e
de dia. Era uma má ação lá de cima.<br>
De noite, no seu buraco do rochedo, só dormia por cansaço. Os
grandes mosquitos do mar iam morde-lo. Acordava coberto de
pústulas.<br>
Tinha febre, que o sustentava; a febre é um amparo, que mata.<br>
Mastigava, por instinto, o musgo, ou chupava as folhas de cocleária
selvagem, magras produções das fendas secas do rochedo. Mas
ocupava-se bem pouco com o sofrimento. Não tinha tempo de
distrair-se do trabalho para cuidar de si. A máquina da Durande
estava de saúde. Era o que bastava.<br>
A cada momento, Para as necessidades do trabalho, Gilliatt atirava-se ao mar, depois tomava pé. Entrava na água e saía, como se
passa de um quarto a outro.<br>
As roupas já lhe não secavam. Estavam embebidas da água da
chuva que não parava, e da água do mar que não seca nunca.<br>
Gilliatt vivia molhado.<br>
Viver molhado é um hábito que se adquire. Os pobres grupos irlandeses,
velhos, mães, raparigas, quase nuas, crianças, que passam
o inverno debaixo de aguaceiros e neve, apertados uns contra os
outros nos ângulos das casas nas ruas de Londres, vivem e morrem
molhados.<br>
Estar molhado e ter sede; Gilliatt suportava essa tortura estranha.<br>
De quando em quando mordia a manga da japona.<br>
O fogo que ele acendia não o aquecia; o fogo no meio de um
grande espaço arejado é um meio socorro; seca-se de um lado,
umedece-se de outro.<br>
Gilliatt suava e tiritava.<br>
Tudo lhe resistia em roda dele numa espécie de silêncio terrível.<br>
Ele sentia o inimigo.<br>
As coisas tem um sombrio Non possumus.<br>
A inércia delas é uma lúgubre advertência.<br>
Imensa má vontade cercava Gilliatt. Estava cheio de queimaduras
e tinha arrepios de frio. Queimava-o o fogo, gelava a água, a sede
causava-lhe febre, o vento rasgava-lhe a roupa, a fome minava-lhe
o estômago. Ele suportava a opressão em um conjunto fatigante.<br>
O obstáculo, tranqüilo, vasto, tendo a irresponsabilidade
aparente da fatalidade, mas cheio de uma unanimidade feroz, convergia
de todas as partes sobre Gilliatt. Gilliatt sentia-o apoiado
inexoravelmente sobre ele. Nenhum meio de escapar-lhe. Era quase
uma entidade. Gilliatt tinha a consciência de um desprezo sombrio
e de um ódio que fazia esforço por diminuí-lo. Dependia dele
fugir, mas, pois que ficava, tinha de lutar com hostilidade impenetrável. Não podendo po-lo fora dali, punham-no debaixo dos pés.<br>
Quem? O Ignoto. Apertavam-no, comprimiam-no, tiravam-lhe lugar
e alento. Estava abatido pelo invisível. Cada dia, a misteriosa
verruma entrava um
pedaço.<br>
A situação de Gilliatt naquele medonho lugar assemelhava-se a um
duelo equívoco com um traidor.<br>
Cercava-o a coalizão das forças obscuras. Ele sentia uma resolução de alguém para expulsá-lo dali. É assim que a geleira expele a
massa errática.<br>
Quase sem parecer que o tocava, essa coalizão latente punha-o
em farrapos, cheio de sangue, falho de recursos, e, por assim
dizer, fora de combate antes do combate. Nem- por isso deixava
ele de trabalhar, e sem cessar, mas, à proporção que a obra se
fazia, ia-se desfazendo o operário. Dissera-se que aquela feroz
natureza, receando a alma, resolvera-se a extenuar o homem.<br>
Gilliatt afrontava, e esperava. O abismo começava por cansá-lo.<br>
Que faria depois o abismo?<br>
A dupla Douvres, dragão de granito e emboscado em pleno mar,
admitira Gilliatt. Deixou-o entrar e trabalhar. A admissão assemelhava-
se à hospitalidade de um sorvedouro aberto.<br>
O deserto, a extensão, o espaço onde há para o homem tantos
recursos, a inclemência muda dos fenômenos seguindo o seu curso,
a grande lei geral implacável e passiva, o fluxo e o refluxo, o
escolho, plêiada negra onde cada ponto é uma estrela de turbilhões, centro de uma irradiação de correntes, a conspiração da
indiferença das coisas contra a tenacidade de um ente, o inverno,
as nuvens, o mar sitiante, cercavam Gilliatt, apertavam-no lentamente,
fechavam-se sobre ele, e o separavam dos vivos, como
um cárcere que fosse subindo à roda de um homem. Tudo contra
ele, nada a favor dele; estava isolado, abandonado, minado, esquecido.<br>
Gilliatt- tinha esgotado as provisões, as ferramentas já estavam
usadas, a sede e a fome de dia, o frio de noite, feridas e andrajos,
vestidos rotos cobrindo supurações, buracos nas roupas e na carne,
mãos dilaceradas, pés sangrentos, membros magros, rosto
lívido, uma flama nos olhos.<br>
Flama soberba essa, era a vontade visível. O Olho do homem é
feito de modo que se lhe vê por ele a virtude. A nossa pupila diz
que quantidade de homens há dentro de nós. Afirmamo-nos pela
luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciências
piscam o Olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe
debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que
nada há que ame no coração. Quem ama quer, e aquele que quer
relampeja e cintila. A resolução enche os olhos de fogo; admirável
fogo que se compõe da combustão de pensamentos tímidos.<br>
Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um
assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem
é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade
tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está
nesta palavra: perseverando. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do
ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a
questão é ir a esse alvo; no primeiro caso, é Colombo, no segundo
caso, é Jesus. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória. Não deixar
discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se
obtém o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair
não exclui o pairar. Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-
se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes.<br>
Parecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. Podes
dar a Estevão todas as boas razões para que ele não se faça
apedrejar. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória
vencida que se chama o martírio.<br>
Todos os esforços de Gilliatt pareciam agarrados ao impossível, o
êxito era mesquinho ou lento, e cumpria gastar muito para obter
pouco; isso é que o fazia magnânimo, isso é que o fazia patético.<br>
Que para fazer um andaime de quatro pranchas acima de um navio
naufragado, para cortar nesse navio a parte que se podia salvar,
para ajustar a esse resto dos restos quatro guindastes com os
seus cabos, fossem precisos tantos preparativos, tantos trabalhos,
tantas apalpadelas, tantas noites mal dormidas, tantos dias
afadigados, essa era a miséria do trabalho solitário. Fatalidade na
causa, necessidade no efeito. Gilliatt fez mais do que aceitar essa
miséria; qui-la. Temendo um concorrente, porque um concorrente
poderia ser um rival, não procurou auxiliar. A esmagadora empresa,
o risco, o perigo, o trabalho multiplicado por si mesmo, o engolimento
possível do salvador no salvamento, a fome, a febre, a nudez, o
abandono, tudo isso tomou ele para si só. Teve este egoísmo.<br>
Gilliatt estava debaixo de uma espécie de máquina pneumática. A
vitalidade ia-se retirando dele a pouco e pouco. E ele mal o sentia.<br>
A perda das forças não esgota a vontade. Crer é apenas a segunda
potência; a primeira é querer; as montanhas proverbiais que a
fé transporta nada valem ao lado do que a vontade produz. O que
Gilliatt perdia em vigor reavia em tenacidade. A diminuição do homem
físico debaixo da ação repelente daquela natureza selvagem
produzia o engrandecimento do homem moral.<br>
Gilliatt não sentia a fadiga, ou, para melhor dizer, não consentia
nela. O consentimento da alma recusado ao desfalecimento do
corpo é uma força imensa.<br>
Gilliatt via os progressos do trabalho, e não via nada mais. Era
miserável sem sabe-lo. O seu alvo, que ele tocava quase, alucinava-o,
sofria todos os sofrimentos sem ter outra idéia que não fosse
esta: Avante! A sua obra subia-lhe à cabeça. Vontade embriagada.<br>
O homem pode embriagar-se corri a própria alma. Essa embriaguez
chama-se heroísmo.<br>
Gilliatt era uma espécie de Jó do Oceano.<br>
Mas um Jó que lutava, um Jó que combatia e afrontava os flagelos,
um Jó que conquistava, e se tais palavras não são demasiado
grandes para um pobre marinheiro pescador de caranguejos e de
lagostas, um Jó Prometeu.<br>
 
===''"SUB UMBRA"''===
 
Às vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra.<br>
Sentia-se comovido. Olhar aberto sobre trevas. Situação lúgubre;
ansiedade. Existe a pressão da sombra.<br>
Inexprimível teto de tenebras; alta obscuridade sem mergulhador
possível; luz mesclada à obscuridade, mas uma luz vencida e sombria;
claridade reduzida a pó; é semente? é cinza? milhões de
fachos, claridade nula; vasta ignição que não diz o seu segredo,
uma difusão de fogo em poeira que parece um bando de faíscas
paradas, a desordem do turbilhão e a imobilidade do sepulcro, o
problema oferecendo uma abertura de precipício, o enigma desvendando
e escondendo a sua face, o infinito mascarado com a
escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta superposição.<br>
Esse amálgama de todos os mistérios a um tempo, do mistério
cósmico e do mistério fatal, abate a cabeça humana.<br>
A pressão da sombra atua em sentido inverso nas diferentes espécies de almas. O homem, diante da noite, reconhecesse incompleto.<br>
Vê a obscuridade e sente a enfermidade. O céu negro é o
homem cego. Entretanto, com a noite, o homem abate-se, ajoelha-
se, prosterna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou procura
asas. Quase sempre quer fugir a essa presença informe do esconhecido.<br>
Pergunta o que é; treme, curva-se, ignora; às vezes quer ir lá.<br>
Aonde?<br>
Lá.<br>
Lá? O que é? Que há lá?
Essa curiosidade é evidentemente a das coisas defesas, porque
para aquele lado todas as pontes à roda do homem estão cortadas.<br>
Mas o desejo atrai, porque é golfão. Onde não vai o pé, vai o
olhar, onde o olhar pára, pode continuar o espírito. Não há homem
que não tente, por mais fraco e insuficiente que seja. O homem,
segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para
uns é um rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espetáculo
8 sombrio. Mescla-se a ele o indefinível.<br>
Vai a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um
fundo de fumaça. O ilimitado recusa-se e oferece-se ao mesmo
tempo, fechado à experiência, aberto à conjetura. Infinitas picadas
de luz tornam mais negra a obscuridade sem fundo. Carbúnculos,
cintilações, astros. Presenças verificadas no Ignorado; tremendos
reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da criação no
absoluto; são marcos de distância lá onde já não há distância; é
uma espécie de numeração impossível, e todavia real, do canal
das profundezas. Um ponto microscópico que fulge, depois outro,
mais outro; mais outro; é o imperceptível, é o enorme. Essa luz é
um foco, esse foco é uma estrela, essa estrela é um sol, esse sol
é um universo, esse universo é nada. Todo o número é zero diante
do infinito.<br>
Esses universos, que nada são, existem. Verificando-os, sente-se
a diferença que vai entre ser nada, e não ser.<br>
O inacessível ligado ao inexplicável, eis o céu.<br>
Dessa contemplação solta-se um fenômeno sublime: o crescimento
da alma pelo assombro.<br>
O medo sagrado é próprio do homem; a besta ignora esse medo. A
inteligência acha nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova.<br>
A sombra é una: vem daí o seu horror. É, ao mesmo tempo, complexa:
vem daí o terror. A sua unidade pesa no nosso espírito e
saca-lhe a vontade de resistir.<br>
A complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece
que se devem recear assaltos súbitos. O homem rende-se e defende-
se. Fica em presença de Tudo, daí vem a submissão, e de
Muitos, daí vem a desconfiança. A unidade da sombra contém um
múltiplo. Múltiplo misterioso, visível na matéria, sensível no pensamento.<br>
Faz silêncio, razão de mais para espreitar.<br>
A noite - já o disse algures quem escreve estas linhas é o estado
próprio, normal da criação especial de que fazemos parte. O dia,
breve na duração como no espaço, é apenas uma proximidade de
estrela.<br>
O prodígio noturno universal não se realiza sem atritos, e os atritos
de uma tal máquina são as contusões da vida. Os atritos da má-
quina, é o que chamamos o Mal. Sentimos nessa obscuridade o
mal, desmentido latente da ordem divina, blasfêmia implícita do
fato rebelde ao ideal. O mal acrescenta uma teratologia de mil
cabeças ao vasto conjunto cósmico. O mal está presente em tudo
para protestar. É furacão e atormenta a marcha de um navio, é
caos e entrava o desabrochar de um mundo. O Bem tem a unidade,
o Mal tem a ubiqüidade. O mal desconcerta a vida, que é uma
lógica. Faz devorar a mosca pelo pássaro, e o planeta pelo cometa.<br>
O mal é um borrão na natureza.<br>
A obscuridade noturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda,
submerge-se e debate-se. Não há lugar definitivo para pousar o
espírito. Pontos de partida sem ponto de chegada. O cruzamento
das soluções contraditórias, todos os ramos da dúvida a um tempo,
a ramificação dos fenômenos esfoliando-se sem limite sob uma
impulsão indefinida, mistura de todas as leis, uma promiscuidade
insondável que faz com que a mineralização vegete, com que a
vegetação viva, com que o pensamento pese, com que o amor
irradie e a gravitação ame; a imensa frente de ataque de todas as
questões desenvolvendo-se na obscuridade sem limites; o entrevisto
esboçando o ignorado; a simultaneidade cósmica em plena
aparição, não para o olhar, mas
para a inteligência, no espaço indistinto; o invisível tornado visão.<br>
É a sombra. O homem está embaixo. Não conhece os pormenores,
mas suporta, em qualidade proporcionada ao seu espírito, o peso
monstruoso do conjunto. Esta obsessão
impelia os passares caldeus à astronomia. Saem dos poros da
criação revelações involuntárias; faz-se por si mesma uma
transmudação de ciência e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação misteriosa torna-se o solitário, muitas vezes sem ter
consciência, um filósofo natural.<br>
A obscuridade é indivisível. É habitada. Habitada sem deslocação
pelo absurdo; habitada também com deslocação.<br>
Move-se ali dentro alguma coisa, o que é para assustar. Uma
formação sagrada desenvolve ali as suas fases. Premeditações,
potências, destinos intencionais laboram, aí em comum uma obra
desmedida. Vida terrível e horrível é o que existe ali dentro. Há
vastas evoluções de astros, a família estelar, a família planetária,
o pólen zodiacal, o Quid divinum das correntes, dos eflúvios, das
polarizações e das alterações; há o amplexo e o antagonismo, um
magnífico fluxo e refluxo da antítese universal, o imponderável em
liberdade no meio dos centros; há a seiva nos globos, a luz fora
dos globos, o átomo errante, o germe esparso, curvas de fecunda
ção, encontros de ajuntamento e de combate, profusões inauditas,
distâncias que parecem sonhos, circulações vertiginosas,
mergulhos de mundos no incalculável, prodígios perseguindo-se
nas trevas, um maquinismo definitivo, sopro de esferas em fuga,
rodas que se sente andarem; é inexpugnável, fora de alcance.<br>
Fica-se convencido até à opressão. Tem-se em si uma evidência
negra. Nada se pode agarrar. Esmaga-nos o impalpável.<br>
Por toda a parte o incompreensível: em parte alguma o inteligível.<br>
E a tudo isto acrescentai a terrível questão: esta Imanência é um
Ser? Está-se debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se. Entretanto
a terra sombria caminha e rola, as flores tem consciência desse
movimento enorme; a silena abre-se às 11 horas da noite e o
hernerocale às 5 horas da manhã. Imprevisível regularidade.<br>
Em outras profundidades a gota de água faz-se mundo, o infusório
pulula, a fecundidade gigante sai do animálculo, o imperceptível
ostenta a sua grandeza, o sentido inverso da imensidade manifesta-se; uma diatoméia produz em uma hora 1 milhar e 300 milhões
de diatoméias.<br>
Que proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo! Está aí o
irredutível.<br>
Constrange-se-nos à fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para
estar tranqüilo não basta ter fé. A fé tem uma estranha necessidade
de forma. Daí vem as religiões. Nada é tão opressivo como
urna crença sem delineamento.<br>
Qualquer que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a
resistência interior, olhar a sombra não é olhar, é contemplar.<br>
Que fazer desses fenômenos? Como mover-se debaixo de sua convergência? É impossível decompor esta pressão. Que devaneio se
deve ajuntar a todos esses confinantes misteriosos? Quantas revela
ções abstrusas, simultâneas, obscurecendo-se em sua própria
multidão, espécie de balbuciar do verbo! A sombra é um silêncio;
mas esse silêncio diz tudo. Surge majestosamente um resultado:
Deus. Deus é a noção incompreensível. Essa noção está no homem.<br>
Os silogismos, as querelas, as negações, os sistemas, as
religiões passam por cima sem diminuí-la. A sombra inteira afirma
aquela noção. Mas turva-se tudo o mais. A inexprimível harmonia
das forças manifesta-se pelo equilíbrio dessa obscuridade. O universo
pende; nada tomba.<br>
O deslocamento incessante e desmedido opera-se sem acidente e
sem fratura. O homem participa deste movimento de translação e
à quantidade de oscilação que suporta chama ele destino. Onde
começa o destino? Onde acaba a natureza? Que diferença há
entre um acontecimento e uma estação, entre um pesar e urna
chuva, entre uma virtude e uma estrela? - Uma hora não é uma
onda? Continua o movimento da roda, sem responder ao homem,
em sua revolução impassível. O céu estrelado é uma visão de
rodas, de pêndulas e de contrapesos. É a contemplação suprema
forrada da suprema meditação. É toda a realidade e mais a
abstração. Nada além daí. O homem sente-se preso. Fica à discrição da sombra. Não há evasão possível. Vê-se ele naquele composto
de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado, sente o
desconhecido que está fora dele. Isto é o anúncio sublime da
morte. Que angústia e, ao mesmo tempo, que fascinação! Aderir
ao infinito e por essa aderência atribuir-se uma imortalidade necessária, quem sabe? Uma eternidade possível sentir na prodigiosa
vaga desse silêncio universal a obstinação insubmersível do eu!
Contemplar os astros e dizer: Sou uma alma como vós! Contemplar
a obscuridade e dizer: Sou um abismo como tudo.<br>
Essas enormidades são a noite. Tudo isso aumentado, pela solidão, pesava em Gilliatt. Compreendia-o ele? Não. Sentia-o? Sim.<br>
Gilliatt era um grande espírito turvado e um grande coração selvagem.<br>
 
===GILLIATT COLOCA A PANÇA EM POSIÇÃO===
 
O salvamento da máquina, meditado por Gilliatt, era, como dissemos,
uma verdadeira evasão e são conhecidas as pacientais da
evasão. Também se conhecem as suas indústrias. A indústria chega ao milagre; a paciência atinge a agonia. Tal prisioneiro, Thomas,
por exemplo, no monte São Miguel, achou meio de esconder metade
de uma parede dentro da palha em que dormia. Outro, em Tulle,
em 1820, cortou chumbo na Plataforma de passeio da prisão, não
se sabe com que faca, fundiu-o não se sabe com que fogo, vazou-o numa forma feita de migalhas de pão; com esse chumbo e
essa forma fez urna chave e com essa chave abriu unia fechadura
que ele apenas conhecia por ter-lhe visto o buraco. Gilliatt tinha
essas habilidades inauditas. Era capaz de subir e descer o penedio
Boisrosé. Era o Trenk de um destroço e o Latude de uma máquina.<br>
O mar, que era o carcereiro, vigiava-o.<br>
Demais, por ingrata e má que fosse a chuva, Gilliatt aproveitou-a.<br>
Refez com ela a sua provisão de água doce; mas a sede era
inextinguível e Gilliatt esvaziava o pincel quase tão rapidamente
como o enchia.<br>
Um dia, o último de abril, creio, ou o 1 de maio, tudo estava pronto. O assoalho da máquina estava como que metido entre os oito cabos das polés, quatro de um lado, quatro de outro. As dezesseis aberturas, por onde passavam esses cabos, estavam ligadas ao tombadilho e à carena. A madeira foi cortada com o machado, o ferro com a lima, o forro com a faca e o resto
com a serra. A parte da quilha onde estava a máquina foi cortada
em quadro e estava pronta para resvalar com a máquina sustentando-
a. Todo esse grupo assustador só estava preso por urna
corrente, a qual dependia só de um golpe de lima. Tão perto do
remate, a pressa era prudência.<br>
A maré estava baixa, o momento era bom. Gilliatt tinha conseguido
desmontar a árvore das rodas, cujas extremidades podiam fazer
obstáculo e impedir aquele levantar de âncora. Tinha conseguido
amarrar verticalmente a pesada peça na própria máquina.<br>
Era tempo de acabar. Gilliatt, como dissemos, não estava cansado
porque não queria, mas as suas ferramentas estavam. A forja
tornava-se impossível a pouco e pouco. A pedra que servia de
bigorna tinha-se quebrado. O fole começava a trabalhar mal. Corno
a pequena queda hidráulica era de água
marinha, formaram-se depósitos salinos nas junturas do aparelho
e impediam-lhe o jogo. Gilliatt foi à angra do Homem, passou revista
à pança, assegurou-se de que tudo estava bom, particularmente as quatro argolas pregadas a bombordo e estibordo, levantou
a âncora e remando voltou com a pança às duas Douvres.<br>
O intervalo das Douvres podia admitir a pança. Havia bastante
fundo e bastante largura. Gilliatt reconheceu, desde o primeiro
dia, que podia-se levar a pança até debaixo da Durande.<br>
A manobra era contudo excessiva, exigia uma precisão de joalheiro
e esta inserção do barco no escolho era tanto mais delicada
quanto que, para o que Gilliatt queria fazer, era necessário entrar
pela popa com o leme na proa. Era necessário que o mastro e os
aparelhos da pança ficassem aquém do casco do vapor, do lado da
entrada.<br>
Este agravo na manobra tornou a operação difícil ao próprio Gilliatt.<br>
Já não era, como na angra do Homem, uma questão de movimento
de leme; era preciso ao mesmo tempo entrar, puxar, remar e sondar.<br>
Gilliatt empregou nisso nada menos de um quarto de hora, mas
conseguiu.<br>
Em quinze ou vinte minutos a pança ficou colocada debaixo da
Durande. Ficou quase atravessada. Gilliatt, por meio de duas âncoras,
segurou a pança. A maior ficou colocada de modo a trabalhar
com o vento mais forte, que era o vento de
oeste, depois, por meio de uma alavanca e de um cabrestante,
Gilliatt passou para a pança as duas caixas, contendo as rodas
desmontadas, cujos cabos de guindar estavam prontos. As duas
caixas fizeram lastro.<br>
Desembaraçado das duas caixas, Gilliatt prendeu ao gancho da
corrente do cabrestante o cabo regulador destinado a conter os
guindastes.<br>
Para a obra de Gilliatt os defeitos da pança tornavam-se qualidades;
não tinha coberta, o carregamento achava mais fundo e
podia pousar no porão. Era mastreada na proa, muito na proa
talvez, o carregamento achava mais facilidade e,O mastro ficava
fora da máquina, de modo que nada impedia a saída; era uma espécie de concha, e nada mais estável e sólido no mar como uma concha.<br>
De repente Gilliatt viu que a maré enchia. Trarou de ver donde
soprava o vento.<br>
 
===SURGE UM PERIGO===
 
Havia pouca brisa, mas vinha do oeste. É um mau costume do vento no equinócio.<br>
A maré enchente, conforme o vento que sopra, comporta-se diversamente
no escolho Douvres. Conforme o vento, a onda entra
naquele corredor ou por leste ou por oeste. Se o mar entra por
leste a água é boa e mole, se entra por oeste é furiosa. A razão
disto é que o vento de leste, vindo de terra, tem pouco alento,
enquanto que o vento de oeste, que atravessa o Atlântico, traz
consigo o sopro da imensidade. Mesmo quando a brisa é fraca
assusta quando vem do oeste. Rola largas ondas da extensão
ilimitada e cospe grossas vagas no estreito.<br>
A água que se engolfa é sempre terrível. A água é como a multidão; uma multidão é um líquido; quando a quantidade que pode
entrar é menor que a quantidade que deseja entrar, a multidão
machuca-se e a água convulsiona-se. Enquanto sopra o vento
do poente, ainda a mais fraca brisa, há nas Douvres este assalto
duas vezes por dia. A maré levanta-se, a rocha resiste, a abertura
é pequena, a onda entrando à força, salta e ruge, e um marulho
enraivecido bate as duas fachadas internas da viela. De modo que
as Douvres, ao menor vento do oeste, oferecem este espetáculo
singular: no mar, calma, no escolho, tempestade. Esse tumulto
local e circunscrito não é uma tormenta; é apenas uma revolta de
vagas, mas terrível. Quanto aos ventos do norte e do sul, esses
fazem pouca ressaca na garganta do escolho. A entrada por leste,
é preciso lembrá-lo, confina com o rochedo Homem; a abertura
temível do oeste fica na extremidade oposta exatamente entre as
duas Douvres.<br>
Nessa abertura de oeste é que se achava Gilliatt com a Durande
naufragada e a pança ancorada.<br>
Parecia inevitável uma catástrofe, esta catástrofe iminente tinha
embora pouco, o vento de que precisava.<br>
Dentro de poucas horas o inchamento do mar que subia, ia naturalmente
entrar em grande luta, no estreito das Douvres. As primeiras
vagas já começavam a rugir. Inchamento esse, refluxo impetuoso
de todo o Atlântico que teria atrás de si a totalidade do
mar. Nenhuma borrasca, nenhuma cólera; mas uma simples onda
soberana, contendo em si uma força de impulsão que, partindo da
América par a chegar à Europa, tinha 2 000 léguas de jato. Essa
onda, barra gigantesca do oceano, encontraria o hiato do escolho,
e, apertada nas duas Douvres, torres de entrada, pilares do
estreito, inchada pela maré, inchada pelo obstáculo, repelida pelo
rochedo, castigada pelo vento, faria violência ao escolho, penetraria,
com todas as torções do obstáculo encontrado, e todos os
frenesis da vaga entravada, entre as duas muralhas, encontraria a
pança e a Durande, e as estrangularia.<br>
Era preciso um broquel contra essa eventualidade. Gilliatt tinha-o.<br>
Cumpria impedir que a maré entrasse toda, impedir que esbarrasse
embora enchesse, tapar-lhe a passagem sem recusar-lhe a entrada,
resistir-lhe e ceder-lhe, prevenir a compressão da onda na
boca do rochedo, que era o perigo, substituir a irrupção pela introdução, conter a raiva e a brutalidade da vaga, obrigar aquela fúria
a ser tranqüila. Era preciso substituir ao obstáculo que irrita, o
obstáculo que aplaca.<br>
Gilliatt, com a destreza que tinha, mais forte que a força, executando
uma manobra de cabrito-montes na montanha ou de macaco
na floresta, utilizando com saltos oscilantes e vertiginosos a
menor saliência de pedra, pulando na água, nadando nos redemoinhos,
trepando ao rochedo, com uma corda nos dentes, um martelo
na mão, desatou o cabo que prendia à pequena Douvre o
pedaço da amurada de proa da Durande, fez com as pontas da
maroma uma espécie de gonzos prendendo aquele pedaço de madeira
aos grandes pregos metidos no granito, fez voltar naqueles
gonzos aquela armadura de tábuas semelhante ao alçapão de um
dique, expo-lo em flanco, como se faz com um leme, à onda que
impelia, e aplicou essa extremidade à grande Douvre, enquanto os
gonzos de cordas retinham na pequena Douvre a outra extremidade;
operou na grande Douvre, por meio de pregos, postos de
antemão, a mesma fixação que na pequena, amarrou solidamente
essa vasta placa de madeira ao duplo pilar da abertura, travou
nessa barra uma corrente como um talabarte numa couraça e, em
menos de uma hora, levantou-se o obstáculo contra a maré, e a
viela do escolho ficou fechada como por uma porta.<br>
Este robusto tapamento, pesada massa de pranchas, que deitado
seria uma jangada, e de pé uma parede, foi, com auxílio da vaga,
trabalhado por Gilliatt com uma agilidade de saltimbanco. Podia-se
dizer quase que a coisa foi feita antes que o mar se apercebesse
disso.<br>
Era um desses casos em que Jean Bart dizia o famoso dito que ele
dirigia à vaga do mar, cada vez que esquivava um naufrágio: Apanhei-
te, inglês! Sabe-se que Jean Bart quando queria insultar o
oceano chamava-o inglês.<br>
Tapado o estreito, Gilliatt cuidou da pança. Dividiu o cabo nas
duas âncoras para que ela pudesse subir com a maré. Operação
análoga a que os antigos marítimos chamavam: mouiller avec des
embossures.<br>
Em tudo isso Gilliatt não foi surpreendido, o caso estava previsto;
um homem do oficio reconhece-lo-ia vendo as duas roldanas de
guindar metidas por trás da pança, nas quais passavam dois pequenos
cabos cujas pontas estavam presas às argolas das duas
âncoras.<br>
Entretanto, crescia a maré; já subira a metade; é nesse momento
que os choques das ondas, mesmo plácidos, podem ser rudes. O
que Gilliatt combinara realizou-se. A onda rolava violentamente
para a porta, encontrava-a, inchava e passava por cima. Fora era
o marulho. Dentro a infiltração. Gilliatt imaginou alguma coisa semelhante
às forcas caudinas do mar. A maré estava vencida.<br>
 
===MAIS PERIPÉCIA QUE DESENLACE===
 
Chegara o tremendo instante.<br>
Tratava-se agora de por a máquina na pança.<br>
Gilliatt ficou pensativo alguns momentos, tendo o cotovelo do braço esquerdo na mão direita, e a fronte na mão esquerda. Depois
subiu à Durande, cuja metade, que era a máquina, devia sair e
cujo casco devia ficar.<br>
Cortou os quatro cabos que prendiam a estibordo e a bombordo as
quatro correntes do cano. Como era corda, bastou-lhe a faca.<br>
As quatro correntes, livres, ficaram pendentes ao longo do cano.<br>
Do navio subiu ele ao aparelho que construíra, bateu com o pé em
todas as pranchas, examinou as roldanas, viu as polés, apalpou os
cabos, verificou as emendas, assegurou-se de que o massame
não estava profundamente molhado, certificou-se de que nada
faltava, nem estava bambo, depois, pulando do alto das peças
sobre o tombadilho, tomou posição, ao pé do cabrestante, na
parte da Durande que devia ficar nas Douvres. Era esse o seu
posto de trabalho.<br>
Grave, sentindo somente a comoção útil, lançou um último olhar
ao aparelho, depois tomou uma lima e pôs-se a cortar a corrente
que sustentava tudo.<br>
Ouvia-se o ranger da lima no meio do murmúrio do mar.<br>
A corrente do cabrestante, presa ao cabo regulador, ficava ao
alcance da mão de Gilliatt.<br>
De repente, houve um estalo. A argola que a lima cortava, já
limada por metade, tinha-se quebrado; todo o aparelho estava
solto. Gilliatt teve apenas tempo de agarrar o grande cabo.<br>
A corrente quebrada bateu no rochedo, os oito cabos retesaram-se,
toda a massa cerrada e cortada desprendeu-se do navio, abriu-se
o ventre da Durande, o assoalho de ferro da máquina, pesando
sobre os cabos, apareceu debaixo da quilha.<br>
Se Gilliatt não tivesse chegado a tempo ao cabo regulador, havia
uma queda. Mas a sua mão terrível estava lá; foi apenas uma
descida.<br>
Quando o irmão de Jean Bart, Pierre Bart, aquele bêbado possante
e sagaz, aquele pobre pescador de Dunquerque que tratava o
grande almirante por tu, salvou a galera Langeron, perdida na baía
de Ambleteuse, quando, para tirar aquela pesada massa flutuante
dos cachopos da baía furiosa, amarrou a vela grande com juncos
marinhos, quando ele quis que os juncos, quebrando-se por si,
abrissem a vela ao vento, fiou-se na rotura dos juncos, como
Gilliatt na fratura da corrente, foi a mesma estranha audácia coroada
pela mesma vitória surpreendente. A corda motora, segura
por Gilliatt, operou admiravelmente. Devem lembrar-se de que essa
corda tinha por fim
diminuir as forças convertidas em uma só e reduzidas a um movimento
de conjunto. Aquela corda tinha alguma relação com uma
bolina; somente em vez de orientar uma vela, equilibrava um maquinismo.<br>
Gilliatt, de pé e com a mão no cabrestante, tinha por assim dizer a
mão no pulso do aparelho. Aqui a invenção de Gilliatt manifestou-se
toda. Produziu-se uma notável coincidência de forças. Enquanto
a máquina da Durande separada em massa, descia para a pança, a pança subia para a máquina. O navio naufragado e o barco
salvador, ajudando-se em sentido inverso, iam encontrando-se.<br>
Poupava-se, deste modo, metade do trabalho.<br>
A maré, enchendo sem rumor entre as duas Douvres, levantava a
embarcação e aproximava-a da Durande. A maré estava mais que
vencida, estava domesticada. O oceano fazia parte do maquinismo.<br>
A vaga subindo, levantava a pança sem choque, brandamente,
quase com precaução e como se ela fosse de porcelana.<br>
Gilliatt combinava e proporcionava os dois trabalhos, o da água e
do aparelho, e, imóvel, no cabrestante, espécie de estátua temí-
vel, obedecida por todos os movimentos ao mesmo tempo, regulava
a lentidão da descida pela lentidão da subida.<br>
Nenhum abalo na água, nenhum balanço nas pranchas. Era uma
estranha colaboração de todas as forças naturais dominadas. De
um lado a gravitação levava a máquina; do
outro a maré trazia o barco. A atração dos astros, que é o fluxo, e
a atração do globo, que é a gravidade, pareciam harmonizar-se
para servir a Gilliatt. A sua subordinação não tinha hesitação nem
parada, e, debaixo da pressão de uma alma, aquelas duas potências
passivas tornavam-se ativas auxiliares. A obra caminhava de
minuto a minuto; o intervalo entre a pança e a Durande diminuía
insensivelmente. Fazia-se a aproximação em silêncio e com uma
espécie de terror pelo homem que estava ali. O elemento recebia
uma ordem e executava-a.<br>
Quase no momento em que a maré cessou de subir, os cabos
cessaram de correr subitamente, mas sem comoção; as roldanas
pararam. A máquina, como se fosse colocada a mão, assentou-se
no fundo da pança. Estava direita, de pé, imóvel, sólida. A placa
que a sustentava apoiava-se com os seus quatro ângulos e a
prumo no porão.<br>
Estava pronto.<br>
Gilliatt olhou atônito.<br>
A pobre criatura não tinha tido muitas alegrias em sua vida. Sentiu
o alquebramento de uma imensa felicidade. Dobravam-se-lhe os
membros; e diante do seu triunfo, ele que não se perturbara até
então, começou a tremer.<br>
Contemplou a pança debaixo do navio e a máquina dentro da
pança. Parecia não acreditar. Dissera-se que ele não contava com
aquilo. Saíra-lhe um prodígio das mãos, e ele contemplava-o com
espanto.<br>
Mas esse espanto durou pouco.<br>
Gilliatt teve o movimento de um homem que desperta, travou da
serra, cortou os oito cabos, depois, separado agora da pança
apenas uns 10 pés, deu um salto, caiu dentro, pegou em um rolo
de fio, fez quatro cabos, passou-os nas argolas preparadas de
antemão e prendeu-se por ambos os lados da pança as quatro
correntes do cano que uma hora antes ainda estavam presas na
armirada da Durande.<br>
Amarrada ao cano, Gilliatt desembaraçou a parte superior da máquina. Um pedaço do tombadilho da Durande ainda ali estava preso.<br>
Gilliatt despregou-o e limpou a pança daquela porção de tábuas
e vergas que atirou sobre os rochedos. útil alívio.<br>
Demais, como é de prever, a pança sustentou com firmeza a carga
da máquina. Mergulhou muito pouca coisa. A máquina da Durande,
embora maciça, era menos pesada que o montão de pedras e o
canhão trazido outrora de Herin pela pança.<br>
Tudo estava acabado. Só restava ir-se embora.<br>
===INTERROMPE-SE O ÊXITO===
Nem tudo estava acabado.<br>
Abrir a entrada das Douvres, fechada pelo pedaço da armirada da
Durande, e levar imediatamente a pança para fora do .<br>escolho,
nada mais claro do que isto.<br>
No mar todos os minutos são urgentes. Pouco vento, apenas uma
ruga ao longe; a bela tarde prometia uma bela noite. O mar era de
rosas, mas o refluxo começava; excelente momento para partir.<br>
Gilliatt teria a vazante para sair das Douvres, e a enchente para
entrar em Guernesey. Podia estar em Saint-Sampson de madrugada.<br>
Mas apresentou-se um obstáculo inesperado. Houve uma lacuna
na previdência de Gilliatt.<br>
A máquina estava livre, o cano estava preso.<br>
A maré, aproximando a pança da Durande, tinha diminuído os perigos
da descida; mas essa diminuição do intervalo deixou a parte
superior do cano metida na espécie de quadro que apresentava o
bojo aberto da Durande. O cano estava preso como entre quatro
paredes.<br>
O serviço prestado pelo mar complicava-se com esta dissimulação.<br>
Parece que o mar, obrigado a obedecer, teve uma segunda tenção.<br>
É verdade que aquilo que a enchente fizera ia desfaze-lo a vazante.<br>
O cano, tendo mais de 3 toesas, de altura, tinha uns 8 pés metidos
na Durande; o nível da água aí baixaria 12 pés; o cano, descendo
com a pança, teria 4 pés de espaço acima de si, e poderia sair.<br>
Mas quanto tempo era preciso para isto? Seis horas.<br>
Daí a seis horas seria meia-noite. Que meio tentaria Gilliatt para
sair àquela hora, que canal tomaria através daqueles cachopos, já
tão inextricáveis de dia, e como arriscar-se no meio da noite em
semelhante emboscada de bancos de pedras?<br>
Era força esperar até o dia seguinte. Aquelas seis horas perdidas
faziam perder ao menos doze horas.<br>
Era mesmo necessário não adiantar trabalho abrindo a entrada ao
cachopo. O tapamento era preciso até a maré próxima.<br>
Gilliatt devia repousar.<br>
Cruzar os braços era a única coisa que ele não tinha feito desde
que estava no escolho Douvres.<br>
Irritou-o, indignou-o quase, como se fosse culpa dele, aquele descanso.<br>
Disse consigo: Que pensaria de mim Déruchette se me
visse aqui sem fazer nada?<br>
Contudo, não lhe era inútil refazer as forças.<br>
Estando a pança à sua disposição, Gilliatt resolveu passar a noite
a bordo.<br>
Foi buscar a pele de carneiro no alto da grande Douvre, desceu,
comeu algumas conchas e duas ou três castanhas do mar, bebeu
por ter muita sede os últimos goles da água doce do pichel quase
vazio, embrulhou-se na pele cuja lã deu-lhe prazer ao corpo, deitou-se como um cão de guarda ao pé da máquina, abaixou o
chapéu sobre os olhos e adormeceu.<br>
Dormiu profundamente. Tem-se daqueles sonos depois das obras
acabadas.<br>
===AS ADVERTÊNCIAS DO MAR===
No meio da noite, bruscamente, e como por mola, Gilliatt acordou.<br>
Abriu os olhos.<br>
As Douvres, acima da cabeça dele, estavam iluminadas como pela
reverberação de uma grande brasa branca. Havia em toda a fachada
negra do escolho um reflexo de fogo.<br>
Donde vinha o fogo?<br>
Da água.<br>
O mar estava extraordinário.<br>
Parecia que a água incendiava-se. Onde os olhos alcançavam, no
escolho e fora do escolho, flamejava o oceano. Não era uma flama
vermelha; não se parecia com a grande flama viva das crateras e
das fornalhas. Nenhuma crepitação, nenhum ardor, nenhum
avermelhado, nenhum ruído. Rastilhos azulados imitavam na água
as dobras de uma mortalha. Um grande clarão lívido estremecia na
água. Não era incêndio; era o espectro dele.<br>
Era uma coisa semelhante ao abrasamento lívido do interior de um
sepulcro por uma chama ideal.<br>
Imaginai trevas acesas.<br>
A noite, a vasta noite turva e difusa, parecia ser um combustível
daquele fogo gelado. Era uma claridade feita de cegueira. A sombra
entrava como elemento naquela luz fantasma.<br>
Os marinheiros da Mancha conhecem todas essas indescritíveis
fosforescência, que advertem o navegante. Em parte alguma são
mais surpreendentes do que no Grande V, perto de Isigny.<br>
Diante desta luz as coisas perdem a realidade. Uma penetração
fantástica torna-as como que transparentes. Os rochedos são
apenas lineamentos. Os cabos das âncoras parecem barras de
ferro ardentes. As redes dos pescadores parecem um crivo de
fogo debaixo da água. Metade do remo é de ébano, a outra metade
debaixo da água é de prata. Os pingos da água que caem dos
remos fazem estrelas no mar. Todos os barcos arrastam um cometa.<br>
Os marinheiros molhados e luminosos parecem homens que
ardem. Mergulha-se a mão no mar e sai calçada de chama: é uma
chama morta, não se sente. O braço parece um tição aceso. Vêemse
as formas que estão no mar rolarem debaixo das vagas alumiadas.<br>
A espuma cintila. Os peixes são línguas de fogo e uns peda-
ços de relâmpago serpenteiam naquela pálida profundidade.<br>
Gilliatt acordou porque o clarão atravessou-lhe as pálpebras fechadas.<br>
Acordou a tempo.<br>
A maré tinha descido; começava a encher de novo.<br>
O cano da máquina, solto durante o sono de Gilliatt, ficou outra
vez preso no casco do navio.<br>
Subia lentamente.<br>
Mais palmo e meio, e o cano estaria dentro da Durande.<br>
Para isso ainda havia meia hora. Gilliatt, se quisesse aproveitar a
ocasião, tinha essa meia hora diante de si.<br>
Levantou-se sobressaltado.<br>
Por mais urgente que fosse a situação, ele não pode deixar de
ficar alguns instantes de pé, contemplando a fosforescência e
meditando.<br>
Gilliatt conhecia o mar a fundo. Embora tivesse sido muito maltratado
por ele, o mar era já de muito tempo companheiro de Gilliatt.<br>
Aquele ente misterioso que se chama oceano não podia ter nenhuma
idéia que Gilliatt não a adivinhasse. Gilliatt, à força de
observação, de cisma e de solidão, tornara-se um vidente do tempo,
aquilo que se chama, em inglês, um wheater wise.<br>
Gilliatt correu às amarras e guindou-as; depois, já não estando
retido pelas âncoras, travou do croque da pança e, apoiando-se
nas rochas, afastou-a para fora algumas braças distante da Durande
perto do tapamento de tábuas. Havia rang, como dizem os marítimos
de Guernesey. Em menos de dez minutos a pança estava fora
do casco. Já não havia receio de que o cano pudesse ficar preso.<br>
Entretanto, Gilliatt não se mostrava disposto a partir.<br>
Contemplou ainda a fosforescência e levantou as âncoras; mas
não era para navegar, era para ancorar de novo a pança, e muito
solidamente; é verdade que o barco ficou junto da porta.<br>
Até então só tinha usado das duas âncoras da pança, e não tinha
ainda empregado a pequena âncora da Durande, achada, como se
sabe, nos cachopos. Essa colocou-a ele, pronta para as urgências,
num canto da pança entre marramos e polés, e juntamente o
cabo guarnecido de boças. Gilliatt deitou ao mar essa terceira
âncora, tendo cuidado de prender o cabo a outro cabo pequeno,
cuja ponta passava na argola da âncora, ficando a outra ponta no
ferro de guindar. Deste modo amarrou a pança com três âncoras, o
que era mui forte. Indicava isto uma viva preocupação e um redobrar
de cautelas. Qualquer marinheiro reconheceria, nessa opera-
ção, alguma coisa semelhante a um deitar ferros obrigado, quando
há a requeira uma corrente que possa fazer garrar o navio.<br>
A fosforescência sobre a qual Gilliatt tinha os olhos fixos ameaçava-o talvez, mas ao mesmo tempo, servia-o. Se não fosse ela, Gilliatt era prisioneiro do sono e vítima da morte. Ela não só o despertou, senão que o alumiava também.<br>
Havia no escolho uma luz opaca. Mas esse clarão, por mais assustador
que parecesse a Gilliatt, foi-lhe útil porque tornou-lhe o
perigo visível e a manobra possível.<br>
Agora, quando Gilliatt quisesse abrir vela, a pança, carregando a
máquina, estava livre.<br>
Somente, Gilliatt parecia pensar cada vez menos em partir. Ancorada
a pança, foi ele buscar a mais forte corrente que tinha no
depósito e prendeu-a nos pregos metidos nas duas Douvres, fortificou
com ela o baluarte de vergas e barrotes já protegido pelo
lado de fora pela outra corrente. Longe de abrir caminho, Gilliatt
tapava-o.<br>
A fosforescência ainda iluminava, mas ia diminuindo. É verdade
que o dia começava a romper.<br>
De repente, Gilliatt prestou ouvidos.<br>
===PARA UM BOM ENTENDEDOR, MEIA PALAVRA BASTA===
Pareceu-lhe ouvir, imensamente longe, um que de fraco e indistinto.<br>
As profundezas, em certas horas, tem um certo rugido.<br>
Gilliatt atentou pela segunda vez. O rumor longínquo recomeçou.<br>
Gilliatt sacudiu a cabeça como quem sabia o que era.<br>
Momentos depois, estava ele na outra extremidade da viela do
escolho, na entrada de leste, livre até ali, e com grandes marteladas
meteu grossos pregos no granito dos portais daquela abertura
vizinha do rochedo Homem.<br>
Os buracos desses rochedos estavam preparados e guarnecidos
de cavilhas de madeira, quase tudo carvalho. O escolho desse lado
estava escalavrado, tinha muitas fendas, e Gilliatt pode meter aí
mais pregos ainda que no esvazamento das Douvres.<br>
Num momento dado, e como se lhe soprassem de cima, a
fosforescência apagou-se; o crepúsculo, cada vez mais luminoso,
substituía-a.<br>
Metidos os pregos, Gilliatt arrastou umas pranchas, depois cordas,
depois correntes, e, sem desviar os olhos do trabalho, sem se
distrair um momento, começou a construir na abertura do Homem,
com tábuas fixadas horizontalmente e presas por cabos, um desses
tapamentos de clarabóia, que a ciência já adotou, e qualifica
de quebra-mar.<br>
Os que viram, por exemplo, na Rocquaine em Guernesey, ou no
Boury-deau na França, o efeito que fazem algumas estacas pregadas
no rochedo, compreendem a força desses trabalhos símplices.<br>
O quebra-mar é a combinação daquilo que na França se chama
épico e daquilo que na Inglaterra se chama dick. O quebra-mar são
os cavalos de frisa das fortificações contra as tempestades. Não
se pode lutar contra o mar senão aproveitando a divisibilidade
dessa força.<br>
Entretanto, levantara-se o sol, perfeitamente puro. O dia estava
claro, o mar calmo.<br>
Gilliatt apressava o trabalho. Também ele estava calmo, mas na
sua pressa havia ansiedade.<br>
Passava, em grandes pulos, de rocha em rocha, do tapamento ao
depósito e do depósito ao tapamento. Voltava puxando apressadamente,
ora um gancho, ora um cabo. Manifestou-se então a
necessidade daquele depósito de destroços. Era evidente que Gilliatt
estava diante de uma eventualidade prevista.<br>
Uma forte barra de ferro servia-lhe de alavanca para mover os
barrotes.<br>
O trabalho executava-se tão depressa que mais parecia um crescimento
que uma construção. Quem não viu trabalhar um portageiro
militar não pode fazer idéia daquela rapidez.<br>
A abertura de leste era ainda mais estreita que a de oeste. Tinha
apenas 5 ou 6 pés de largura. A estreiteza ajudava Gilliatt. Sendo
estreito o espaço que tinha de fortificar e fechar, a armadura seria
mais sólida e podia ser mais simples. Bastavam, pois, vigas horizontais;
as peças verticais eram inúteis.<br>
Postos os primeiros travessões do quebra-mar, Gilliatt trepou em
cima e escutou.<br>
O rugido tornava-se expressivo.<br>
Gilliatt continuou a construção. Acrescentou-lhe dois cepos da
Durande ligados às pontas das vigas com driças passadas nas três
rodas das polés. Ligou tudo com correntes.<br>
Essa construção era nada menos que uma espécie de grade colossal;
as pranchas eram as tenazes e as correntes eram os vimes.<br>
Parecia entrançado como parecia construído.<br>
Gilliatt multiplicou os laços e pós mais pregos on preciso.<br>
Tendo muito ferro redondo na Durande, pode faze grande provisão
desses pregos.<br>
Ao mesmo tempo que trabalhava ia mastigando. Tinha sede, mas
não podia beber, por já não ter água Esgotara o pichel na noite
anterior.<br>
Acrescentou ainda quatro ou cinco tábuas, depois em cima de
tudo. Escutou.<br>
Cessou o rumor ao longe e calava-se tudo.<br>
O mar estava manso e soberbo; merecia todos os madrigais que lhe dirigem os burgueses quando estão contentes com ele - um espelho, um mar de rosas, um tanque, um mar de leite. O azul profundo do céu correspondia ao verde profundo do oceano. Aquela safira e aquela esmeralda podiam admirar-se ambas. Não tinham de que exprobrar-se. Nenhuma nuvem em cima, nenhuma
espuma embaixo. No meio desse esplendor subia magnificamente o sol
de abril. Era impossível ver mais belo dia.<br>
No extremo horizonte uma fila negra de aves que atravessavam o
céu. Iam depressa. Dirigiam-se para a terra. Parecia uma fuga.<br>
Gilliatt continuou a levantar o quebra-mar.<br>
Levantou-o o mais alto que pôde, tão alto como lhe permitiu a curvatura dos rochedos.<br>
Ao meio-dia, o sol pareceu-lhe mais quente do que estar. Meio-dia
é a hora crítica do dia. Gilliatt, de pé na robusta clarabóia que acabava
de construir, entrou a contemplar a extensão.<br>
O mar estava mais que tranqüilo, estava estagnado. Não se via uma vela. O céu estava límpido; somente o azul tornara-se mais branco. Era
um branco singular. No horizonte, a oeste, havia uma manchazinha de
aparência ruim. Essa mancha estava imóvel, mas crescia. Junto dos
cachopos o mar palpitava brandamente.<br>
Gilliatt fizera bem em construir o quebra-mar.<br>
Aproximava-se uma tempestade.<br>
O abismo resolvera dar batalha.<br>
 
[[Categoria:Os Trabalhadores do Mar|Livro 2, Parte 2]]