Anais da Ilha Terceira/I/XXIX: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Angrense (discussão | contribs)
mSem resumo de edição
Angrense (discussão | contribs)
mSem resumo de edição
Linha 7:
|notas=
}}
Em consequência da deliberação tomada em conselho de guerra, embarcou-se El-Rei D. António para esta ilha Terceira, a 25 de Julho, em um navio pequeno mui ligeiro e bem provido em que andava. E com outros dois navios<ref>Citado [[w:Antonio Herrera y Tordesillas|Herrera]], no Livro 12, capítulo 16.</ref>, no dia imediato, 26 de Julho, de 1582, dia da gloriosa Santa Ana, entrou no porto da [[w:Vila de São Sebastião|vila de S.São Sebastião]], duas léguas distantes de Angra, recusando desembarcar no cais da cidade em que lhe estava preparado grande recebimento<ref>Veja-se o que dissemos no [[Anais_da_Ilha_Terceira/I/XXVIII|Capítulo VIII]] a respeito destes grandes preparativos.</ref>, com arcos triunfais, e muitas festa; o que tudo ele julgou intempestivo nas actuais circunstâncias, pelo estado em que deixara a sua armada. Vinha El-Rei acompanhado de mil homens de pé e de cavalo, e de muitos cavalheiros que o seguiram de França, entre os quais se contavam Francisco Botelho, Tomás Caldeira, António Borralho, e outros do seu conselho; e bem assim o acompanharam António de Carvalho, Duarte de Castro, Gaspar de Gâmboa e o vigário de Nossa Senhora do Calhau da ilha da Madeira, os quais todos, já por dedicação à sua causa, já na esperança de futuros prémios , o seguiam com demonstrações da mais íntima amizade. E recusando também El-Rei o recebimento solene que logo a vila lhe queria fazer, ouvindo missa na sua igreja principal, marchou por terra com a dita sua guarda para a cidade, até chegar ao portão de S. Bento, onde se demorou, por virem ali beijar-lhe a mão os que nela governavam.
 
Vinha El-Rei acompanhado de mil homens de pé e de cavalo, e de muitos cavalheiros que o seguiram de França, entre os quais se contavam Francisco Botelho, Tomás Caldeira, António Borralho, e outros do seu conselho; e bem assim o acompanharam António de Carvalho, Duarte de Castro, Gaspar de Gâmboa e o vigário de Nossa Senhora do Calhau da ilha da Madeira, os quais todos, já por dedicação à sua causa, já na esperança de futuros prémios<ref>Duarte de Castro vinha figurado amigo de El-Rei, com intenções de o matar; e Gaspar de Gâmboa, que deixava de ser corregedor da ilha da Madeira, foi preso indo de volta para Lisboa com o dito vigário e depois foi feito corregedor nesta ilha.</ref>, o seguiam com demonstrações da mais íntima amizade. E recusando também El-Rei o recebimento solene que logo a vila lhe queria fazer, ouvindo missa na sua igreja principal, marchou por terra com a dita sua guarda para a cidade, até chegar ao portão de S. Bento, onde se demorou, por virem ali beijar-lhe a mão os que nela governavam.
Chegou em primeiro lugar o corregedor Ciprião do Figueiredo, a quem El-Rei abraçou pondo-o à sua mão direita, e depois o conde de Torres Vedras, Manuel da Silva, que pôs à sua esquerda. De cada um que ia chegando, perguntava El-Rei ao corregedor que homem era, e conforme a sua informação o recebia ou repudiava sendo mui notável o procedimento que teve com o nobre fidalgo Rui Dias de S. Paio, a quem não admitiu, e mandou retirar da sua presença , e abraçou a dois negros deste fidalgo, por lhe dizer que eram seus afeiçoados, e lhes fez a honra que recusara ao senhor; e com esta distinção, que não parecia própria do tempo e circunstâncias em que se achava, tratou aos mais.
 
Chegou em primeiro lugar o corregedor [[w:Ciprião de Figueiredo|Ciprião do Figueiredo]], a quem El-Rei abraçou pondo-o à sua mão direita, e depois o [[w:Manuel da Silva Coutinho|conde de Torres Vedras, Manuel da Silva]], que pôs à sua esquerda. De cada um que ia chegando, perguntava El-Rei ao corregedor que homem era, e conforme a sua informação o recebia ou repudiava sendo mui notável o procedimento que teve com o nobre fidalgo Rui Dias de S.São Paio, a quem não admitiu, e mandou retirar da sua presença<ref>[[w:António Cordeiro|Cordeiro]], no lugar citado, referindo-se ao [[w:Gaspar Frutuoso|Doutor Frutuoso]]. A ''Relação'' que seguimos nada diz a este respeito.</ref>, e abraçou a dois negros deste fidalgo, por lhe dizer que eram seus afeiçoados, e lhes fez a honra que recusara ao senhor; e com esta distinção, que não parecia própria do tempo e circunstâncias em que se achava, tratou aos mais.
Acompanham-no igualmente muitas pessoas principais das vilas de S. Sebastião e da Praia , e em breve tempo chegaram todas as milícias da ordenança da cidade e de toda a ilha, bem como a gente de guerra paga, os quais todos foram recebidos com muita afabilidade.
 
Acompanham-no igualmente muitas pessoas principais das vilas de S. Sebastião e da Praia<ref>O [[w:António Cordeiro|Padre Cordeiro]], no Livro 6.º, capítulo 28, § 309, da ''História Insulana'' diz que El-Rei D. António se recolhera a esta ilha no dia 26 de Julho de 1582, pelo porto da vila de S. Sebastião, e o autor da mencionada ''Relação'', no capítulo 49, afirma que ele desembarcou no porto da vila da Praia; que fora pela [[w:Agualva (Praia da Vitória)|Agualva]], e entrara na cidade por Vale de Linhares. Da mesma forma o Padre Maldonado dá este desembarque na Praia, e acrescenta que El-Rei somente se demorara na Agualva uma hora, porém em nenhum, destes últimos autores achámos fundamento para destruir o que disse e primeiro, estribado na autoridade do Doutor Gaspar Frutuoso, porque não é crível que D. António rejeitasse os festejos com que o esperavam em Angra, para logo ir cuidar de uma romaria tão longe, e atravessar o interior da ilha com tanta gente que, como dissemos, trazia consigo. Provavelmente, se ele foi visitar a Agualva, seria noutra ocasião, quando passou a ver outros lugares da ilha.</ref>, e em breve tempo chegaram todas as milícias da ordenança da cidade e de toda a ilha, bem como a gente de guerra paga, os quais todos foram recebidos com muita afabilidade.
Ali lhe saiu ao encontro o senado, a recebê-lo com magnífica e real solenidade; e lhe fez a fala um religioso chamado Frei António Merens, que já por vezes fora enviado a França em serviço d’El-Rei, e lhe era mui bem conhecido . Então El-Rei, com muitos agradecimentos, recebeu a fala; e vestido de preto, seguido de tão brilhante acompanhamento, entrou pela cidade debaixo do pálio, em cujas varas pegavam os oficiais da Câmara. Ia montado em um pequeno cavalo, o qual o conde Manuel da Silva levava pelas rédeas. Toda a cidade estava no maior alvoroço e contentamento, com as ruas armadas de verdura. Os castelos e as fortalezas de contínuo disparavam a artilharia, e todas as companhias os mosquetes e arcabuzes.
 
Ali lhe saiu ao encontro o senado, a recebê-lo com magnífica e real solenidade; e lhe fez a fala um religioso chamado Frei António Merens, que já por vezes fora enviado a França em serviço d’El-Rei, e lhe era mui bem conhecido<ref>A citada ''Relação'' diz que lhe fizera a prática um dos vereadores que pegavam nas varas de pálio.</ref>. Então El-Rei, com muitos agradecimentos, recebeu a fala; e vestido de preto, seguido de tão brilhante acompanhamento, entrou pela cidade debaixo do pálio, em cujas varas pegavam os oficiais da Câmara. Ia montado em um pequeno cavalo, o qual o conde Manuel da Silva levava pelas rédeas. Toda a cidade estava no maior alvoroço e contentamento, com as ruas armadas de verdura. Os castelos e as fortalezas de contínuo disparavam a artilharia, e todas as companhias os mosquetes e arcabuzes.
 
Foi hospedar-se no mosteiro de S. Francisco, onde triste e pensativo pelo grande risco em que deixara a sua armada, se deteve até o dia seguinte em que se transportou ao palácio do marquês de Castelo Rodrigo, no qual habitava o conde Manuel da Silva, e que se achava ricamente preparado.
 
Aqui teve aviso do que se passava na ilha de S. Miguel, e pouco a pouco soube com grande mágoa o sucesso da batalha naval e desbarato da sua frota, notícia que profundamente o magoou<ref>Esta notícia foi trazida à Terceira por um pataxo francês, nos últimos dias do mês de Julho de 1582; e já de antes havia Manuel da Silva mandado um barco com gente armada, e tomando um mancebo dum barco de pesca, este francamente contara o desembarque de El-Rei D. António na dita ilha de S. Miguel, e tudo e mais que se passara.</ref>; e mais ainda se aumentou a sua dor quando ouviu contar a morte do [[w:Filippo Strozzi|conde FillippoFilippo Strozzi]], general da armada, e a do conde de Vimioso, seu primo. Com esta notícia vacilava de medo, sem saber o que faria: de tudo desconfiava, e tudo concorria para ser maior a sua inquietação, pois, ainda que se fiava da ilha Terceira, temia que o marquês de Santa Cruz, seguindo a vitória, viesse sobre ela com poder tão formidável, que se lhe não pudesse resistir. Nesta cruel situação se achava, quando chegaram a esta ilha 17 embarcações francesas e inglesas, fugidas da batalha. Com este pequeno recurso pareceu El-Rei tranquilizar-se por algum tempo, concebendo novas esperanças; e após destas embarcações vieram aparecendo outras, porque se não haviam retirado a França com Mr. de Brissac mais do que 18 naus francesas e 5 inglesas: e o Senhor de Landres ou Deslandres, capitão de 10 naus, retirando-se vergonhosamente do combate, foi saquear a [[w:Horta|vila da Horta]], na [[w:Ilha do Faial|ilha do Faial]], o que El-Rei D. António muito sentiu, e vindo o mesmo capitão apresentar-se-lhe, o despediu de seu serviço, por se ter havido tão desumanamente contra aquela ilha, que seguia constantemente a sua voz.
 
Passados que foram os oito dias de luto, saiu El-Rei com o seu estado-maior, e todas as suas famílias diante, e foi visitar a [[w:Violante do Canto|D. Violante da Silva do Canto]], filha de João da Silva do Canto, de quem já largamente falámos no ano de 1577; porquanto esta matrona, tendo ficado por morte de seus pais com mais de cem mil cruzadas de seu, tudo empregava eraem serviço do dito Rei, e assim lhe tinha escrito e oferecido por vezes. De tal forma se houve esta fidalga com todo o comedimento, prudência e grandeza, não cessando de oferecer toda a sua riqueza, que El-Rei lhe agradeceu com as expressões mais lisonjeiras, oferecendo-lhe as maiores honras e mercês na sua corte.
 
Saindo desta visita, passou El-Rei a ver a alfândega, e armada que estava no porto, correndo as ruas principais da cidade, que estavam ricamente adornadas, levando sempre consigo a sua guarda, composta de 500 archeiros e mosqueteiros, até que se recolheu ao seu paço.