A Cidade e as Serras/VIII: diferenças entre revisões

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|obra=[[A Cidade e as Serras]]
|autor=Eça de Queirós
|anterior=[[A Cidade e as Serras/VI|Capítulo VI]]
|posterior=[[A Cidade e as Serras/IX|Capítulo IX]]}}
 
Ao fim desse Inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu preguiçava na cama, sentindo através da vidraça cheia de sol ainda pálido um bafo de Primavera ainda tímido - Jacinto assomou à porta do meu quarto, revestido de flanelas leves, duma alvura de açucena. Parou lentamente à beira dos colchões, e, com gravidade, como se anunciasse o seu casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim esta declaração formidável:
 
-Zé Fernandes, vou partir para Tormes.
 
O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau-preto do velho D.Galião:
 
-Para Tormes? Ó Jacinto, quem assassinaste?...
 
Deleitado com a minha emoção, o Príncipe da Grã-Ventura tirou da algibeira uma carta, e encetou estas linhas, já decerto relidas, fundamente estudadas:
 
-“Ilmº e Exmº sr. - Tenho grande satisfação em comunicar a V.Exª que toda esta semana devem ficar prontas as obras da capela...”
 
-É do Silvério? - exclamei.
 
-É do Silvério. “... as obras da capela nova. Os venerandos restos dos excelsos avós de V. Exª, senhores de todo o meu respeito, podem pois ser em breve trasladados da igreja de S José, onde têm estado depositados pôr bondade do nosso Abade, que muito se recomenda a V.Exª... Submisso aguardo as prestantes ordens de V.Exª a respeito desta majestosa e aflitiva cerimônia...”
 
Atirei os braços, compreendendo:
 
-Ah! bem! Queres ir assistir à trasladação....
 
Jacinto sumiu a carta no bolso.
 
-Pois não te parece, Zé Fernandes? Não é pôr causa dos outros avós, que são vagos, e que eu não conheci. É pôr causa do avô Galião... Também não o conheci. Mas este 202 está cheio dele; tu estás deitado na cama dele; eu ainda uso o relógio dele. Não posso abandonar ao Silvério e aos caseiros o cuidado de o instalarem no seu jazigo novo. Há aqui um escrúpulo de decência, de elegância moral... Enfim, decidi. Apertei os punhos na cabeça, e gritei - vou a Tormes! E vou!... E tu vens!
 
Eu enfiara as chinelas, apertava os cordões do roupão:
 
-Mas tu sabes, meu bom Jacinto, que a casa de Tormes está inabitável...
 
Ele cravou em mim os olhos aterrados.
 
-Medonha, hem?
 
-Medonha, medonha, não... É uma bela casa, de bela pedra. Mas os caseiros, que lá vivem há trinta anos, dormem em catres, comem o caldo à lareira, e usam as salas para secar o milho. Creio que os únicos móveis de Tormes, se bem recordo, são um armário e uma espineta de charão, coxa, já sem teclas.
 
O meu pobre Príncipe suspirou, com um gesto rendido em que se abandonava ao Destino:
 
-Acabou!... ''alea jacta est''! E como só partimos para Abril, há tempo de pintar, de assoalhar, de envidraçar... Mando aqui de Paris tapetes e camas... Um estofador de Lisboa vai depois forrar e disfarçar algum buraco... Levamos livros, uma máquina para fabricar gelo... E é mesmo uma ocasião de pôr enfim numa das minhas casas de Portugal alguma decência e ordem. Pois não achas? E então essa! Uma casa que data de 1410... Ainda existia o Império Bizantino!
 
Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de sabão. O meu Príncipe acendeu muito pensativamente um cigarro; e não se arredou do toucador, considerando o meu preparo com uma atenção triste que me incomodava. Pôr fim, como se remoesse uma sentença minha, para lhe reter bem a moral e o suco:
 
-Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes que é um dever, um absoluto dever, ir eu a Tormes?
 
Afastei do espelho a cara ensaboada para encarar divertido espanto o meu Príncipe:
 
-Ó Jacinto! foi ti, só em ti que nasceu a idéia desse dever! E honra te seja, menino... Não cedas a ninguém essa honra!
 
Ele atirou o cigarro - e, com as mãos enterradas nas algibeiras das pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas cadeiras, embicando contra os postes torneados do velho leito de D.Galião, num balanço vago, com barco já desamarrado do seu seguro ancoradouro, e sem rumo no mar incerto. Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava enfileirada, pôr gradações de sentimentos, desde o daguerreótipo do papá até a fotografia do Corocho perdigueiro, a galeria da minha Família.
 
E nunca o meu Príncipe (que eu contemplava esticando os suspensórios) me pareceu tão corcovado, tão minguado, como gasto pôr uma lima que desde muito andasse fundamente limando. Assim viera findar, desfeita em Civilização, naquele super-requintado magricela sem músculo e sem energia, a raça fortíssima dos Jacintos! Esses guedelhudos Jacintões, que nas suas altas terras de Tormes, de volta de bater o mouro no Salado ou o castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas armaduras para lavar as suas cãs e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino com a lança e com a enxada, ambas tão rudes e rijas! E agora ali estava aquele último Jacinto, um Jacintículo, com a macia pele embebida em aromas, a curta alma enrodilhada em Filosofias, travado e suspirando baixinho na miúda indecisão de viver.
 
-Ó Zé Fernandes, quem é essa lavadeirona tão rechonchuda?
 
Estendi o pescoço para a fotografia que ele erguera de entre a minha galeria, no seu honroso caixilho de pelúcia escarlate:
 
-Mais respeito, Sr. D. Jacinto... Um pouco mais de respeito, cavalheiro!... É minha prima Joaninha, de Sandofim, da Casa da Flor da Malva.
 
-Flor da Malva - murmurou o meu Príncipe. - É a Casa do Condestável, de Nun’Álvares.
 
-Flor da Rosa, homem! A Casa do Condestável era na Flor da Rosa, no Alentejo... Essa tua ignorância trapalhona das coisas de Portugal!
 
O meu Príncipe deixou escorregar molemente a fotografia da minha prima de entre os dedos moles - que levou à face, no seu gesto horrendo de palpar através da face a caveira. Depois, de repente, com um soberbo esforço, em que se endireitou e cresceu:
 
-Bem! ''Alea jacta est''! Partamos pois para as serras!...E agora nem reflexão, nem descanso!... Á obra! E a caminho!
 
Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro loquete que abre os Destinos - e no corredor gritou pelo Grilo, com uma larga e açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a dum Chefe ordenando, na alvorada, que se levante o Acampamento, e que a Hoste marche, com pendões e bagagens...
 
Logo nessa manhã (com uma atividade em que eu reconheci a pressa enjoada de quem bebe óleo de rícino) escreveu ao Silvério mandando caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço apareceu na Biblioteca, chamado violentamente pelo telefone, para combinar a remessa de mobílias e confortos, o diretor da Companhia Universal de Transportes.
 
Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado num jaquetão de xadrezinho escuro, com polainas de jornada sobre botas brancas, uma multicor resumindo as suas condecorações exóticas de Madagáscar, de Nicarágua, da Pérsia, outras ainda, que provavam a universalidade dos seus serviços. Apenas Jacinto mencionou “Tormes, no Douro...” - ele logo, através dum sorriso superior, estendeu o braço, detendo outros esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.
 
-Tormes... Perfeitamente! Perfeitamente!
 
Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota - enquanto eu considerava, assombrado, a vastidão do seu saber Corográfico, assim familiar com os recantos duma serra de Portugal e com todos os seus velhos solares. Já ele atirara a carteira para o bolso... E “nós, seus caros senhores, não tínhamos senão a encaixotar as roupas, as mobílias, as preciosidades! Ele mandaria as suas carroças buscar os caixotes, a que poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço..."
 
-Tormes, perfeitamente! Linha Norte-Espanha-Medina-Salamanca... Perfeitamente! Tormes... Muito pitoresco! E antigo, histórico! Perfeitamente, perfeitamente!
 
Desengonçou a cabeça numa vênia profundíssima - e saiu da Biblioteca, com passos que devoravam léguas, anunciavam a presteza dos seus Transportes.
 
-Vê tu - murmurou Jacinto muito sério. - Que prontidão, que facilidade!... em Portugal era uma tragédia. Não há senão Paris!
 
Começou então no 202 o colossal encaixotamento de todos os confortos necessários ao meu Príncipe para um mês de serra áspera - camas de pena, banheiras de níquel, lâmpadas Carcel, divãs profundos, cortinas para vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. Os sótãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do avô Galião, foram esvaziados - porque o casarão medieval de 1410 comportava os tremós românticos de 1830. De todos os armazéns de Paris chegavam cada manhã fardos, caixas, temerosos embrulhos que os embaladores desfaziam, atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo, onde os nossos passos açodados se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido, organizava a remessa de fornalhas, geleiras, bocais de trufas, latas de conservas, bojudas garrafas de águas minerais. Jacinto, lembrando as trovoadas da serra, comprou um imenso pára-raios. Desde o amanhecer, nos pátios, no jardim, se martelava, se pregava, com vasto fragor, como na construção duma cidade. E o desfilar das bagagens, através do portão, lembrava uma página de Heródoto contando a marcha dos Persas.
 
Das janelas, Jacinto, com o braço estendido, saboreava aquela atividade e aquela disciplina:
 
-Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!... Saímos do 202, chegamos à serra, encontramos o 202. Não há senão Paris!
 
Recomeçara a amar a Cidade, o meu Príncipe, enquanto preparava o seu êxodo. Depois de Ter, toda a manhã, apressado os encaixotadores, descortinado confortos novos para o abandonado solar, telefonado gordas listas de encomendas a cada loja de Paris - era com delícia que se vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vitória ou saltava para a almofada do fáeton, e corria ao bosque, e saudava a barba talmúdica do Efraim, e os bandós furiosamente negros de Vergame, e o Psicólogo de fiacre, e a condessa de Trèves na sua nova caleche de oito molas fornecida pelas operações conjuntas da Bolsa e da alcova. Depois arrebanhava amigos para jantares de surpresa no Voisin ou no Bignon, onde desdobrava o guardanapo com a impaciência duma fome alegre, vigiando fervorosamente que os Bordpeus estivessem bem aquecidos e os Champanhes bem granitados. E no teatro das Nouveautés, no Palais Royal, nos Buffos, ria batendo na coxa, com encanecidas facécias de encanecidas farsas, antiquíssimos atores, com que já rira na sua infância, antes da guerra, sob o segundo Napoleão.
 
De novo, em duas semanas, se abarrotaram as páginas da sua Agenda. A magnificência do seu traje, como imperador Frederico II de Suábia, deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de Cravon-Rogan (onde também fui, de “moço de forcado”). E na Associação para o Desenvolvimento das Religiões Esotéricas discursou e batalhou bravamente pela construção dum Templo Budista de Montmartre!
 
Com espanto meu recomeçou também a conversar, como nos tempos de Escola, da “famosa Civilização nas suas máximas proporções”. Mandou encaixotar o seu velho telescópio para o usar em Tormes. Receei mesmo que no seu espírito germinasse a idéia de criar, no cimo da serra, uma Cidade com todos os seus órgãos. Pelo mesmo não consentia o meu Jacinto que essas semanas da silvestre Tormes interrompessem a ilimitada acumulação das noções - porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que entre tantos confortos e formas de Civilização esquecêramos os livros! Assim era - e que vexame para a nossa Intelectualidade! Mas que livros escolher entre os facundos milhares sob que vergava o 202? O meu Príncipe decidiu logo dedicar os seus serranos ao estudo da História Natural - e nós mesmos, imediatamente, deitamos para o fundo dum vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco tomos de Plínio. Despejamos depois para dentro, às braçadas, Geologia, Mineralogia, Botânica... Espalhamos pôr cima uma camada aérea de Astronomia. E, para fixar bem no caixote estas ciências oscilantes, entalamos em redor cunhas de Metafísica.
 
Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, saiu do portão do 202 na derradeira carroça da Companhia dos Transportes, toda esta animação de Jacinto se abateu como a efervescência num copo de Champanhe. Era em meados já tépidos de Março. E de novo os seus desagradáveis bocejos atroaram o 202 e todos os sofás rangeram sob o peso do corpo que lhe atirava para cima, mortalmente vencido pela fartura e pelo tédio, num desejo de repouso eterno, bem envolto de solidão e silêncio. Desesperei. O quê! Aturaria eu ainda aquele Príncipe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepúsculo entristecia a Biblioteca, aludindo, num tom rouco, à doçura das mortes rápidas pela violência misericordiosa do ácido cianídrico? Ah não, caramba! E uma tarde em que o encontrei estirado sobre um divã, de braços em cruz, como se fosse a sua estátua de mármore sobre o seu jazigo de granito, positivamente o abanei com furor, berrando:
 
-Acorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão deve estar pronto, a reluzir, a abarrotar de coisas! Os ossos de teus avós pedem repouso em cova sua!... A caminho, a enterrar esses mortos, e a vivermos nós, os vivos!... Irra! São cinco de Abril!... é o bom tempo da serra!
 
O meu Príncipe ressurgiu lentamente da inércia de pedra:
 
-O Silvério não me escreveu, nunca me escreveu... Mas, com efeito, deve estar tudo preparado... Já lá certamente criados, o cozinheiro de Lisboa... eu só levo o Grilo, e o Anatole que enverniza bem o calçado, e tem jeito como pedicuro... Hoje é Domingo.
 
Atirou os pés para o tapete, com heroísmo:
 
-Bem, partimos no Sábado!... Avisa tu o Silvério!
 
Começou então o laborioso e pensativo estudo dos Horários - e o dedo magro de Jacinto, pôr sobre o mapa, avançando e recuando entre Paris e Tormes. Para escolher o “salão” que devíamos habitar durante a temida jornada, duas vezes percorremos o depósito da Estação de Orleãs atolados em lama, atrás do chefe do Tráfico que entontecia. O meu Príncipe recusava este salão pôr causa da cor tristonha dos estofos; depois recusava aquele pôr causa da mesquinhez aflitiva do Water-Closet. Uma das suas inquietações era o banho, nas manhãs que passaríamos rolando. Sugeri uma banheira de borracha. Jacinto, indeciso, suspirava... Mas nada o aterrou como o trasbordo em Medina del Campo, de noite, nas trevas da Velha Castela. Debalde a Companhia do Norte da Espanha e de Salamanca, pôr cartas, pôr telegramas, sossegaram o meu camarada, afirmando que, quando ele chegasse no comboio de Irun dentro do seu salão, já outro salão ligado ao comboio de Portugal esperaria, bem aquecido, bem alumiado, com uma ceia que lhe ofertava um dos Diretores, D. Esteban Castilho, ruidoso e rubicundo conviva do 202! Jacinto corria os dedos ansioso pela face: - “E os sacos, as peles, os livros, quem os transportaria do salão de Irun para o salão de Salamanca?” Eu berrava, desesperado, que os carregadores de Medina eram os mais rápidos, os mais destros de toda a Europa! Ele murmurava: - “Pois sim, mas em Espanha, de noite!...” A noite, longe da Cidade, sem telefone, sem luz elétrica, sem postos de polícia, parecia ao meu Príncipe povoada de surpresas e assaltos. Só acalmou depois de verificar no Observatório Astronômico, sob a garantia do sábio professor Bertrand, que a noite da nossa jornada era de Lua-cheia!
 
Enfim, na Sexta-feira, findou a tremenda organização daquela viagem histórica! O Sábado predestinado amanheceu com generoso sol, de afagadora doçura. E eu acabava de guardar na mala, embrulhadas em papel pardo, as fotografias das criaturinhas suaves que, nesses vinte e sete meses de Paris, me tinham chamado "mon petit chou! mont rat cheri!” quando Jacinto rompeu pelo quarto, com um soberbo ramo de orquídeas na sobrecasaca, pálido e todo nervoso.
 
-Vamos ao bosque, pôr despedida?
 
Fomos - à grande despedida! E que encanto! Até nas almofadas e molas da vitória senti logo uma elasticidade mais embaladora. Depois, pela Avenida do Bosque, quase me pesava não ficar sempiternamente rolando, ao trote rimado das éguas perfeitas, no rebrilho rico de metais e vernizes, sobre aquele macadame mais alisado que mármore, entre tão bem regadas flores e relvas de tão tentadora frescura, cruzando uma Humanidade fina, de elegância bem acabada, que almoçara o seu chocolate em porcelanas de Sèvres ou de Minton, saíra de entre sedas e tapetes de três mil francos, e respirava a beleza de Abril com vagar, requinte e pensamentos ligeiros! O Bosque resplandecia numa harmonia de verde, azul e ouro. Nenhuma cova ou terra solta desalisava as polidas áleas que a Arte traçou e enroscou na espessura - nenhum esgalho desgrenhado desmanchava as ondulações macias da folhagem que o Estado escova e lava. O piar da aves apenas se elevava para espalhar uma graça leve de vida alada - e mais natural parecia, entre o arvoredo sociável, o ranger das selas novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as amazonas espartilhadas pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de Armenonville cruzamos Madame de Trèves, que nos envolveu a ambos na carícia do seu sorriso, mais avivado àquela hora pelo vermelhão ainda úmido. Logo atrás a barba talmúdica de Efraim negrejou, fresca também da brilhantina da manhã, no alto dum fáeton tilintante. Outros amigos de Jacinto circulavam nas Acácias - e as mãos que lhe acenavam, lentas e afáveis, calçavam luvas frescas cor de palha, cor de pérola, cor de lilás. Todelle relampejou rente de nós sobre uma grande bicicleta. Dorman, alastrado numa cadeira de ferro, sob um espinheiro em flor, mamava o seu imenso charuto, como perdido na busca de rimas sensuais e nédias. Adiante foi o Psicólogo, que nos não avistou, conversando com um requebro melancólico para dentro dum cupé que rescendia a alcova, e a que um cocheiro obeso imprimia dignidade e decência. E rolávamos ainda, quando o Duque de Marizac, a cavalo, ergueu a bengala, estacou a nossa vitória para perguntar a Jacinto se aparecia à noite nos “quadros vivos” dos Verghanes. O meu Príncipe rosnou um - “não, parto para o sul...” - que mal lhe passou de entre os bigodes murchos... e Marizac lamentou - porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da História Sagrada e da História romana!... Madame Verghane, de Madalena, de braços nus, peitos nus, pernas nuas, limpando com os cabelos os pés do Cristo! - O Cristo, um latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministério da guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão! Havia também Lucrécia na cama, e Tarquínio ao lado, de punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em mesas soltas, todos nos seus trajes históricos. Ele já estava aparceirado com Madame de Malbe, que era Agripina! Quadro portentoso esse - Agripina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as formas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, pôr polidez, ficara combinado que Nero admiraria sem reserva todas as formas de Madame de Malbe... Enfim colossal, e estupendamente instrutivo!
 
Acenamos um longo adeus àquele alegre Marizac. E recolhemos sem que Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se abismara, com os braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e forte. Depois, em frente ao Arco do Triunfo, moveu a cabeça, murmurou:
 
-É muito grave deixar a Europa!
 
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Enfim, partimos! Sob a doçura do crepúsculo que se enublara, deixamos o 202. O Grilo e o Anatole seguiam num fiacre atulhado de livros, de estojos, de paletós, de impermeáveis, de travesseiras, de águas minerais, de sacos de couro, de rolos de mantas; e mais atrás um ônibus rangia sob a carga de vinte e três rolos de mantas; e mais atrás um ônibus rangia sob a carga de vinte e três malas. Na Estação, Jacinto ainda comprou todos os Jornais, todas as Ilustrações, Horários, mais livros, e um saca-rolhas de forma complicada e hostil. Guiados pelo Chefe do Tráfico, pelo Secretário da Companhia, ocupamos copiosamente o nosso salão. Eu pus o meu boné de seda, calcei as minhas chinelas. Um silvo varou a noite. Paris lampejou, fulgiu num derradeiro clarão de janelas... Para o sorver, Jacinto ainda se arremessou à portinhola. Mas rolávamos já na treva da Província. O meu Príncipe então recaiu nas almofadas:
 
-Que aventura, Zé Fernandes!
 
Até Chartres, em silêncio. Folheamos as Ilustrações. Em Orleães, o guarda veio arranjar respeitosamente as nossas camas. Derreado com aqueles catorze meses de Civilização, adormeci - e só acordei em Bordéus quando Grilo, zeloso, nos trouxe o nosso chocolate. Fora, uma chuva miudinha pingava molemente dum espesso céu de algodão sujo. Jacinto não se deitara, desconfiado da aspereza e da umidade dos lençóis. E, metido num roupão de flanela branco, com a face arrepiada e estremunhada, ensopando um bolo no chocolate, rosnava sombriamente:
 
-Este horror!... E agora com chuva!
 
Em Biarriz.
 
Depois Jacinto, que espreitava pela janela embaciada, reconheceu o lento caminhar pernalto, o nariz bicudo e triste, do Historiador Danjon. Era ele, o facundo homem, vestido de xadrezinho, ao lado duma dama roliça que levava pela trela uma cadelinha felpuda. Jacinto baixou a vidraça violentamente, berrou pelo Historiador, na ânsia de comunicar ainda, através dele, com a Cidade, com o 202!... Mas o comboio mergulhara na chuva e névoa.
 
Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida fácil, os abrolhos da Incivilização, Jacinto suspirou com desalento:
 
-Agora adeus, começa a Espanha!...
 
Indignado, eu, que já saboreava o generoso ar da terra bendita, saltei para diante do meu Príncipe, e num saracoteio de tremendo salero, castanholando os dedos, entoei uma “petenera” condigna:
 
:''A la puerta de mi casa''
:''Ay Soledad, Soleda...á...á...á.''
 
Ele estendeu os braços, suplicante:
 
-Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!
 
-Irun! Irun!...
 
Nessa Irun almoçamos com suculência - porque sobre nós velava, como deus onipresente, a Companhia do Norte. Depois “el jefe d’Aduana, el jefe d’Estación”, preciosamente nos instalaram noutro salão, novo, com cetins cor de azeitona, mas tão pequeno que uma rica porção dos nossos confortos em mantas, livros, sacos e impermeáveis, passou para o compartimento do ''Sleeping'' onde se repoltreavam o Grilo e o Anatole, ambos de bonés escoceses, e fumando gordos charutos - ''Buen viage! Gracias! Servidores!'' - e entramos silvando nos Pireneus.
 
Sob a influência da chuva embaciadora, daquelas serras sempre iguais, que se densenrolavam, arrepiadas, diluídas na névoa, resvalei a uma sonolência doce; - e, quando descerrava as pálpebras, encontrava Jacinto a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos, sobre que cruzara os magros dedos, considerando vales e montes com a melancolia de quem penetra nas terras do seu desterro! Um momento veio em que, arremessando o livro, enterrando mais o chapéu mole, se ergueu com tanta decisão, que receei detivesse o comboio para saltar à estrada, correr através das Vascongadas e da Navarra, para trás, para o 202! Sacudi o meu torpor, exclamei: - “ó menino!...” Não! O pobre amigo ia apenas continuar o seu tédio para outro canto, enterrado noutra almofada, com outro livro fechado. E à maneira que a escuridão da tarde crescia, e com ela a borrasca de vento e água, uma inquietação mais aterrada se apoderava do meu Príncipe, assim desgarrado da Civilização, arrastado para a Natureza que já o cercava de brutalidade agreste. Não cessou então de me interrogar sobre Tormes:
 
-As noites são horríveis, hem, Zé Fernandes? Tudo negro, enorme solidão... E o médico?... Há médico?
 
Subitamente o comboio estacou. Mais grossa e ruidosa a chuva fustigou as vidraças. Era um descampado, todo em treva, onde rolava e lufava um grande vento solto. A máquina apitava, com angústia. Uma lanterna lampejou, correndo. Jacinto batia o pé: - É medonho! É medonho!...” Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das vidraças surdiam cabeças esticadas, assustadas. - “Que hay? Que hay?” - A uma rajada, que me alagou, recuei:- e esperamos durante lentos, calados minutos, esfregando desesperadamente os vidros embaciados para sondar a escuridão. De repente o comboio recomeçou a rolar, muito sereno.
 
Em breve apareceram as luzinhas mortas duma estação abarracada. Um condutor, com o casacão de oleado todo a escorrer, trepou ao salão: - e pôr ele soubemos, enquanto carimbava apressadamente os bilhetes, que o trem, muito atrasado, talvez não alcançasse em Medina o comboio de Salamanca!
 
-Mas então?...
 
O casaco de oleado escorregara pela portinhola, fundido na noite, deixando um cheiro de umidade e azeite. E nós encetamos um novo tormento... Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão, tomado até Medina, desengatava em Medina: - e eis os nossos preciosos corpos, com as nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre vinte e três malas, numa rude confusão espanhola, sob a tormenta de ventania e de água!
 
-Ó Zé Fernandes, uma noite em Medina!
 
Ao meu Príncipe aparecia como desventura suprema essa noite em Medina, numa fonda2 sórdida, fedendo a alho, com gordas filas de percevejos através dos lençóis de estopa encardida!... Não cessei então de fitar, num desassossego, os ponteiros do relógio: - enquanto Jacinto, pela vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio paciente fumegando... Depois recaía no divã, limpava os bigodes e os olhos, maldizia a Espanha. O trem arquejava, rompendo o vasto da planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?... Não! algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando, enquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas, rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam mais soturno. Jacinto esmurrava o joelho: - “Mas pôr que pára este infame comboio? Não há tráfico, não há gente! Ó esta Espanha!...” A sineta badalava, moribunda. De novo fendíamos a noite e a borrasca.
 
Resignadamente comecei a percorrer um Jornal do Comércio, antigo, trazido de Paris. Jacinto esmagava o espesso tapete do salão com passadas rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim escoou, às gotas, uma hora cheia de eternidade. - Um silvo, outro silvo!... Luzes mais fortes, longe, palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos solavancos, os encontros de carris. Enfim, Medina!... Um muro sujo de barracão alvejou - e bruscamente, à portinhola aberta com violência, aparece um cavalheiro barbudo, de capa à espanhola, gritando pelo sr. D. Jacinto!... Depressa! Depressa! Que parte o comboio de Salamanca.
 
-''Que no hay um momento, caballeros! Que no hay un momento!''
 
Agarro estonteadamente o meu paletó, o Jornal do Comércio. Saltamos com ânsia: - e, pela plataforma, pôr sobre os trilhos, através de charcos, tropeçando em fardos, empurrados pelo vento, pelo homem da capa à espanhola, enfiamos outra portinhola, que se fechou com um estalo tremendo... Ambos arquejávamos. Era um salão forrado dum pano verde que comia a luz escassa. E eu estendia o braço, para receber dos carregadores açodados as nossas malas, os nossos livros, as nossas mantas - quando, em silêncio, sem um apito, o trem despegou e rolou. Ambos nos atiramos às vidraças, em brados furiosos:
 
-Pare! - As nossas malas, as nossas mantas!... Pára aqui!... Ó Grilo! Ó Grilo!
 
Uma imensa rajada levou os nossos brados. Era de novo o descampado tenebroso, sob a chuva despenhada. Jacinto ergueu os punhos num furor que o engasgava:
 
-Ó! Que serviço! Ó que canalhas!... Só em Espanha!... E agora? As malas perdidas!... Nem uma camisa, nem uma escova!
 
Calmei o meu desgraçado amigo:
 
-Escuta! Eu entrevi dois carregadores arrebanhando as nossas coisas... Decerto o Grilo fiscalizou. Mas na pressa, naturalmente, atirou com tudo para o se compartimento... Foi um erro não trazer o Grilo conosco, no salão... Até podíamos jogar a manilha!
 
De resto a solicitude da Companhia, Deusa onipresente, velava sobre o nosso conforto - pois que à porta do lavatório branqueava o cesto da nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D. Esteban com estas doces palavras a lápis - à ''D. Jacinto y su egregio amigo, que les dê gusto!'' Farejei um aroma de perdiz. E alguma tranqüilidade nos penetrou no coração, sentindo também as nossas malas sob a tutela da Deusa onipresente.
 
-Tens fome, Jacinto?
 
-Não. Tenho horror, furor, rancor!... e tenho sono.
 
Com efeito! depois de tão desencontradas emoções só apetecíamos as camas que esperavam, macias e abertas. Quando caí sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe, que não se despira, apenas embrulhara os pés no meu paletó, nosso único agasalho, ressonava com majestade.
 
Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na cidadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:
 
-V. Exas não têm nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...
 
Era a minha terra! Murmurei baixinho com imensa ternura:
 
-Não temos aqui nada... pergunte V.Ex.ª pelo Grilo... Aí atrás, num compartimento... Ele tem as chaves, tem tudo... É o Grilo.
 
A fardeta desapareceu, sem rumor, como sombra benéfica. E eu readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicência, atarefada, de lenço branco cruzado no peito, decerto já preparava o leitão.
 
Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes - e outras rosas em moutas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob mimosas em flor que recendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Pôr cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.
 
Sacudi violentamente Jacinto:
 
-Acorda, homem, que estás na tua terra!
 
Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
 
-Então é Portugal, hem?... Cheira bem.
 
-Está claro que cheira bem, animal!
 
A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslizou, com descanso, como se passasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando e gozando a beleza da terra e do céu.
 
O meu Príncipe alargava os braços, desolado:
 
-E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colônia!... entro em Portugal, imundo!
 
-Na Régua há uma demora, temos tempo de chamar o Grilo, reaver os nossos confortos... Olha para o rio!
 
Rolávamos na vertente duma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco carregado de pipas. Para além, outros socalcos, dum verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul. Jacinto acariciava os pêlos corredios do bigode:
 
-O Douro, hem?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!
 
-Também eu! Destapamos o cesto de D. Esteban de onde surdiu um bodo grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras viandas frias que o ouro de duas nobres garrafas de Amontilado, além de duas garrafas de Rioja, aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto, Jacinto lamentou contritamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um solar histórico, assim abandonado e vazio! Que delícia, pôr aquela manhã tão lustrosa e tépida, subir à serra, encontrar a sua casa bem apetrechada, bem civilizada... Para o animar, lembrei que com as obras do Silvério, tantos caixotes de Civilização remetidos entendia um palácio perfeito, um 202 no deserto!... E, assim discorrendo, atacamos as perdizes. Eu desarrolhava uma garrafa de Amontilado - quando o comboio, muito sorrateiramente, penetrou numa estação. Era a Régua. E o meu Príncipe pousou logo a faca para chamar o Grilo, reclamar as malas que traziam o asseio dos nossos corpos.
 
-Espera, Jacinto! Temos muito tempo. O comboio pára aqui uma hora... Come com tranqüilidade. Não escangalhemos este almocinho com arrumações de maletas... O Grilo não tarda a aparecer.
 
E corri mesmo a cortina, porque de fora um padre muito alto, com uma ponta de cigarro colada ao beiço, parara a espreitar indiscretamente o nosso festim. Mas quando acabamos as perdizes, e Jacinto confiadamente desembrulhava um queijo manchego, sem que Grilo ou Anatole comparecessem, eu, inquieto, corri à portinhola para apressar esses servos tardios... E nesse instante o comboio, largando, deslizou com o mesmo silêncio sorrateiro. Para o meu Príncipe foi um desgosto:
 
-Aí ficamos outra vez sem um pente, sem uma escova... E eu que queria mudar de camisa! Pôr culpa tua, Zé Fernandes!
 
-É espantoso!... Demora sempre uma eternidade. Hoje chega e abala! Paciência, Jacinto. Em duas horas estamos na Estação de Tormes... Também não valia a pena mudar de camisa para subir à serra. Em casa tomamos um banho, antes de jantar... Já deve estar instalada a banheira.
 
Ambos nos consolamos com copinhos duma divina aguardente Chinchon. Depois, estendidos nos sofás, saboreando os dois charutos que nos restavam, com as vidraças abertas ao ar adorável, conversamos de Tormes. Na estação certamente estaria o Silvério, com os cavalos...
 
-Que tempo leva a subir?
 
Uma hora. Depois de lavados sobrava tempo para um demorado passeio pelas serras com o caseiro, o excelente Melchior, para que o Senhor de Tormes, solenemente, tomasse posse do seu Senhorio. E à noite o primeiro bródio da serra, com os pitéus vernáculos do velho Portugal!
 
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Jacinto sorria, seduzido:
 
-Vamos a ver que cozinheiro me arranjou esse Silvério. Eu recomendei que fosse um soberbo cozinheiro português, clássico. Mas que soubesse trufar um peru, afogar um bife em molho de moela, estas coisas simples da cozinha de França!... O pior é não te demorares, seguires logo para Guiães...
 
-Ah! menino, anos da tia Vicência no Sábado... Dia sagrado! Mas volto. Em duas semanas estou em Tormes, para fazermos uma larga Bucólica. E, está claro, para assistir à trasladação.
 
Jacinto estendera o braço:
 
-Que casarão é aquele, além no outeiro, com a torre?
 
Eu não sabia. Algum solar de fidalgote do Douro... Tormes era nesse feitio atarracado e maciço. Casa de séculos e para séculos - mas sem torre.
 
-E logo se vê, da estação, Tormes?...
 
-Não! Muito no alto, numa prega da serra, entre arvoredo.
 
No meu Príncipe já evidentemente nascera uma curiosidade ela sua rude casa ancestral. Mirava o relógio, impaciente. Ainda trinta minutos! Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no primeiro encanto de iniciado:
 
-Que doçura, que paz...
 
-Três horas e meia, estamos a chegar, Jacinto!
 
Guardei o meu velho Jornal do Comércio dentro do bolso do paletó, que deitei sobre o braço; - e ambos em pé, às janelas, esperamos com alvoroço a pequenina Estação de Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio, e pôr trás a serra coberta de velho e denso arvoredo... Logo na plataforma avistei com gosto a imensa barriga, as bochechas menineiras do chefe da Estação, o louro Pimenta, meu condiscípulo em Retórica, no Liceu de Braga. Os cavalos decerto esperavam, à sombra, sob as figueiras.
 
Mal o trem parou para mim com amizade:
 
-Viva o amigo Zé Fernandes!
 
-Ó belo Pimentão!...
 
Apresentei o senhor de Tormes. E imediatamente:
 
-Ouve lá, Pimentinha... Não está aí o Silvério?
 
-Não... O Silvério há quase dois meses que partiu para Castelo de Vide, ver a mãe que apanhou uma cornada dum boi!
 
Atirei a Jacinto um olhar inquieto:
 
Ora essa! E o Melchior, o caseiro?... Pois não estão aí os cavalos para subirmos à Quinta?
 
O digno chefe ergueu com surpresa as sobrancelhas cor de milho:
 
-Não!... Nem Melchior, nem cavalos... O Melchior... Há que tempos eu não vejo o Melchior!
 
O carregador badalou lentamente a sineta para o comboio rolar. Então, não avistando em torno, na lisa e despovoada Estação, nem criados nem malas, o meu Príncipe e eu lançamos o mesmo grito de angústia:
 
-E o grilo? as bagagens?...
 
Corremos pela beira do comboio, berrando com desespero:
 
-Grilo!... Ó Grilo!... Anatole!... Ó Grilo!
 
Na esperança que ele e o Anatole viessem mortalmente adormecidos, trepávamos aos estribos, atirando a cabeça para dentro dos compartimentos, espavorindo a gente quieta com o mesmo berro que retumbava: - “Grilo, estás aí, Grilo?” - Já duma terceira classe, onde uma viola repenicava, um jocoso gania, troçando: - “Não há pôr aí um grilo? Andam pôr aí uns senhores a pedir um grilo!” - E nem Anatole, nem Grilo!
 
A sineta tilintou.
 
-Ó Pimentinha, espera, homem, não deixes largar o comboio!... As nossas bagagens, homem!
 
E, aflito, empurrei o enorme chefe para o furgão de carga, a pesquisar, descortinar as nossas vinte e três malas! Apenas encontramos barris, cestos de vime, latas de azeite, um baú amarrado com cordas... Jacinto mordia os beiços, lívido. E o Pimentinha, esgazeado:
 
-Ó filhos, eu não posso atrasar o comboio!...
 
A sineta repicou... E com um belo fumo claro o comboio desapareceu pôr detrás das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e deserto. Ali ficávamos pois baldeados, perdidos na serra, sem Grilo, sem procurador, sem caseiro, sem cavalos, sem malas! Eu conservava o paletó alvadio, de onde surdia o Jornal do Comércio. Jacinto, uma bengala. Eram todos os nossos bens!
 
O Pimentão arregalava para nós os olhinhos papudos e compadecidos. Contei então àquele amigo o atarantado trasfego em Medina sob a borrasca, o Grilo desgarrado, encalhado com as vinte e três malas, ou rolando talvez para Madri sem nos deixar um lenço...
 
-Eu não tenho um lenço!... Tenho este Jornal do Comércio. É toda a minha roupa branca.
 
Grande arrelia, caramba! - murmurava o Pimenta, impressionado. - E agora?
 
-Agora - exclamei - é trepar para a Quinta, à pata... A não ser que se arranjassem aí uns burros.
 
Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta, ainda pertencente a Tormes, o caseiro, seu compadre, tinha uma boa égua e um jumento... E o prestante homem enfiou numa carreira para a Giesta - enquanto o meu Príncipe e eu caíamos para cima dum banco, arquejantes e sucumbidos, como náufragos. O vasto Pimentinha, com as mãos nas algibeiras, não cessava de nos contemplar, de murmurar: - “É de arrelia”. -O rio defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a calma já pesada de Maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma vilazinha clara. O espaço imenso repousava num imenso silêncio. Naquelas solidões de monte e penedia os pardais, revoando no telhado, pareciam aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha dominava, atulhava a região.
 
-Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm aí os bichos!... Só o que não calhou foi um selinzinho para a jumenta!
 
Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na mão duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E não tardaram a aparecer no córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça, um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos a mão suada e amiga do Pimentinha. Eu cedi a égua ao senhor de Tormes. E começamos a trepar o caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os Jacintos de século XIV! Logo depois de atravessarmos uma trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado pôr pedregulhos, o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das oliveiras... - E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável beleza daquela serra bendita!
 
Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebere que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Pôr toda a parte a água sussurrante, a água fecundante... espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava pôr uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados... Todo um cabeço pôr vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando: - ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, pôr cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espelhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...
 
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
 
-Que beleza!
 
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
 
-Que beleza!
 
Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Pôr trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros duma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras!
 
Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. Atirando uma vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os calcanhares, gritou: - “Aqui é que estamos, meus amos!” E ao fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da Quinta de Tormes, com o seu brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de furor. E quando Jacinto, na sua suada égua, e eu atrás, no burro de Sancho, transpusemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre, pela escadaria de pedra gasta, um homem nédio, rapado como um padre, sem colete, sem jaleca, acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu Príncipe. Era o Melchior, o caseiro...
 
Apenas me reconheceu, toda a boca se lhe escancarou num riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu lhe revelei, naquele cavalheiro de bigodes louros que descia da égua esfregando os quadris, o senhor de Tormes - o bom Melchior recuou, colhido de espanto e terror como diante duma avantesma.
 
-Ora essa!... Santíssimo nome de Deus! Pois então...
 
E, entre o rosnar dos cães, num bracejar desolado, balbuciou uma história que pôr seu turno apavorava Jacinto, como se o negro muro do casarão pendesse para desabar. O Melchior não esperava S. Exª!... (Ele dizia sua incelência)... O sr. Silvério estava para Castelo de Vide desde Março, com a mãe, que apanhara uma cornada na virilha. E decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o sr. Silvério só contava com S. Exª em Setembro, para a vindima! Na casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O telhado, no sul, ainda continuava sem telhas, muitas vidraças esperavam, ainda sem vidros; e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama arranjada!...
 
Jacinto cruzou os braços numa cólera tumultuosa que sufocava. Pôr fim, com um berro:
 
-Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em Fevereiro, há quatro meses?...
 
O desgraçado Melchior arregalava os olhos miúdos, que se embaciavam de lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada aparecera!... E na sua perturbação mirava pelas arcadas do pátio, palpava na algibeira das pantalonas. Os caixotes?... Não, não tinha os caixotes!
 
-E agora, Zé Fernandes?
 
Encolhi os ombros:
 
-Agora, meu filho, só vires comigo para Guiães... Mas são duas horas a cavalo. E não temos cavalos! O melhor é ver o casarão, comer a boa galinha que o nosso amigo Melchior nos assa no espeto, dormir numa enxerga, e amanhã cedo, antes do calor, trotar para cima, para a tia Vicência.
 
Jacinto replicou, com uma decisão furiosa:
 
-Amanhã troto, mas para baixo, para a estação!... E depois, para Lisboa!
 
E subiu a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima uma larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um alpendre de negras vigas, toda ornada, pôr entre os pilares de granito, com caixas de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarelo - e penetrei atrás de Jacinto nas salas nobres, que ele contemplava com um murmúrio de horror. Eram enormes, duma sonoridade de casa capitular, com os grossos muros e enegrecidos pelo tempo e o abandono, e relegadas, desoladamente nuas, conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma enxada entre paus. Nos tetos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões manchas de céu. As janelas, sem vidraças, conservavam essas maciças portadas, com fechos para as trancas, que, quando se cerram, espalham a treva. Sob os nossos passos, aqui e além, uma tábua podre rangia e cedia.
 
-Inabitável! - rugiu Jacinto surdamente. - Um horror! Uma infâmia!...
 
Mas depois, noutras salas, o soalho alternava com remendos de tábuas novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhíssimos tetos de rico carvalho sombrio. As paredes repeliam pela alvura crua da cal fresca. E o sol mal atravessava as vidraças - embaciadas e gordurentas da massa e das mãos dos vidraceiros.
 
Penetramos enfim na última, a mais vasta, rasgada pôr seis janelas, mobiliada com um armário e com uma enxerga parda e curta estirada a um canto; e junto dela paramos, e sobre ela depusemos tristemente o que nos restava de vinte e três malas - o meu paletó alvadio, a bengala de Jacinto, e o Jornal do Comércio que nos era comum. Através das janelas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra entrava e circulava como num eirado, com um cheiro fresco de horta regada. Mas o que avistávamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um cabeço e descendo pelo pendor suave, à Maneira duma hoste em marcha, com pinheiros na frente, destacados, direitos, emplumados de negro; mais longe as serras de além rio, duma fina e macia cor de violeta; depois a brancura do céu, todo liso, sem uma nuvem, duma majestade divina. E lá debaixo, dos vales, subia, desgarrada e melancólica, uma voz de pegureiro cantando.
 
Jacinto caminhou lentamente para o poial duma janela, onde caiu esbarrondado pelo desastre, sem resistência ante aquele brusco desaparecimento de toda a Civilização! Eu palpava a enxerga, dura e regelada como um granito de Inverno. E pensando nos luxuosos colchões de penas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei também a minha indignação:
 
-Mas os caixotes, caramba?... Como se perdem assim trinta e tantos caixotes enormes?...
 
Jacinto sacudiu amargamente os ombros:
 
-Encalhados, pôr aí, algures, num barracão!... Em Medina, talvez, nessa horrenda Medina. Indiferença das Companhias, inércia do Silvério... enfim a Península, a barbárie!
 
Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados pôr céu e monte:
 
-É uma beleza!
 
O meu Príncipe, depois de um silêncio grave, murmurou, com a face encostada à mão:
 
-É uma lindeza... E que paz!
 
Sob a janela vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Uma eira, velha e mal alisada, dominava o vale, de onde já subia tenuemente a névoa de algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão desse lado se encravava em laranjal. E duma fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e rutilante fio de água.
 
-Estou com apetite desesperado daquela água! - declarou Jacinto, muito sério.
 
-Também eu... Desçamos ao quintal, hem? E passamos pela cozinha, a saber do frango.
 
Voltamos à varanda. O meu Príncipe, mais conciliado com o destino inclemente, colheu um cravo amarelo. E pôr outra porta baixa, de rigíssimas ombreiras, mergulhamos numa sala, alastrada de caliça, sem teto, coberta apenas de grossas vigas, donde se ergueu uma revoada de pardais.
 
-Olha para este horror! - murmurava Jacinto arrepiado.
 
E descemos pôr uma lôbrega escada de castelo, tenteando depois um corredor tenebroso de lajes ásperas, atravancado pôr profundas arcas, capazes de guardar todo o grão duma província. Ao fundo a cozinha, imensa, era uma massa de formas negras, madeira negra, pedra negra, densas negruras de felugem secular. E neste negrume refulgia a um canto, sobre o chão de terra negra, a fogueira vermelha, lambendo tachos e panelas de ferro, despedindo uma fumarada que fugia pela grade aberta no muro, depois pôr entre a folhagem dos limoeiros. Na enorme lareira, onde se aqueciam e assavam as suas grossas peças de porco e de boi os Jacintos medievais, agora desaproveitada pela frugalidade dos caseiros, negrejava um poeirento montão de cestas e ferramentas; e a claridade toda entrava pôr uma porta de castanho, escancarada sobre um quintalejo rústico em que se misturavam couves lombardas e junquilhos formosos. Em roda do lume um bando alvoroçado de mulheres depenava frangos, remexia as caçarolas, picava a cebola, com um fervor afogueado e palreiro. Todas emudeceram quando aparecemos - e de entre elas o pobre Melchior, estonteado, com sangue a espirrar na nédia face de abade, correu para nós, jurando “que o jantarinho de suas Incelências não demorava um credo”...
 
-E a respeito de camas, ó amigo Melchior?
 
O digno homem ciciou uma desculpa encolhida “sobre enxergazinhas no chão...”
 
-É o que basta! - acudi eu, para o consolar. - Pôr uma noite com lençóis frescos...
 
-Ah, lá pelos lençoizinhos respondo eu!... Mas um desgosto assim, meu senhor! A gente apanhada sem um colchãozinho de lã, sem um lombozinho de vaca... Que eu já pensei, até lembrei à minha comadre, V. Incas podiam ir dormir aos Ninhos a casa do Silvério. Tinham lá camas de ferro, lavatórios... Ele sempre é uma leguazita e meu caminho...
 
Jacinto, bondoso, acudiu:
 
-Não, tudo se arranja, Melchior. Pôr uma noite!... Até gosto mais de dormir em Tormes, na minha casa da serra!
 
Saímos ao terreiro, retalho de horta fechado pôr grossas rochas encabeladas de verdura, entestando com os socalcos da serra onde lourejava o centeio. O meu Príncipe bebeu da água nevada e luzidia da fonte, regaladamente, com os beiços na bica; apeteceu a alface rechonchuda e crespa; e atirou pulos aos ramos altos duma copada cerejeira, toda carregada de cereja. Depois, costeando o velho lagar, a que um bando de pombas branqueava o telhado, deslizamos até ao carreiro, cortado no costado do monte. E andando, pensativamente, o meu Príncipe pasmava para os milheirais, para vetustos carvalhos plantados pôr vetustos Jacintos, para os casebres espalhados sobre os cabeços à orla negra dos pinheirais.
 
De novo penetramos na avenida de faias e transpusemos o portão senhorial entre o latir dos cães, mais mansos, farejando um dono. Jacinto reconheceu “certa nobreza” na frontaria do seu lar. Mas sobretudo lhe agradava a longa alameda, assim direita e larga, como traçada para nela se desenrolar uma cavalgada de Senhores com plumas e pajens. Depois, de cima da varanda, reparando na telha nova da capela, louvou o Silvério, “esse ralasso”, pôr cuidar ao menos da morada do Bom-Deus.
 
-E esta varanda também é agradável - murmurou ele mergulhando a face no aroma dos cravos. - Precisa grandes poltronas, grandes divãs de verga...
 
Dentro, na “nossa sala”, ambos nos sentamos nos poiais da janela, contemplando o doce sossego crepuscular que lentamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto tremeluzia uma estrelinha, a Vênus diamantina, lânguida anunciadora da noite e dos seus contentamentos. Jacinto nunca considerara demoradamente aquela estrela, de amorosa refulgência, que perpetua no nosso Céu católico a memória de Deusa incomparável: - nem assistira jamais, com a alma atenta, ao majestoso adormecer da Natureza. E este enegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos emudecendo; cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos vales; um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas; o segregado cochichar das águas e das relvas escuras - eram para ele como iniciações. Daquela janela, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que não anda somente cheia do Homem e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem enfim descansa.
 
Deste enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do “jantarinho de suas incelências”. Era noutra sala, mais nua, mais abandonada: - e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. Na mesa, encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de louça amarela, ladeados pôr colheres de estanho e pôr garfos de ferro. Os copos, dum vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada de azeitonas pretas, contentaria Diógenes. Espetado na côdea dum imenso pão reluzia um imenso facalhão. E na cadeira senhorial reservada ao meu Príncipe, derradeira alfaia dos velhos Jacintos, de hirto espaldar de couro, com madeira roída de caruncho, a clina fugia em melenas pelos rasgões do assento puído.
 
Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar... Jacinto ocupou a sede ancestral - e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e recendia. Provou - e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - “Está bom!”
 
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
 
-Também lá volto! - exclamava Jacinto com uma convicção imensa. - É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
 
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
 
-Ótimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!
 
E pôr esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio...
 
-Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
 
O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado:
 
-Pois é cá a comidinha dos moços da Quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
 
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava... e o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou pôr bradar: - “É divino!” Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
 
-Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?
 
Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural:
 
-Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rômulo e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo!
 
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência.
 
 
Ah! Jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Melchior - que ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de Verão. Filosofamos então com a pachorra e facúndia.
 
Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros - pôr causa dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam. Pôr isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro - um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais duma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
 
-Ó Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
 
-Não sei... e aquela, Zé Fernandes, além, pôr cima do pinheiral?
 
-Não sei.
 
Não sabíamos. Eu pôr causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebara? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum Ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, pôr menor, passa numa fibra desse sublime Corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte: - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu tijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
 
-Acredita!... O Sol tremeu.
 
E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante Terra pôr nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vênus de Milo e talvez na Princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de inefável beleza; colossais e duma carne mais dura que o granito, ou leves como gases e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência da Vida - porque decerto cada Mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo existo. Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos Saturnos, ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um ato sacrossanto que nos penetra e nos funde - que é sentirmos no Pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da Consciência, a Unidade do Universo!
 
-Hem, Jacinto?
 
O meu amigo rosnou:
 
-Talvez... Estou a cair com sono.
 
-Também eu. “Remontamos muito, Ex.mo Sr.!” como dizia o Pestaninha em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as estrelas!... tu sempre vais amanhã?
 
-Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. “Penso, logo fujo!” Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?... Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com o Sesimbra, o meu Administrador. E também à espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar decentemente, com roupa lavada, para a trasladação...
 
-É verdade, os ossos...
 
-Mas resta ainda o Grilo... Que animal! Pôr onde andará esse perdido?
 
Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de sebo já derretida no castiçal de lata era como um lume de cigarro num descampado, meditamos na sorte do Grilo. O estimado negro ou fora despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete malas, aos gritos - ou, regaladamente adormecido, rolara com o Anatole no comboio para Madri. Mas ambos os casos apareciam ao meu Príncipe como irremediavelmente destruidores do seu conforto...
 
-Não, escuta, Jacinto... Se o Grilo encalhou em Medina, dormiu na Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada correu para Tormes. Quando amanhã desceres à Estação, às quatro horas, encontras o teu precioso homem, com as tuas preciosas malas, metido nesse comboio que te leva ao Porto e à Capital...
 
Jacinto sacudiu os braços como quem se debate nas malhas duma rede:
 
-E se seguiu para Madri?
 
-Então, pôr esta semana, cá aparece em Tormes, onde encontra ordem para regressar a Lisboa e reentrar no teu séquito... Resta o interessante caso das minhas bagagens. Se amanhã encontrares na estação o Grilo, separa a minha mala negra, e o saco de lona, e a chaleira. O Grilo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para Guiães. Se o Grilo aportar Tormes, esfogueteado de Madri, com toda essa malaria, deixa as minhas coisas aqui, ao Melchior... Eu amanhã falo ao Melchior.
 
Jacinto sacudiu furiosamente o colarinho:
 
-Mas como posso eu partir para Lisboa, amanhã, com esta camisa de dois dias, que já me faz uma comichão horrenda? E sem um lenço... Nem ao menos uma escova de dentes!
 
Fértil em idéias, estendi as mãos, num belo gesto tutelar:
 
-Tudo se arranja, meu Jacinto, tudo se arranja! Eu, largando daqui cedo, pelas seis horas, chego a Guiães às dez, ainda sem calor. E, mesmo antes do almoço e da cavaqueira com tia Vicência, imediatamente te mando pôr um moço um saco de roupa branca. As minhas camisas e as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem direito a elegâncias e a roupas bem cortadas. O moço, num bom trote, entra aqui às duas horas; tens tempo de mudar antes de desceres para a Estação... Posso meter na mala uma escova de dentes.
 
-Ó Zé Fernandes! Então mete também uma esponja... E um frasco de água-de-colônia!
 
-Água de alfazema, excelente, feita pela tia Vicência...
 
O meu Príncipe suspirou, impressionado com a sua miséria esquálida, e esta dádiva de roupas:
 
-Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de emoções e de astros...
 
Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar que “estavam preparadinhas as camas de suas Incelências”. E seguindo o bom caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos nós, o meu Príncipe e eu, ainda há pouco irmanados com os astros? Em duas saletas, que uma abertura em arco, lôbrego arco de pedra, separava - duas enxergas sobre o soalho. Junto à cabeceira da mais larga, que pertencia ao senhor de Tormes, um castiçal de latão sobre um alqueire; aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima duma tripeça. Para mim, serrano daquelas serras, nem alguidar nem alqueire.
 
Lentamente, com o pé, o meu supercivilizado amigo apalpou a enxerga. E decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou pendido sobre ela, a correr desoladamente os dedos pela face desmaiada.
 
-E o pior não é ainda a enxerga - murmurou enfim com um suspiro. - É que não tenho camisa de dormir, nem chinelas!... E não me posso deitar de camisa engomada.
 
Pôr inspiração minha recorremos ao Melchior. De novo esse benemérito providenciou, trazendo a Jacinto, para ele desafogar os pés, uns tamancos - e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre, enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos mais crespos e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Príncipe lembrei que Platão quando compunha o Banquete, Vasco da Gama quando dobrava o Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem as almas fortes, ó Jacinto!... E é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.
 
-Tens tu - volveu o meu amigo secamente - alguma coisa que eu leia? Não posso adormecer sem um livro..
 
Eu? Um livro? Possuía apenas o velho número do Jornal do Comércio, que escapara à dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo meio, partilhei com Jacinto fraternalmente. Ele tomou a sua metade, que era a dos anúncios... E quem não viu então Jacinto, senhor de Tormes, acaçapado à borda da enxerga, rente da vela de sebo que se derretia no alqueire, com os pés encafuados nos socos, perdido dentro das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo num pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as partidas dos Paquetes - não pode saber o que é uma intensa e verídica imagem do Desalento.
 
Recolhido à minha alcova espartana, desabotoava o colete, num delicioso cansaço, quando o meu Príncipe ainda me reclamou:
 
-Zé Fernandes...
 
-Diz.
 
-Manda também no saco um abotoador de botas.
 
Estirado comodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao penetrar no Sono, que é um primo da Morte: ”Deus seja louvado!” Depois tomei a metade do Jornal do Comércio que me pertencia.
 
-Zé Fernandes...
 
-Que é?
 
-Também podias meter no saco pós dos dentes... E uma lima das unhas... E um romance!
 
Já a meia Gazeta me escapava das mãos dormentes. Mas da sua alcova, depois de soprar a vela, Jacinto murmurou entre um bocejo:
 
-Zé Fernandes...
 
-Hem?
 
-Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os lençóis ao menos são frescos, cheiram bem, a sadio!
 
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