Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/XII: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
nova página: ==__MATCH__:Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/197== Dormi magnificamente, em um amplo quarto desses das velhas casas do Rio de Janeiro que...
 
m 555: match
Linha 1:
 
==__MATCH__:[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/197]]==
Dormi magnificamente, em um amplo quarto desses das velhas casas do Rio de Janeiro que dão bem a imagem da fartura e da liberdade da nossa burguesia nos meados do século passado. Era maior do que as salas das nossas apelintradas casas de hoje. Despertei manhã adiantada. O quarto em que dormi dava para a sala de jantar. Penetrando aí, dei com D. Escolástica, de plácidos olhos verdes, a vigiar atentamente o pequeno Aleixo Manuel, que tomava uma ligeira refeição matinal antes de ir para o colégio. Gonzaga de Sá não estava. Ao entrar, o menino levantou a cabeça da xícara e pousou por instantes os seus grandes olhos negros, enervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/198]]==
sobre mim, interrogativamente, como sempre.
 
Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual... Não viu o que invocava em mim aquela criança, com a sua rígida fronte inteligente e a sua forte e redonda cabeça de homem de caráter! Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha D. Escolástica informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a conversar e, de caminho, falei à criança.
Linha 16 ⟶ 19:
— Terceiro.
 
— Com nove anos, vai bem, fiz eu animando-o. Já dás a História do Brasil?
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/199]]==
o. Já dás a História do Brasil?
 
— Sim, senhor.
Linha 42 ⟶ 47:
— Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu ela toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso diz-se que descobriu o Brasil.
 
A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem consciência de si própria; e então, quando
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/200]]==
fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e passei a perguntar outras coisas. Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou, passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. Beijou e abraçou D. Escolástica, e ambos o fizeram de maneira a me deixar perceber que um queria mais alguma coisa no outro, e que ambos não sabiam porque não a tinham. Foi-se.
 
— É inteligente o rapaz, disse eu à velha senhora.
Linha 52 ⟶ 59:
— Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
 
— É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles, que só numa idade mais avançada acabam
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/201]]==
percebendo, quando a consciência lhe revela o justo e o injusto, fazendo que se lhe enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?
 
Cri que D. Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.
Linha 71 ⟶ 80:
 
— O Figaro. Leio um por dia, como se fosse publicado aqui e entregue de manhã na minha porta. Ando sempre, por isso mesmo, atrasado com os acontecimentos mundiais.
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/202]]==
 
— Em que ponto está a Conferência de Haia?
Linha 99 ⟶ 109:
 
E tornou de novo ao jornal francês que estava lendo. Apanhei os jornais do dia, em cima de mesa do centro; li-os e, assim pelas nove horas, despedi-me. Não aceitei o almoço; chegaria tarde à Repartição.
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/203]]==
 
Ao despedir-me, Gonzaga me pediu:
Linha 106 ⟶ 117:
Depois da morte de seu compadre, a sua constante preocupação era o afilhado. Sem nenhum pretexto, sem causa nem motivo, em meio de uma palestra sobre assunto muito diverso, dava-lhe para falar no filho do Romualdo. Uma vez dizia: Preciso levá-lo ao Museu; outra, talvez fosse bom pô-lo de interno, para ganhar convivência, desembaraço, hábitos de sociabilidade. Que achas?
 
Eu possuía poucas aptidões pedagógicas, quase nenhumas; e respondia evasivamente. Notava, entretanto, que a presença constante da criança, a contemplação dela todo o dia, na intimidade familiar, tinha acelerado aquela alteração de humor no temperamento do meu velho amigo, que já observei; e trouxera mais uma carga de apreensões que não lhe eram habituais. Mudara... Gonzaga amava ternamente o rapaz; via-se bem que o queria como seu filho, e assim o tratava nos menores atos, e, nas mais simples palavras que lhe dirigia, punha a meiguice e a doçura de pai. Depois desta visita, mais de uma vez, porém, eu o surpreendi a olhar o afilhado com olhar de sibila. Havia não sei que grande esforço
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/204]]==
de penetração na sua mirada, que eu quis bem crer estar ele no propósito de decifrar o futuro do pequeno. Certa vez, depois de um olhar destes, disse-me:
 
— Esta vida é um conto do vigário...
Linha 117 ⟶ 130:
 
— Nunca.
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/205]]==
 
— Olha, que falo de amor! Hein?
Linha 130 ⟶ 144:
Trocávamos essas palavras nos últimos dias da sua existência, quando a alteração do seu gênio já se refletia claramente na saúde; e eu via bem que Gonzaga de Sá fanava-se, dissolvia-se vagarosamente ao fogo lento de suas secretas recordações e dos desgostos que o aparecimento delas lhe fizera assomar na alma. As faces se encovavam; os olhos, seus doces olhos, perdiam o brilho, apareciam mortiços e ganhavam uma estranha auréola. Não andava com a mesma firmeza, e o seu humor continuou a desequilibrar-se ainda mais. De uns tempos em diante, a sua palestra era frequentemente cortada por bruscas explosões de irritação, de queixumes indignos de sua altivez, em geral pueris e sem fundamento, passando espantosamente da mais intensa tristeza para a mais ruidosa alegria.
 
Aleixo Manuel, o afilhado, trouxe-lhe — quem sabe? — para a vida alguma coisa que
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/206]]==
queria não viesse jamais, ou não reaparecesse nunca; e ele sofria com isso, entristecia-se, alquebrava-se de corpo e alma, sem que fosse possível a mim atribuir diretamente tais modificações no meu amigo, ao dócil, ao meigo, ao obediente. Aleixo Manuel, que ele pusera em sua casa a fim de ficar sendo seu filho.
 
— Hei de fazê-lo gente, dizia-me às vezes, cheio de esperança e de alegria.
Linha 138 ⟶ 154:
A tia levou o menino até ao fim, com todo o carinho e abnegação.
 
Bênçãos a ambos, que, na sua missão educadora, souberam ser bons, sem interesse e sem cálculo de espécie alguma, apesar de todos os dons terem concorrido para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares para o uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa constante e um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio, criando-lhe um mal estar irremediável e, consequentemente, um desgosto da vida mais atroz do que o pensamento sempre presente da Morte!
==[[Página:Vida e morte de M J Gonzaga de Sá (1919).djvu/207]]==
do que o pensamento sempre presente da Morte!
 
Que importa isso, porém, se as tensões dos velhos foram generosas; e, se o sofrimento do pequeno, exteriorizado algum dia em grandes atos ou em grandes obras, possa concorrer mais tarde para o contentamento de muitos dos seus iguais que vierem depois!? Que importa!?