Curso de litteratura portugueza e brazileira (Sotero dos Reis)/Tomo Primeiro/Secção I/Licção II: diferenças entre revisões

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Vou, senhores, como me propus, ocupar a vossa ilustrada atenção com a origem, a formação e o aperfeiçoamento da língua portuguesa, ou com questões etnográficas, gramaticais e filológicas, que alguns podem reputar de pouco momento, mas são de altíssima importância; neste caso, porque sem o perfeito conhecimento da língua, que respeita à literatura que estudamos, nunca poderemos fazer nesta sólidos progressos. Passo, pois, a tratar da matéria sem mais preâmbulo.
 
Para todos os que têm feito estudo comparado da língua latina com as línguas suas derivadas, é fato incontestável que o Português vem do Latim, assim como o Espanhol, o Italiano, o Francês, o Provençal e a língua romance do norte da França, porque todos esses idiomas, análogos entre si, aproximam-se mais ou menos da língua mãe ou da fonte donde derivam
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no material das vozes, e na índole, que os caracteriza. De todos eles, porém, o que mais se chega à origem comum é o Português, tanto na estrutura de suas vozes, adaptadas do Latim com poucas exceções e apenas aportuguesadas com leve alteração, como em muitas de suas construções e maneiras de dizer análogas às construções e às maneiras de dizer dos Latinos. Assim, a derivação latina do último é por sua maior analogia com a língua mãe, mais direta, que a de nenhum outro idioma seu análogo.
 
O nosso grande épico, Camões um dos que melhor a soube manejar, assim se exprime no seu imortal poema a respeito do Português:
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Nem podiam os referidos idiomas ter outras filiações atentas às circunstâncias, especiais e locais, que precederam a sua formação. Apelemos para a história e disso nos convenceremos.
 
É sabido que o Latim foi língua dominante na maior parte da Europa romana, e com especialidade na Itália, nas Gálias, na Espanha. O poderoso meio de que se serviam os Romanos para propagar a sua língua era a sua administração civil, militar e judicial, que os punha constantemente em contato com os povos semibárbaros que conquistavam, e assimilavam-se mais tarde pelos laços da mesma civilização. O
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permanente aquartelamento das legiões romanas entre os vencidos para contê-los na obediência, a organização municipal dos Romanos, que concentrava toda polícia e civilização nas cidades, abandonando a escravos a cultura dos campos, a distribuição da justiça feita pelos pretores nas juntas ou assembleias das províncias a que eram reduzidas as conquistas, os discursos, atos e documentos oficiais escritos em Latim, todo esse conjunto de circunstâncias, tendentes ao mesmo fim, era uma coisa eficiente assaz poderosa para dar curso e voga à língua dos vencedores entre os povos submetidos, que com o andar do tempo vinham a adaptá-la, quando a sua civilização não era igual ou superior à dos Romanos, como era a dos Gregos. Assim se generalizou a língua latina em quase toda a Europa Romana.
 
O Latim foi, como o atestam todos os documentos que chegaram até nós, língua dominante na Espanha por mais de dez séculos, espaço de tempo suficiente para se generalizar na península, expelindo o antigo céltico que ali se falava. O Espanhol moderno, que substituiu o Latim e dele se formou, não conta tão longa duração. E note-se que o generalizar-se uma língua já formada é coisa menos difícil, que o formar-se uma nova.
 
Já durante a luta entre César e Pompeu, ou menos de meio século antes da era cristã, toda a Espanha, donde os Romanos haviam expulsado os Cartagineses que substituíram os Fenícios, achava-se sujeita às
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leis de Roma, e os soldados espanhóis serviam nos exércitos da república, onde se distinguiam por seu valor e disciplina.
 
No tempo dos imperadores romanos, e com especialidade do reinado de Cláudio em diante, começaram as letras latinas a florescer na Espanha com muito esplendor. Não poucos dos escritores latinos mais notáveis dessa época ali tiveram nascimento. Sêneca, Lucano, Lúcio Floro e Marcial foram espanhóis. O mesmo Quintiliano, segundo testemunho de Ausônio e S. Jerônimo, foi também espanhol.
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Para que a Espanha se distinguisse por tantos escritores ilustres, correndo parelhas em civilização com a Itália, era necessário, que já nesse tempo, a língua latina estivesse generalizada na península; isto é, que a gente bem-educada se exprimisse em Latim culto, e o povo baixo falasse o romano rústico, como acontecia na própria Itália. O antigo céltico já se achava, então, provavelmente, circunscrito à rara população dos campos onde, pelas causas que apontamos, dificilmente penetrava a civilização romana.
 
Outra causa eficiente, pela ventura ainda mais poderosa que a primeira, para a propagação e o domínio do Latim na Espanha, foi a influência do cristianismo
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que, nos séculos IV e V de nossa era, já florescia por toda a península. A prédica e a catequese não podiam deixar de levar, então, o conhecimento do Latim à mesma população dos campos. Por tal meio, o domínio dessa língua devia tornar-se completo em todo o território espanhol.
 
Nada, senhores, é tão eficaz para propagar e perpetuar o uso de uma língua, como a Religião que, identificando-se com o espírito pelos meios os mais poderosos, constituíam a base de toda a crença e moral pública. Disso podia, eu, apresentar-vos muitos e diversos exemplos, mas prefiro limitar-me aos conhecidos. O Latim que deixou de ser língua comum há coisa de sete ou oito séculos, é há mais de mil e oitocentos anos a língua sagrada da Igreja Católica e a língua oficial da Cúria Romana. O Sânscrito, muito mais antigo que o Latim, e donde se presume que este deriva, atenta à estreita analogia que se dá entre ambos os idiomas, muitos séculos há que deixou de ser língua comum, mas é ainda hoje a língua sagrada dos Brâmanes, que a estudam, como nós, o Latim.
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Na época citada, já a religião cristã se achava tão arraigada e resplandecia tanto na Espanha, que os bispos ali celebravam frequentes concílios sobre as coisas da igreja, e o clero espanhol não cedia em ilustração ao da África ou de Cartago, que era então que mais se distinguia por sua instrução e talento.
 
No último dos dois mencionados séculos, ou no V, deu-
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se a invasão dos Visigodos, que adaptaram com o andar do tempo a religião e a língua dos vencidos ou do povo civilizado, e foram a principal causa da corrupção do Latim na Espanha, seja introduzindo nele cópia de termos bárbaros, seja empregando mal os casos ou ainda não usando deles, porque este povo rude não podia em sua ignorância acomodar-se às formas e combinações científicas da bela língua de Cícero e Virgílio.
 
No século VII, de nossa era, publicou-se, em um concílio de bispos, o célebre Forum Judicum, ou coleção de leis dos Visigodos, escritas em Latim. Este concílio foi o XVI celebrado em Espanha, o que pressupõe a existência de outros quinze celebrados antes dele.
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O Forum Judicum é um verdadeiro monumento de ilustração, se o compararmos com a bárbara legislação dos outros povos da Idade Média naquela época, e prova que toda a ciência residia então no clero, e só nele. Desde que a civilização cristã substituiu a romana no século III, de nossa era, nenhum dos povos da Europa se mostrou tão adiantado nela como o Espanhol, que já, segundo vimos, muito se distinguiram nas letras latinas.
 
No princípio do século VIII, verificou-se a invasão dos Árabes na Península, os quais podendo, naquele tempo, passar por um povo civilizado, nunca conseguiram substituir pela sua língua, não digo já o Latim culto, que se refugiara nos mosteiros com a civilização cristã,
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mas nem sequer o bárbaro, cujo uso era mantido entre os vencidos, seja pela diversidade da crença religiosa, seja pela constante e gloriosa luta, que estes encetaram logo com os invasores até expulsá-los por fim de todo o solo espanhol no século XV, de nossa era. Mas, se os Árabes, no seu longo e disputado domínio de oito séculos, não conseguiram substituir o Latim pelo Arábico, porque o cristianismo a isso opunha insuperável barreira, não é menos certo que concorreram quase tanto como os Godos para a corrupção da língua latina na Espanha, porque nela foram, então, introduzidos muito termos árabes, que passaram depois em grande cópia para o Espanhol moderno e, em muitos menos quantidade, para o Português.
 
Do Latim, assim barbarizado e corrupto por duas invasões sucessivas de povos de índoles, crenças e línguas diversas, formou-se o Castelhano ou o Espanhol moderno, do século XI de nossa era, e o Português um século ou cinco quartos de século mais tarde, sendo que já do século XIII temos documento escrito em língua portuguesa.
 
O monumento de língua espanhola mais antigo, que chegou até nós, é o romance do Cid, ou famoso capitão Rui Dias de Bivar, que viveu no século XI. Esse romance, porém, escrito em Espanhol, já inteligível para os espanhós de hoje, é evidentemente de data posterior ou do século XIII. O cancioneiro do mesmo Cid, escrito já em Espanhol muito mais correto do
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que o do romance, é ainda de data posterior a este, ou provavelmente do século XIV ou XV. O Forum Judicum só foi traduzido em Castelhano no século XIII sob o título de Fuero Jusgo.
 
Que o português, língua muito diversa do Espanhol na estrutura das vozes, na índole e na pronúncia, não é, segundo pretenderam alguns sem o menor fundamento, um dialeto deste, é coisa assaz evidente para todos os que, tendo conhecimento de uma e outra língua, fazem delas estudo comparado.
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Para se conhecer que o elemento latino domina na formação do Português com raras exceções, basta tomar ao acaso alguns vocábulos e compará-los com os vocábulos latinos, donde derivam e se formam.
 
Os nomes substantivos portugueses foram, por exemplo, tomados em sua imensa maioria dos ablativos, acusativos e nominativos dos substantivos latinos da mesma significação, ou pura e simplesmente, ou com substituição, supressão ou adição de letras. Assim, dos ablativos
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ou nominativos dos substantivos latinos, hora, musa, fama, formaram-se pura e simplesmente dos substantivos portugueses hora, musa, fama; dos ablativos dos substantivos latinos servus, templum, verbum, ainda pura e simplesmente, os substantivos portugueses servo, templo, verbo; dos ablativos dos substantivos latinos charitas, pietas, tempestas, formaramse, com substituição de letras, os substantivos portugueses caridade, piedade, tempestade; dos nominativos dos substantivos latinos color, dolor, com subtração de letras, os substantivos portugueses cor, dor; do nominativo do substantivo latino stupor, formou-se, com adição de letra, o substantivo português estupor; dos acusativos dos substantivos latinos oratio, actio, mentio, formaram-se, com supressão e substituição de letras – pois que no nosso ditongo ão devemos atender unicamente ao som – os substantivos portugueses oração, ação, menção; dos nominativos dos substantivos latinos lux, crux, nux, com substituição de letras, os substantivos portugueses luz, cruz, noz; dos ablativos dos substantivos latinos cursus, impetus, fremitos, ainda com substituição de letras, os substantivos portugueses curso, ímpeto, frêmito; dos ablativos dos substantivos latinos numen, lumen, bitumen, formaram-se, com supressão de letras, os substantivos portugueses nume, lume, bitume; dos acusativos dos substantivos latinos nubes, origo, ordo, com substituição ou supressão de letras, os substantivos portugueses
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nuvem, origem, ordem; dos ablativos dos substantivos latinos facies, planities, fides, sedes, com supressão de letras, os substantivos portugueses face, planície, fé, sé; dos ablativos dos substantivos latinos caseus, despectus, formaram-se, com substituição e adição de letras, os substantivos portugueses queijo, desprezo; e assim os demais inumeráveis substantivos portugueses de origem latina.
 
Podia eu estender esse exame comparado aos adjetivos, aos verbos e às partes da oração invariáveis; e vereis que as diferenças a notar em relação à constante e íntima analogia entre os dois idiomas são tão insignificantes, que não fazem com que o Português desdiga um só momento de sua pura origem latina; entendo, porém, que não devo cansar a vossa atenção com coisas que se acham ao alcance de todos os que têm estudado seriamente o Latim.
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Assim, colocarei os idiomas cultos derivados do Latim por esta ordem de filiação analógica: em primeiro lugar, o Português; em segundo, o Italiano; em terceiro, o Espanhol; em quarto, o Francês.
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Com ser tão evidente a todos os respeitos à origem latina do Português, houve, contudo, quem a impugnasse para dar a nossa língua uma origem céltica, o que prova tão somente que não há opinião alguma, por mais extravagante absurda que seja, que não tenha seus sectários. Foram os meios notáveis dessa singular opinião, Antonio Ribeiro dos Santos, poeta de reconhecido mérito, e Frei Francisco de S. Luís, filólogo acreditado por seus escritos sobre a língua.
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Uma tal opinião, porém, não tem fundamento algum plausível e nem sequer vale a pena de ser refutada, porque, para um só termo de origem céltica duvidosa, o Português apresenta mais de um cento de termos de origem latina incontestável. Opõe-se ela, de mais a mais, ao consenso unânime dos doutos, tanto na Europa como na América, os quais todos, a uma voz, concordam em dar ao Português e idiomas seus análogos uma filiação latina irrecusável, deduzida do estudo comparado das línguas. E, com efeito dizer contra a evidência, que se está metendo pelos olhos, que o Português vem do Céltico, só porque contém alguns termos dessa antiga língua falada na península, é o mesmo que supor que o Espanhol vem do Arábico, porque contém muitos termos árabes, posto que em quantidade diminutíssima, comparativamente a termos latinos, que constituem o principal elemento de sua formação.
 
A errônea opinião dos dois filólogos acima citados foi, no entanto, plena e cabalmente refutada por
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dois modernos literatos portugueses de celebridade europeia, o visconde João Batista Leitão de Almeida Garrett¹⁷, poeta e prosador de primeira ordem não há muito falecido, e o Sr. Alexandre Herculano, o maior historiador de Portugal na presente época, dos quais o primeiro o fez no seu Bosquejo da Historia da Poesia e Língua Portuguesa e o segundo na sua Introdução à Historia de Portugal.
 
Devo ainda citar, com muito louvor, dois modernos filólogos e literatos portugueses de subido mérito, que refutaram plena e cabalmente a mesma errônea opinião, o Sr. Leoni e o Sr. José Silvestre Ribeiro; o primeiro, em um minucioso trabalho comparado que nada deixa a desejar sobre a derivação latina da língua portuguesa; o segundo, nos seus Primeiros Traços de uma Resenha da Literatura Portuguesa.