Uma Campanha Alegre/II/XVIII: diferenças entre revisões

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[[Categoria:Uma Campanha Alegre|Volume II, Capítulo 1718]]
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XVIII
XVII
 
Fevereiro 1872.
 
Ora o concerto não era uma recepção oficial dos corpos do Estado — mas uma festa!
Não nos parece justificável o despeito da Universidade.
 
Uma festa com luzes, aromas, orquestras, mulheres decotadas, flores e danças.
É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei — sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminhos e a rabona — há gradações. Um rei por não ir ao passeio com o seu ceptro de oiro — não se segue que vá com as suas chinelas de ourelo: e por não receber as autoridades revestido do seu uniforme — não é honesto que as receba vestido apenas com a sua pele. Mas também não nos parece que uma quinzena e um chapéu desabado seja ''toilette'' que escandalize a douta Universidade!
 
Perguntamos se os srs. eclesiásticos, com os seus votos, podem participar destes gozos mundanos.
É necessário que os srs. doutores saibam que a ''toilette'' só é realmente exigida — quando a ''toilette é'' um fim. Num baile, numa ''soirée,'' numa gala, na Ópera — a gravata branca, a luva cor de pérola, a gardénia ou a grã-cruz são essenciais, porque estas festas constituem unicamente uma reunião de elementos elegantes, entre decorações elegantes, para um fim elegante. Tudo aí deve convergir para a harmonia geral — desde as ''toilettes a''té às flores. Trata-se de um fino prazer dos sentidos — e a ''toilette,'' com o seu brilho exterior, é requerida para o tornar completo e perfeito.
 
Ou conhecemos muito pouco a essência do catolicismo — ou não nos parece que os srs. eclesiásticos possam estar legitimamente e segundo a lei da. Igreja, num lugar onde um homem toma nos braços uma mulher, e a arrebata através da sala, roçando-lhe as pontas dos bigodes no calor do colo nu.
Mas quando se trata apenas de doutorar o Sr. Fulano, bacharel — não nos parece que tenham cabimento as exigências de elegância. Se a veneranda cerimónia do capelo é uma festa que reclama os requintes de ''toilette'' — onde estão as rosas, os gelados, as jóias nos colos nus, o rumor dos ''flirts,'' as caudas de seda ondeando na valsa? Se o capelo é um sarau galante, porque é que o Sr. Dr. Brito, de direito, nos priva do maravilhoso contorno do seu seio, trazendo batina — afogada?
 
Da tradição dos Padres e dos Santos não consta que as piedosas e místicas figuras, desses
Porque não vemos os srs. lentes jubilados moverem os leques com a mão calçada em luva de 16 botões? E porque é que o Sr. Forjaz não dirige os arrebatamentos do c''otillo''n? Ah, quereis ''toilett''e? Valsai! — Quereis gravatas brancas? — Oferecei gelados! —
 
Homens do Espírito, fossem vistas jamais por entre o rumor lânguido dos violoncelos e o palpitar amoroso dos leques... De S. Bernardo sabemos que vivia em
Quereis luvas cor de palha? — Amai, venerandos doutores!
 
Clairvaux para fugir à riqueza de Cister, e aí, sob um alpendre de folhagem, comendo pão duro e bebendo no fio dos regatos, preparava-se para Deus: se se correspondia com o rei de Inglaterra e com o imperador da Alemanha, era em dez linhas apressadas: mas era em dez páginas que escrevia a pobres monges aflitos de alma, para os encher da
Mas para aturar uma enfiada de carões sorumbáticos e de batinas caturras, imóveis num estrado; para ouvir uma charanga torpe dilacerando a grandes golpes de figle um minuete da Srª D. Maria I; para admirar quatro archeiros sebáceos perfilados entre ramos de louro murcho — quereis vós que a gente ponha gravata branca e um jasmim do
 
Graça. De S. Domingos sabemos que, descalço e esfarrapado, na santa ferocidade da sua fé, pregava e impelia uma cruzada contra os hereges do Languedoc: que vendia os seus livros para comprar lenha aos mendigos: e que um dia, para socorrer uma mulher pobre, como já não tinha dinheiro — se quis vender a si como escravo. Do poético S.
Cabo na lapela? Pois não vemos aí os senhores de Teologia, antigos egressos espapados de gordura, com as suas velhas lobas enodoadas? Não vemos os senhores de Direito, antigos comentadores do Pegas, com os seus sapatos achinelados? — Quando foi que a
 
Francisco de Assis sabemos que renegou as suas riquezas, viveu muito tempo num buraco, e partiu a peregrinar as terras, beijando as árvores dos caminhos, falando aos pássaros que lhe voavam em roda — e espalhando sobre todos os seres, flores, rochas, feras, o amor divino que o enchia! Está assim a lenda dos santos cheia de renunciamentos místicos e de uma intratável hostilidade aos regalos. E de nenhum se conta — que fosse espairecer do serviço de Deus para um bufete resplandecente de baixelas, entre champanhe e perdizes trufadas.
Universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da ''toilett''e? Ela que ainda há pouco levava ao cárcere os estudantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de
 
A teologia nos ensina, que nunca o sacerdote deve arredar um só momento o seu espírito da contemplação de Deus e da meditação da Graça. Ora não é natural que SS.
A Universidade e os seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e de cerimónia. Dizem que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada — com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez. E a Universidade quis ver no jaquetão de Sua Majestade e no seu chapéu braguês, a mesma significação desatenciosa que o
 
S.as estivessem possuídos destas preocupações espirituais, no galante sarau de el-Rei.
Parlamento de Paris viu, em outras eras, nas altas botas moles e no chicote de estalo do defunto Luís XIV. banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo — sujá-las!
 
Que tínheis em torno de vós, srs. eclesiásticos? Os moles sofás que inclinam às preguiças românticas; os aromas perturbadores de pó de arroz e de ''femina;'' as caudas de seda ondulantes e lânguidas; os cabelos Lustrosos, constelados de jóias; os pescoços brancos de um polido de mármore... Entre estas seduções sataníferas que pensavam VV.
E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo, ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta — de jaquetão e chapéu braguês! E onde então? Na sala dos capelos — que
 
S.as , srs. eclesiásticos?
é a Igreja onde se professa para doutor, onde se troca a graça mundana pela sensaboria catedrática, onde o sujeito deixa de ser um homem para ser um lente, onde faz o voto de melancolia e de carranca perpétua, e onde se substitui a alma por um compêndio.
 
Mais longe, no bufete, estava a trufa e o champanhe... Um sarau dá sede. Como a saciastes, srs. sacerdotes?
E é neste lugar funerário que os srs. Doutores emergem da sonolência sepulcral para murmurarem (talvez em latim!) — ''olha aquele de jaquetão!''
 
A nós outros, homens pecadores e perdidos, não causa já grandes estremecimentos a presença da beleza mortal: estamos acostumados, pela educação, às glórias do decote. Também nos não perturba o demónio cor de opala que faísca no champanhe. Conhecemos Satanás em todas as edições. Para nós um colo decotado não é
A Universidade dando-se ares de saber que existe o alfaiate Poole! Irrisória vaidade conimbricense!
 
Deu-se um facto equivoco no sarau do Paço, oferecido ao Imperador : — e foi que, segundo as mais verídicas informações, numerosos srs. eclesiásticos assistiram ao concerto do Paço. a misteriosa fatalidade do mal — é o pescoço da srª fulana, casada com o conselheiro sicrano: e o champanhe, sobretudo o do Paço, é uma triaga feita com aguapé de Bucelas.
É célebre! Vimos sempre a Universidade, quando se tratava de pôr gravata branca
 
Mas para VV. S.as , educados no isolamento e no regime do seminário, amarrados pelos votos tirânicos, emergidos da frieza da sacristia, fatigados do breviário... Ah, para VV.
— desculpar-se com as suas preocupações científicas. E, agora que se tratava de uma consagração doutoral, a Universidade revolta-se porque um dos assistentes não está de gravata branca!
 
S.as !
Pois quê! Recebe a Universidade um sábio, e em lugar de se perder com ele nos retiros difíceis das mais sérias questões do saber — recua, e exclama com uma exigência mundana de ''cocotte para trás! que horror! vós não estais de casaca!'' E não compreendo o que havia de intencional, de amável, na ''toilette'' de Pedro! Ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum sr. doutor — pelo asseio da sua roupa branca! Vestiu-se com o rigor científico. Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água-de-colónia (sabe-se isto! ) ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária — que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar — não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!
 
E, srs. eclesiásticos, os tempos vão de molde que o povo já se afasta dos simples virtuosos — reclama santos! Ora os santos não se supõem entre o frufru dos cetins e o suspirar das rabecas. Ninguém crê que uma rosa saia intacta de um forno, e um sr. eclesiástico puro de um baile. E um povo que não crê na pureza dos seus padres — termina por se esquecer dos martírios do seu Deus!
 
A verdade — aqui entre nós — é que VV. S.as podem, ao subir para as festas, dar ao criado os seus paletós a guardar; mas não lhe podem dar a guardar — os seus votos. Ora votos, por mais fortes que sejam, se os passearem entre ombros nus, se os fizerem encostar ao bufete sobre os aromas do ''Madeira,'' se os deixarem cismar aos compassos de Strauss, terminam sempre por lhes acontecer o que acontece às casas comerciais que abusam das festas — quebrar!
 
Se, porém, sucedeu que VV. S.as foram ao concerto porque Sua Majestade
 
[[Categoria:Uma Campanha Alegre|Volume II, Capítulo ]]
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Imperial, assim como quis lá ver os folhetinistas, desejou ver lá os sacerdotes — então lamentemos todos o singular temperamento deste príncipe que vai para o vagar dos saraus passar revista às profissões! Apressado, curioso, espicaçado pelo tempo escasso, este Imperante pretendia ter nas salas do Paço o índice dos nossos costumes e Portugal em resumo? Sendo assim ainda bem que esse príncipe, assim como exigiu que na sala do concerto estivessem as profissões — não pretendeu que lá se achassem também os estabelecimentos! Ainda bem que, para poupar passadas, ele não reclamou que além dos folhetinistas e dos sacerdotes comparecessem também no sarau — as tipografias e as igrejas!
 
— Que embaraço para el-Rei nosso Senhor!