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A LUNETA MAGICA
Introduccão
 
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##I##
{{t2|I.}}
 
Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.
 
Nasci sob a influência de uma estrela malígna, nasci marcado com o selo do infortúnio.
 
Sou míope; pior do que isso, duplamente míope míope, física e moralmente.
 
Miopia física: — a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta.
 
E por isso ando na cidade e não vejo as casas.
 
Miopia moral: — sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar duas idéias minh
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as.
 
E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.
 
Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!... mas a convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito
 
Disse-me um negociante meu amigo que por essa luz da consciência represento eu a antítese de não poucos varões assinalados que não tem dez por cento de capital da inteligência que ostentam, e com que negociam na praça das coisas publicas.
 
— Mas esses varões não quebram, negociando assim?... perguntei-lhe.
 
— Qual! são as coisas públicas que andam ou se mostram quebradas.
 
— E eles?...
 
— Continuam sempre a negociar com o crédito dos tolos, e sempre se apresentam como boas firmas.
 
Na cândida inocência da minha miopia
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moral não pude entender se havia simplicidade ou malícia nas palavras do meu amigo.
 
##II##
{{t2|II.}}
 
Aos doze anos de idade achei-me no mundo órfão de pai e de mãe.
 
Eu estava acostumado a ver pelos olhos de minha mãe, a pensar pela inteligência de meu pai; fiquei, pois, nas trevas dos olhos e da razão.
 
Meus pais eram ricos, e deviam deixar-me, deixaram-me por certo, avultada fortuna; quanto, não sei: meu irmão mais velho que tomou conta dos meus bens, minha tia Domingas que tomou conta da minha pessoa, e minha prima Anica que se criou comigo e que é um talento raro, pois até aprendeu latim, hão de saber disso melhor do que eu.
 
Dizem eles que a minha fortuna vai a vapor, ignoro se para trás se para diante, porque os barcos e carros a vapor avançam e recuam à custa do gás impulsor; mas o meu amigo negociante declarou-me que por certas razões que não compreen
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do, nas quais, também não sei porque, entra a pessoa da prima Anica, devo confiar muito no zelo da tia Domingas.
 
E eu confio nela o mais possível; porque é uma senhora que anda sempre de rosário e em orações e que tendo alguma coisa de seu, apesar de tão religiosa, não deu nem dá um vintém de esmola ao pobre que lhe bate à porta, pretextando sempre que tem muita vontade de fazer esmolas evangélicas; porem que ainda não achou meio de esconder da mão esquerda o óbulo da caridade pago pela mão direita.
 
Estou tão profundamente convencido da pureza dos sentimentos religiosos da tia Domingas, que desde que ela tomou conta de mim, vivo em sustos de que algum dia a piedosa senhora mande amputar a mão esquerda para conseguir dar esmolas com a mão direita, conforme o preceito evangélico de que em sua santa severidade não quer prescindir.
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##III##
{{t2|III.}}
 
Aos dezoito anos de idade comecei a compreender todas as proporções da minha desgraça dupla: chorei, lastimei-me, pedi médicos para os meus olhos, e mestres para minha inteligência.
 
A força de muito rogar e bradar consegui que me dessem uns e outros.
 
Os mestres ganharam o seu dinheiro e eu quase que perdi todo o meu tempo com eles; porque bem pouco lucrei no empenho de combater a minha miopia moral.
 
O mais hábil dos meus professores declarou-me no fim de quatro anos que um mancebo tão rico de cabedais como eu era, podia bem reputar-se literato de avantajado merecimento, sabendo ler, escrever e as quatro espécies da aritmética.
 
Convencido sempre que só me diziam a verdade, e tendo conseguido saber, aos vinte e dois anos de idade, ler mal, escrever pior, e fazer com a maior dificuldade as qu
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atro espécies da aritmética, mandei embora o hábil professor, e fiquei literato.
 
Os médicos falaram-me em córnea transparente, em cristalino, em raios luminosos muito convergentes, em retina, e não sei em que mais, e acabaram por dizer-me que aos sessenta, ou setenta anos de idade, eu havia de ver muito melhor.
 
Dos médicos alopatas recebi esta consolação de melhor visão aos setenta anos, se estivesse vivo; dos homeopatas não sei se me deram o cristalino em glóbulos, ou os raios convergentes em tintura; mas o fato é que em resultado de dez conferências e de vinte tratamentos diversos não vi uma linha adiante do que via, e apenas posso gabar-me de não ter ficado cego com a luz de tanta ciência.
 
O meu desgosto foi aumentando com os anos.
 
Meu irmão, que é um santo homem, me dizia:
 
— Consola-te, mano; tudo tem compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas porque és míope não vês como são bonitos os
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bordados da farda de um ministro de estado, e portanto não te exasperas por não poder ostentá-los.
 
Convém saber que meu irmão saiu eleito deputado na última designação constitucional, e mandou fazer a sua libré parlamentar ainda antes de ser reconhecido representante legítimo do povo soberano que anda de paletó e de jaqueta.
 
Deste fato e da sua observação concluí eu em minha simplicidade que o mano Américo vive doido por ser ministro para fazer o bem da pátria.
 
E não é só ele; a prima Anica já sonhou três vezes com mudança de gabinete, e com correios e ordenanças à porta de nossa casa.
 
Inocente menina! é um anjo: os seus sonhos são piedosos como as vigílias da tia Domingas, sua mãe, e patrióticos, como os cálculos o mano deputado; ela diz com virginal franqueza que tem meia dúzia de parentes pobres a arranjar, quando o mano Américo for ministro.
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Meia dúzia só!... que abnegação e que desinteresse da prima Anica! Ela está se tornando tão profundamente religiosa como a tia Domingas. Já fez um ponto de fé deste suavíssimo princípio: "a caridade deve começar por casa".
 
##IV##
{{t2|IV.}}
 
O mano Américo tem sempre aberta para mim uma fonte perene de consolações; persegue-me, porém, a infelicidade de não saber apreciar bastante a sabedoria, que fala pelos lábios de meu irmão.
 
Já disse como ele me consolava da minha miopia física; pois bem: a sua bondade ia além; quando me ouvia tristes queixas da minha miopia moral, me apertava as mãos, e falava assim:
 
— Agradece a Deus esse infortúnio; estás livre de desgostos sem conta, de responsabilidades sem número, e de tormentos sem tréguas; tu não sabes pensar; mas eu penso por ti e por mim; tu mal dirigirias os t
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eus negócios; mas eu dirijo os teus e os meus negócios; tu sofres muito menos do que eu sofro; porque eu sofro por ti e por mim.
 
Que alma santa a de meu irmão!
 
E todavia quando isso ouço, lembra-me que o mano Américo foi o testamenteiro e inventariante nomeado por meus pais, e que até hoje está de posse das minhas heranças, que ele emprega e zela, certamente só em meu proveito, mas sem me dizer como, nem jamais dando-me contas; e portanto pensando, negociando e sofrendo por mim o meu pobre irmão!
 
Dói-me tamanho sacrifício! ah! se eu conseguisse tomar para mim metade dos trabalhos e sofrimentos do mano Américo... a minha metade só... para ele não sofrer por mim!
 
Porém se por acaso manifesto de leve esse desejo, alvoroça-se o amor fraternal, meu irmão se enternece, me abraça e diz:
 
— Inocente Simplício! não serei tão egoísta que te abandone às ciladas dos homens sem consciência, que devorariam a tua
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fortuna. A minha dedicação é na verdade pesada; mas é um dever e Deus a abençoa.
 
Vejo-me, pois, obrigado a ficar devendo ao mano Américo o favor de tomar conta da minha fortuna, e de empregá-la por mim.
 
E como é ingrata a humanidade! já cheguei a suspeitar que a dedicação do mano é mais suave do que ele diz.
 
A primeira vez que me confessar hei de perguntar ao padre, se Deus abençoa tais dedicações fraternais; é este um ponto que deve ser esclarecido para que seja mais doce a submissão dos irmãos míopes.
 
##V##
{{t2|V.}}
 
Minha tia também me faz ouvir consolações, e sempre conforme as suas idéias religiosas.
 
Para ela a minha miopia física é um imenso beneficio da providência, que assim menos exposto me deixou às tentações do diabo, que ataca o pecador pelos olhos; e a minha miopia moral ainda mais precioso dom, porque dos pobres de espírito é o reino do céu.
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A lógica piedosa da tia Domingas seria capaz de levá-la a rezar para que eu me tornasse surdo, mudo e paralítico a fim de ser completa a minha bem-aventurança na terra.
 
Em conseqüência deste receio nunca disse amém às consolações místicas de minha tia.
 
Ainda tenho uma terceira fonte de consolações; essa, porem, ao menos é mais poética.
 
A prima Anica é perdida pelos apólogos; quando pode explicar-se por meio deles, não se explica de outro modo: o apólogo é o seu capricho de moça.
 
Além disso ninguém como ela se empenha tanto e mais habilmente em agradar-me; sabendo que quase não vivo pelos olhos, procura recomendar-se, açucarando a voz, e usando de perfumes suavíssimos.
 
As vezes e quando tem ocasião faz-me também ouvir apólogos.
 
Um dia em que como de costume lastimava a minha desdita, que então nem me deixava distinguir as flores do jardim, onde ambos passeávamos, colheu ela duas flores,
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uma rosa d'Alexandria, e uma angélica, e deu-mas para que eu as reconhecesse.
 
Aproximei muito dos olhos as duas flores para apreciar suas cores e um espinho da rosa feriu-me a ponta do nariz, e aí ficou preso.
 
— Repara no que te ensina a rosa, disse Anica; repara e compreende quanto te pode aproveitar a miopia: as flores que mais almejas distinguir e admirar não são as do nosso jardim, são as que enfeitam e enchem de magia os salões das sociedades, que não freqüentas, são as jovens formosas com que sonhas em sonhos doidos de amor ainda mais doido; essas, porém, assemelham-se à rosa d'Alexandria, tem espinhos que te despedaçariam o coração.
 
Anica interrompeu-se por breves instantes para suspirar; eu ouvi o suspiro, e ia perguntar-lhe, na minha simplicidade, se estava incomodada, quando ela continuou, dizendo:
 
— Contenta-te, pois, com a angélica que é suave ao tacto e que te pode embalsamar a
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vida do retiro com o perfume do amor e da virtude.
 
Fiquei mudo: tinha compreendido o apólogo apesar da minha miopia moral.
 
Anica faz talvez um esforço para vencer o pudor e perguntou-me:
 
— Sabes quem é a angélica?...
 
Instintivamente me fingi mais pobre de espírito do que sou, e respondi perguntando:
 
— A angélica? pois não é aquela flor que me deste?...
 
Deixamos o jardim: eu saia dele com um espinho de roseira na ponta do nariz, e Anica provavelmente com o espinho da minha indiferença no seio.
 
Senti que chegara a ser cruel; mas eu nem sabia se Anica era bonita ou feia; porque nunca pudera ver-lhe distintamente o rosto: se fosse bonita não seria o seu amor a mais doce consolação para mim?
 
Tive uma idéia inspirada metade pela gratidão, metade pela curiosidade maliciosa, a idéia de ver se Anica era bonita ou feia, se me seria possível amá-la. Chegando à sala,
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sentei-me e pedi à prima que me tirasse o espinho da ponta do nariz.
 
A inocente moça prestou-se a fazer a fácil operação: armou-se da tesoura mais delicada que achou, com os macios dedos da mão esquerda segurou-me o nariz, com a mão direita dirigiu a ponta da tesoura, e cuidadosamente ocupada em extrair-me o espinho, chegou seu rosto tão perto dos meus olhos que mais não era possível.
 
Durante três ou quatro minutos vi, distingui, apreciei suficientemente o rosto de Anica... não era o rosto com que eu sonhava, não era o das descrições das heroinas dos romances que me tinham lido... não era.
 
O rosto da prima Anica e muito respeitável; mas em consciência está muito longe de ser angélico.
 
A prova de que é muito respeitável está em que não tive necessidade de expelir de minha alma o menor desejo desrespeitoso, achando-se esse rosto por alguns minutos ainda mais perto dos meus lábios, do que dos meus olhos.
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A prova concludentíssima de que Anica não é angélica, está em que a operação me pareceu tão dolorosa como demorada.
 
Anica tivera a bondade de fazer-me ouvir a significação moral do seu apólogo da rosa d'Alexandria e da angélica. O apólogo não lhe aproveitou; mas a culpa disso não está em mim .
 
Ofereço agora, não a Anica, porque me pesaria molestá-la, porém às senhoras a quem o caso possa. interessar, a moralidade da história da extração do espinho da ponta do meu nariz.
 
É uma pequenina história que também pode correr, como apólogo.
 
A moralidade é esta:
 
Moça que não for bonita não se preste a extrair espinho da ponta do nariz de homem míope.
 
##VI##
{{t2|VI.}}
 
No princípio do ano corrente de 186... o excelente sistema de governo que
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nos rege, deu-me o sinal da minha regeneração civil e política.
 
Sem que o mano Américo, a tia Domingas e a prima Anica disso préviamente soubessem, fui incluído na lista dos jurados da minha freguesia; quando chegou-nos a notícia do fato consumado houve em nossa casa uma espécie de consternação.
 
Até que ponto chega o amor dos parentes, a influência do sangue da família! meu irmão, minha tia, e minha prima sobressaltaram-se ante o perigo que eu corria por me haverem reconhecido dotado de senso comum!
 
Era certamente porque o mano Américo via que não lhe era possível ser também jurado por si e por mim. Eu ia começar a ficar exposto às ciladas do mundo e dos homens sem consciência.
 
O juiz de direito que presidira a revisão da lista dos jurados, resolvera um problema até então intrincadíssimo, declarando que eu podia ser jurado, e que por conseqüência eu tinha senso comum, condição exigida pela lei.
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Eu fui alheio a tudo isso: estava mesmo convencido pelo mano Américo e pela tia Domingas que até o senso comum me faltava; confesso, porém, que mudei de opinião com íntima e mal disfarçada alegria.
 
Um juiz de direito não pode julgar de modo torto: ao menos tem a seu favor a presunção de direito, que em falta de todos os outros fundamentos é fundamento que supre todos os outros; para mim que não sei aprofundar as coisas, um juiz de direito é sempre tão infalível na ciência do direito, como um padre na ciência do latim.
 
Por conseqüência fiquei convencido de que tinha senso comum.
 
Ninguém faz idéia do profundo contentamento que me deu esta convicção.
 
E não era para menos.
 
O nosso código é necessariamente muito sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral, porque segundo tenho ouvido dizer, muitos dos que têm feito e dos
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que fazem leis, muitos dos que as deviam mandar e mandam executar, e muitos dos que têm por dever aplicar as leis, não poderiam ser jurados por falta do bom senso!
 
Dizem-me isso, e asseguram-me que o bom senso é senso raro.
 
Eu não entendo estas coisas; mas atendendo ao que me dizem, chego a crer que foi por essa razão que a lei não impôs a condição do bom senso nem para que o cidadão fosse jurado, nem para que fosse magistrado, deputado, senador, ministro, e conselheiro de estado.
 
Asseveram-me ainda que se assim não fosse, que, se se exigisse a condição do bom senso para o exercício daquelas altas delegações e cargos do Estado, haveria quatro quintas partes do mundo oficial inteiramente fora da lei.
 
Já confessei que não entendo destes graves assuntos; como, porém, acredito piamente em tudo quanto me dizem, sinto-me cheio de orgulho pela convicção legalmente autorizada de que tenho senso comum, e apoderado
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de irresistível vaidade com a presunção de que sou igual a muitos magistrados, deputados, senadores, ministros e conselheiros de estado, pela falta de bom senso ou senso raro.
 
##VII##
{{t2|VII.}}
 
Na primeira convocação do júri o meu nome foi o primeiro que saiu da urna. Este sucesso deu que pensar e que falar em casa.
 
A tia Domingas levou um dia inteiro a repetir: "o primeiro na primeira. . . "; passou assim o dia sem rezar, nem sei se rezou de noite; mas na manhã seguinte propôs-me comprar de sociedade comigo um bilhete de loteria.
 
Eu não cabia em mim de contente; o mano Américo hesitava, porém enfim conveio em que eu entrasse no exercício do meu direito de cidadão jurado.
 
Creio que meu irmão procedeu assim pelo respeito que consagra às leis, como me assegurou, embora a prima Anica me diss
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esse em particular que o segredo da sua condescendência esteve no receio de pagar multas... por mim.
 
As senhoras são de ordinário muito maliciosas; acham graça em sê-lo: Anica tem esse defeito; mas, diga ela o que quiser, eu penso que o mano Américo é simples e puro, como Adão antes de comer do fruto proibido.
 
Compareci oportunamente ao tribunal de que a sorte me fizera membro: a sorte estava declarada por mim: logo no primeiro processo o meu nome foi ainda o primeiro que saiu da urna, e não pareci suspeito nem ao advogado do réu, nem ao da justiça pública.
 
Prestei a maior atenção à leitura do processo, às testemunhas e aos debates, e quando entrei para a sala secreta achava-me plenamente convencido pelo promotor de que o réu merecia a forca; pelo advogado do réu de que este era credor de uma coroa cívica, e pelo juiz de direito que resumira a acusação e a defesa, de que o réu tinha jus à forca e à coroa.
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Na consulta secreta sentei-me junto de um bom velho que, vendo-me completamente às escuras em uma questão de atenuantes e agravantes, quis iluminar o meu espírito, fazendo-me ler uns artigos do seu Manual dos Jurados.
 
Não tive remédio, senão confessar-lhe as enormes proporções da minha miopia física Ler era para mim um martírio: pedi-lhe que me lesse os artigos do seu Manual.
 
— Pobre moço, disse-me ele; já procurou o Reis?...
 
— O Reis? quem e o Reis?
 
— Quem é o Reis?... pois um míope ignora quem seja o Reis?... c Reis é o homem-luz, o homem-fonte de visão para os míopes se ele não o fizer ver, é porque o senhor é cego.
 
— Mas eu sou quase cego.
 
— O Reis anula-lhe o quase, e dá-lhe o dom da vista perfeita; o Reis é o graduador de vidros miraculosos. O senhor tem sido deixado em abandono por sua família
 
— Pelo que me diz, começo a ter desconfianças disso.
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/30]]==
 
— Escute: eu vou contar-lhe maravilhas em relação ao Reis — Mas o processo? — Que nos importa semelhante massada?... deixá-los falar, e discutir; nós já sabemos
 
como havemos de votar.
 
— O senhor como vota?
 
— Votarei de modo que o réu seja necessariamente absolvido.
 
— Então tem certeza de que ele é inocente?
 
— Deve sê-lo sem a menor dúvida.
 
— Por quê?...
 
— Porque não menos de dois compadres e de três amigos meus se empenharam para
 
que eu o absolvesse.
 
— E tem razão: não posso acreditar que dois compadres e três amigos de um juiz fizessem a este a injúria de pedir-lhe uma sentença injusta, julgando-o capaz de um prejuízo e
 
de um sacrifício de consciência.
 
— Deveras?...
 
— O que me parecia, era que semelhantes pedidos e empenhos deviam ser exclusivamente reservados para servirem de luz aos jurados
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/31]]==
pobres de espírito como eu; porque os inteligentes, como o senhor, não precisam de quem lhes dirija as consciências.
 
O velho pôs-se a rir, não sei de que; provávelmente eu tinha dito alguma necedade, e começava a sentir-me tomado de vexame e de confusão, quando o presidente chamou-nos a votar em resposta aos quesitos do juiz de direito.
 
O bom velho, meu novo amigo, exerceu naquele conselho de jurados os direitos do mano Américo; porque votou por si e por mim.
 
O réu foi absolvido pela maioria de dois votos, e por conseqüência o empenho de dois compadres e de três amigos e a minha miopia moral decidiram da sentença.
 
Saí do júri com a convicção de que ou não tenho senso comum, ou é preciso mais alguma coisa além do senso comum para que o cidadão seja bom jurado.
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/32]]==
 
##VIII##
{{t2|VIII.}}
 
Quando cheguei à porta da rua, senti que alguém me tomava o braço: era o bom velho.
 
— Quero levá-lo já à casa do Reis, disse-me ele.
 
Apertei-lhe a mão com o. mais vivo reconhecimento e deixei-me conduzir, hesitando entre a esperança e a dúvida.
 
Enquanto caminhávamos, o meu condutor falava e eu o ouvia curioso:
 
— O estabelecimento do Reis é um representante do espírito do século: começou plebeu e já está nobre pela constância no trabalho e pelo encanto do progresso; não sei se o Reis tem sido agraciado; pouco importa o homem; mas a casa, a indústria já tem quatro condecorações nobiliárias.
 
— E o que faz o Reis?
 
— Dá, reproduz os meios conhecidos, aperfeiçoa-os e inventa novos para se fazer a paz e a guerra, a guerra, dando precisão, segurança às pontarias das peças de artilharia, a paz, oferecendo balanças e níveis de
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/33]]==
todas as qualidades, alguns dos quais devem poder marcar o peso e o nível dos interesses de quaisquer beligerantes, e além desses os mais perfeitos instrumentos para demarcação dos limites dos Estados; governa nos mares com as melhores bússolas; é senhor do sol e da lua, e de todos os planetas pelos mais fortes telescópios; conhece e domina os animais invisíveis pela força engrandecedora dos microscópios, vê o fundo tenebroso das minas, tem o cetro da física, o império da química a soberania da eletricidade pela magia dos seus instrumentos, marca o tempo, prediz o calor e a chuva, e chama-se Reis porque não é um rei; mas tem o poder de muitos reis.
 
Eu escutava boquiaberto a concisa explicação de tão extraordinária potestade humana, e quando o bom velho se interrompeu para respirar, perguntei-lhe:
 
— E um homem, como este, certamente já tem sido muito aproveitado pelo nosso governo?!...
 
— Não; o nosso governo encomendou-
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/34]]==
lhe um dia o mais perfeito pince-nez político:
 
o Reis fez obra de mestre, um pince-nez, que por um dos vidros deixava ler as lições do passado e pelo outro os perigos do futuro; mas o pince-nez não achou nariz de ministro, em que se ajeitasse, e foi desprezado. — Mas então o Reis que é? é mágico?...
 
— Não sei; suponha que seja o diabo; o certo é que ele tem, e isso é o que mais lhe importa, o segredo de dar vista de águia aos míopes mais infelizes, aos míopes quase cegos.
 
— Por que meio, meu amigo?
 
— Por meio de vidros, e de cristais, cuja concavidade encerra sobrenatural magia; por meio de lunetas de força excepcional.
 
— E o governo esquece homem semelhante?... há ministro que não se apresse a comprar uma luneta dessas?...
 
O velho desatou a rir: perguntei-lhe qual era o motivo da sua hilaridade, e ele me respondeu assim:
 
— O senhor é sem o pensar, sem o querer, cruelmente epigramático: falei-lhe em luneta
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para os míopes e o senhor procurou logo saber, se os nossos ministros de estado não usavam dessas lunetas!!!
 
A simplicidade de um pobre de espírito está sempre exposta às falsas interpretações dos maliciosos.
 
Eu não era capaz de pôr em dúvida a vidência, a ciência e a sapiência de um homem que chega a ser ministro de estado.
 
O fato é a presunção do direito, e para mim a infalível resolução do problema.
 
Não pode haver cidadão que seja chamado a tomar, e que tome sobre seus ombros a imensa responsabilidade do governo do Estado sem que seja reconhecido e se reconheça na altura de tão grandiosa missão.
 
Em minha inocência não posso pensar de outro modo.
 
Para mim quem e ministro de estado é sábio, ou pelo menos estadista.
 
É por isso que até hoje, quando me diziam, que no carro que passava, ia um ministro de estado, eu tirava o meu chapéu e me conservava descoberto em sinal de
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respeito até que me asseguravam que o próprio ordenança do ministro já estava longe.
 
Porque no próprio ordenança eu ainda admiro e venero os reflexos da sabedoria do ministro.
 
-IX
 
- Chegamos, disse-me o velho. Um tremor nervoso agitou-me o corpo todo; mas ajudado pelo meu amigo subi dois degraus de pedra e achei-me no armazém do Reis.
 
Não pude distinguir nem a casa, nem o dono dela; não precisei porém de olhos para sentir imediatamente a amabilidade do Reis.
 
O bom velho expôs as proporções da minha miopia física e pediu remédio para ela; ouvi logo abrir gavetas, e em breve começou o ensaio das mais fortes lunetas de vidro côncavo.
 
Reis desprezou os vidros dos números mais altos das vinte e duas forças: principiou
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por fazer-me experimentar um do grau quatro e perdeu completamente o seu tempo: deixou de lado os vidros côncavos do grau três e deu-me uma luneta da forca número dois, e ainda assim não pude ler o titulo de um livro que me apresentou, senão depois que cheguei o livro a duas polegadas de distancia dos olhos.
 
— É muito míope disse ele.
 
E desceu enfim ou antes subiu ao vidro do grau número um, o último, o non plus ultra dos vidros côncavos, e recuou espantado, ouvindo-me dizer que não via mais nem menos.
 
— É incrível! exclamou.
 
— É portanto?... perguntei tão abatido que nem pude acabar a frase.
 
— Não tenho recurso que lhe aproveite, respondeu-me com tristeza profunda.
 
Deixei cair a cabeça sobre o peito: a extrema esperança que eu concebera poucas horas antes, acabava de apagar-se completamente; tive vontade de chorar e murmurei em tom queixoso:
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/38]]==
 
— E todavia eu vinha tão cheio de confiança! esperava tanto!
 
— Que quer?... o poder humano que é o poder da ciência, ainda não foi além dos instrumentos que inutilmente experimentou.
 
— Ah! é que o meu amigo chegou a fazer-me acreditar que o senhor era mais do que um simples homem, era uma espécie de ente sobrenatural, um mago, um realizador de impossíveis principalmente em matéria de instrumentos óticos.
 
— O seu amigo que é também meu, exagerou muito as minhas pobres condições; eu não creio na magia; mas se lhe apraz consultar um pretendido mágico, é coisa fácil.
 
— Como?...
 
— Mandei contratar na Europa um artista de merecimento superior para os trabalhos das minhas oficinas, e chegou-me no ultimo paquete um armênio de habilidade extraordinária; mas que me desagrada por ter pretensões a muito sabido em magia.
==[[Página:A Luneta Magica, Tomo I (1869).pdf/39]]==
 
— Ainda uma esperança! exclamei; eu me abraço com a mais tênue, com a mais dúbia, e até mesmo com a mais louca. Onde está o armênio?...
 
— Em um pequeno gabinete no fundo da casa, e ai dorme de dia e trabalha de noite e sempre só: é um maníaco.
 
— Poderia eu falar-lhe?
 
— Vou mandá-lo chamar.
 
— Entender-me-á ele?...
 
— Fala perfeitamente todas as línguas em que lhe falam.
 
##X##
{{t2|X.}}
 
Entramos para a casa das oficinas; porque o armênio não gostava de mostrar-se no armazém.
 
Vou dizer com inteira verdade o que ouvi e o que o bom velho meu amigo viu e me referiu miudamente tanto nesta ocasião, como à hora da meia-noite no gabinete misterios
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o,
 
Passados apenas alguns minutos o armênio apareceu.
 
Era um homem alto, magro e com os ossos muito salientes: trazia os cabelos crescidos, o rosto contraído, a face macilenta enegrecida pela fumaça; suas mãos enormes estavam empoeiradas, e seus dedos coroados por grandes unhas pareciam garras; vestia calças
 
e blusa de pano vermelho.
 
— Que pretendem de mim? perguntou ele em português.
 
Não me animei a falar; o bom velho, meu amigo, também não ousou fazê-lo: foi o
 
Reis quem falou por mim, expondo a minha infelicidade, e a desesperada esperança que eu concebera.
 
O armênio se aproximou de mim, considerou-me durante alguns instantes, examinou-me os olhos, apalpou-me os ossos do crânio, e mostrando-se compadecido, disse:
 
— Não te quero mal, e o dia é mau; hoje é sábado, e os gênios sinistros predominam: escolhe outro dia, e eu te darei a vista.
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O Reis fez um movimento denunciador da sua incredulidade.
 
O armênio encarou-o fixamente, e depois perguntou-lhe:
 
— Duvida sempre?
 
— Não duvido, tenho a certeza de que a sua magia não é impostura somente porque é lamentável mania.
 
O armênio desatou a rir; devia ser um rir medonho, porque foi longa e estridente gargalhada, e porque, segundo me disse o velho, ele não tinha um único dente.
 
— De que ri assim?... inquiriu o Reis.
 
— Do triunfo e do mal: duvidam do meu poder, e vou prová-lo: eis o triunfo; infiltrarei o ceticismo na alma de um inocente mancebo; eis o mal.
 
Tive um ímpeto de coragem, avancei um passo e perguntei-lhe:
 
— Dar-me-ás a vista?...
 
— Sim, e mais penetrante do que a desejas.
 
— Como?
 
— A experiência te responderá.
 
— E tu por que não?...
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— Que te importa?... já o disse: terás vista mais penetrante do que desejas e pensas; queres?
 
— Por que modo a terei?
 
— Dando-te eu uma luneta mágica.
 
— Quando?
 
— Hoje mesmo e amanhã, na hora em que acabará o dia de hoje para começar o dia de amanhã, à meia-noite;
 
— E o teu prêmio?
 
— Será a tua próxima convicção de que é melhor ser cego, do que ver demais.
 
— Aceito.
 
— É o mal.
 
— Aceito.
 
— É o gelo no coração!
 
— Aceito.
 
— E o ceticismo na vida!
 
— Aceito.
 
— Por que, criança?...
 
— Porque eu quero ver.
 
— Verás demais!
 
— Aceito.
 
— Volta à meia-noite.
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##XI##
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Quando, de volta da casa do Reis, me achei a sós na solidão do meu quarto, comecei a sentir espinhos na consciência, temores de incorrer em grande pecado por ir procurar na magia remédio contra a minha miopia física.
 
Mas na luta do desejo ardente de ver bem e distintamente, e dos meus escrúpulos religiosos que acabavam de despertar, eu me reconheci tão fraco e tão pecador como Eva, porque pela ambição da vista deixava-me sempre escravo das promessas do armênio, como Eva se deixou escrava dos conselhos infernais da serpente pela ambição da ciência do bem e do mal.
 
Hesitei: meditei, e desconfiado da minha miopia moral, resolvi-me a consultar a opinião das três consciências mais sãs que eu conhecia no mundo.
 
A consciência do mano Américo, o ho
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mem que vivia por si e por mim, o tipo do desinteresse e da abnegação.
 
A consciência da prima Anica, a jovem símbolo do amor mais dedicado, e sem sombras do egoísmo.
 
A consciência da tia Domingas, a velha religiosa e santa, que vivia a rezar, e que era toda misticismo.
 
Dirigi-me ao mano Américo e perguntei-lhe:
 
— Se encontrasses um mágico que te oferecesse um talismã com a virtude de te assegurar a vitória em todas as eleições de deputados, e de te fazer subir ao ministério, que farias?
 
Meu irmão respondeu-me logo:
 
— Para servir a minha pátria, e dedicar-me todo a ela, eu aceitaria o talismã, e o traria sempre comigo.
 
Achei-me a sós com Anica, e apressei-me a consultá-la:
 
— Se houvesse um feiticeiro, que por artes diabólicas possuísse e te quisesse dar o segredo da formosura e da vida em constante
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primavera até cem anos de idade, que farias?
 
— Abraçava o feiticeiro, tomava-lhe o segredo e pedia-lhe que te desse, mesmo por artes diabólicas, melhores olhos para que visses a minha formosura encantada.
 
Fui ter com a tia Domingas e fiz-lhe a seguinte pergunta:
 
— Se lhe aparecesse um homem suspeito de se ter vendido ao demônio, e lhe apresentasse o bilhete de loteria em que uma hora antes houvesse saído a sorte grande, que faria?
 
— Somente pelo gosto de enganar o demônio, comprava o bilhete, e recebendo o prêmio, gastava metade em obras de misericórdia.
 
Estas respostas sossegaram o meu espírito: meu irmão, que é a virtude cívica, a prima Anica que é a pureza original, a tia Domingas que é a piedade zelosa, não acham que seja pecado aproveitar-se alguém, com intenções inocentes, dos favores da magia, da feitiçaria, e até do inimigo do homem.
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A educação, os exemplos, as lições da família formam o caráter do menino e preparam o seu futuro.
 
Eu já estou na lista dos jurados, e já fiz parte de um conselho julgador; mas ainda sou menino pela minha miopia moral: consultei toda a família sobre o meu caso de consciência e todos os meus parentes votaram pela transação com a magia em proveito do interesse pessoal.
 
Serenaram pois os meus escrúpulos, e fiquei resolvido definitivamente a ir ao gabinete do armênio à meia-noite em ponto.
 
O bom velho, meu amigo, ficara de esperar-me perto da nossa casa para levar-me à do Reis.
 
Não me despi, nem me deitei e quando ouvi o sinal de onze e meia horas dado pelo sino de S. Francisco de Paula, sai do meu quarto, fui de manso até a porta da rua que um escravo fiel me abriu, e logo depois tomei o braço do bom velho que me esperava e seguimos para o nosso destino.
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##XII##
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Encontramos o Reis à porta do seu armazém. Entramos. Faltavam dez minutos para a meia-noite. — Vamos ter com o armênio, disse o Reis. E passou adiante para dirigir-nos. Nunca maldisse tanto da minha miopia física; porque achava-me possuído da mais
 
viva curiosidade, desejava e não me era dado ver o que se ia passar, e apenas posso hoje relatar o que o bom velho meu amigo, e o Reis também desde esse dia muito meu amigo, me contaram muitas vezes com todos os pormenores.
 
Avançamos por um longo corredor; o velho levava-me pela mão e a mão do velho estava enregelada e trêmula.
 
O Reis repetiu duas vezes:
 
— Isto não passa de uma comédia, que nos fará rir amanhã: a verdadeira m
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agia está nas maravilhosas realidades das ciências físicas
 
Mas a voz do Reis estava um pouco alterada e como se o seu coração palpitasse forte, e apressadamente por nervosa agitação.
 
Chegamos ao fim do corredor, e o Reis levantava a mão para bater a uma porta que nos ficava ao lado esquerdo, quando esta imediatamente se abriu.
 
Os meus dois companheiros recuaram um passo; eu não recuei porque não vi coisa alguma.
 
— Como é bom não ver! disse uma voz cavernosa.
 
##XIII##
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O gabinete do armênio estava todo pintado de negro, tendo em branco os caracteres especiais de todos os dias da lua marcados pelas vinte duas chaves do Tarot e pelos sinais dos sete planetas; no meio do teto t
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ambém negro via-se a figura do pentagrama em vermelho vivíssimo.
 
No fundo do gabinete uma mesa servia de altar da magia; junto a ela uma pele de leão tapizava o chão, imenso pano vermelho cobria completamente a mesa, e nesse pano eram mais de cem as figuras cabalísticas pintadas em negro
 
Sobre o altar maldito descansavam os instrumentos da magia e entre outros a vara mágica, a espada, a taça e a lâmpada; a um lado, no chão, estava a trípode. Globos, triângulos, a figura do diabo, a estrela de seis raios, o abracadabra, as combinações do triângulo, e uma infinidade de símbolos enchiam a mesa e o gabinete.
 
O armênio mágico vestia a roupa própria do sábado, simples túnica cinzenta com caracteres bordados em seda cor de laranja, tendo ao pescoço uma medalha de chumbo com o sinal cabalístico da Saturno e as palavras ou nomes — Amalec, Aphiel, Zarabiel, e trazia na cabeça um barrete triangular de cor branca com o pentagrama em cor negra.
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— Entrai : disse o armênio, tudo está pronto. Entramos no gabinete, que estava cheio de luz; o armênio sentou-se na tripeça e nós ficamos de pé; ele se concentrava; nós tremíamos.
 
De súbito o armênio levantou-se, como cedendo a impulso irresistível, e quando ele se levantou os sinos deram o sinal de meia-notie.
 
— É a hora, disse ele, e tomando a espada, brandiu-a no ar, e as luzes se apagaram.
 
Ficamos em completa escuridão; mas sentimos e compreendemos que o armênio se movia e laborava, como se estivesse vendo tudo à luz do sol ao meio-dia.
 
No fim de alguns minutos a lâmpada mágica lançou e manteve uma tênue flama que começou pálida e fraca, pouco e pouco foi se tornando intensa e rubra, e da qual o armênio retirou a ponta da espada, que pareceu tê-la acendido.
 
Logo depois ele tomou a lâmpada entre suas mãos e deu alguns passos para os quatro
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lados do gabinete, parando breves instantes em cada um dos lados, e estendendo os braços de cada vez na direção de um dos quatro pontos cardeais, feito o que tornou a pôr a lâmpada no seu lugar, e sobre ela colocou uma peça de ferro composta de três hastes que se firmaram na mesa e que na sua parte superior se aproximavam e eram ligadas por um anel de três correntes de ouro retorcidas, em cima do qual ele depositou um simples vidro côncavo do grau mais fraco.
 
Em seguida ouvimo-lo exorcizar em latim os espíritos elementares, e falar e evocar as ondinas, as salamandras, os silfos e os gnomos; empregou assim meia hora pelo menos a entender-se com invisíveis e duvidosos ou quiméricos seres.
 
Apenas acabou de falar, lançou sobre o fogo pequenas porções de diagrídio, escamônea, pedra-ume, enxofre e assa-fétida.
 
Resistimos às ondas do ativo perfume que inundou o gabinete.
 
A flama da lâmpada tornara-se viva, brilhantíssima,
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derramando tanta luz como se mil bicos de gás iluminassem a pequena sala.
 
A operação mágica adiantava-se, o armênio começou a exaltar-se e bradou com força: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel!...
 
E a flama da lâmpada redobrou de intensidade, como se obedecesse à voz do mágico.
 
O gabinete parecia já arder em ondas de luz tão deslumbrante e vivíssima que se diria
 
o fulgor dos relâmpagos demorado, continuado, sem intermitência. De repente uma faisca se desprendeu da flama da lâmpada e foi, como pequena seta de fogo vivo, cravar-se e estremecer no fundo da concavidade do vidro que estava sobre o anel de ouro; uma tênue bolha de vidro fervente agitou-se em torno da faisca que sem apagar-se tomou a forma microscópica de uma salamandra, o gênio elementar do fogo que banhava-se no fogo, brincava no fogo, aspirava e respirava fogo.
 
Mas o armênio tocou com a ponta da espada na faisca que fazia ferver a bolha de vidro
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no fundo da concavidade, e disse com acento dominador:
 
— Fica aí!
 
A salamandra microscópica dobrou-se, como fugindo à ponta da espada, e o fogo da lâmpada de rubro que era se tornou pálido.
 
— Fica ai! tornou ele com voz mais forte ainda.
 
E a salamandra foi se mergulhando na bolha de vidro fervente, e a flama da lâmpada principiou a vacilar.
 
— Fica aí! bradou o armênio pela terceira vez.
 
E a salamandra desapareceu de todo na bolha do vidro que se abateu e sumiu-se sem deixar vestígios, nem depressão nem ruga na concavidade polida, e a espada que firme conservara a sua ponta, onde brilhara a faisca mágica, obedecendo à mão do armênio se retirou.
 
Imediatamente a flama da lâmpada se extinguiu, como ao sopro de um gênio invisível; reinou outra vez no gabinete profunda escuridão, e logo ao começarem as trevas, pareceu que
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um suspiro quase imperceptível movera o ar, mas tão de leve, tão sutilmente, como o vôo de uma borboleta.
 
Era talvez a queixa extrema da salamandra presa; porque ainda se ouviu a voz do armênio, que disse com império de senhor:
 
— Fica aí, escrava!
 
Pouco depois iluminou-se de novo o gabinete do armênio, que lançando algumas gotas de um liquido perfumado sobre o vidro que expusera à operação cabalística, retirou este completamente frio do anel de ouro, onde o havia colocado.
 
Sem dizer-nos uma só palavra, sem parecer ocupar-se da nossa presença, o armênio armou o vidro em um aro de ouro, e no ponto em que o aro circular se liga ao anel destinado ao cordão pendurador, imprimiu sinistro selo, uma letra cabalística, com um sinete de forma triangular, e enlaçou no anel da luneta um cordão finíssimo, em que se entrançavam cabelos de todas as cores, e de diversos animais.
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Estava terminada a mágica operação. O armênio me entregou a luneta, e disse-me então:
 
— Triunfo, e faço mal; mas posso prevenir o mal: criança! tu és inocente e bom, eu me compadeço de ti; escuta.
 
Recebi tremendo, a luneta, que ainda apenas sentia pelo tacto e não tinha visto pelos olhos, e escutei o armênio, que continuou a falar-me:
 
— Dou-te uma luneta mágica; verás por ela, quanto desejares ver, verás muito: mas poderás ver demais. Criança! dou-te um presente que te pode ser funesto: ouve-me bem! não fixes esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três minutos; três é o número simbólico, e para ti será o número simples, o da visão da superfície e das aparências; não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto, ou aborrecerás o mundo e a vida.
 
Eu estava todo trêmulo, e não sabia que dizer.
 
O armênio disse ainda:
 
— Esta luneta é a maravilha da magia:
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por ela verás demais no presente, e poderias ler no futuro; mas o teu coração é bom, e a tua alma é pura, criança; além do número de três minutos está a visão do mal, que o meu poder de mágico não te pode impedir; porque a visão do mal é a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta além do número de treze minutos é a vidência do futuro, e essa eu te impeço, Cashiel! Schaltiell Aphiel! Zarabiel! eu ta impeço, criança louca: essa luneta fixada além de treze minutos se quebrará em tuas mãos!
 
E tendo assim falado, empurrou-nos rudemente para fora do gabinete, e trancou-nos a porta.
 
Voltamos espantados e mudos pelo extenso corredor; o que se tinha passado era tão maravilhoso que nos estava impondo a eloqüência sublime do silêncio.
 
Chegados ao armazém os meus dois amigos, o bom velho e o Reis, convidaram-me a experimentar logo, ali mesmo, e à luz do gás a minha luneta mágica.
 
— Não, disse-lhes eu; esta luneta é a
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minha extraordinária esperança de luz : a luz da noite, se a dá a lua, é emprestada, se a dá a arte dos homens, é artificial; quero, devo esperar o dia, a luz da natureza, quero esperar a aurora, e o sol.
 
Um homem que espera pela luz, espera pela vida. Eu ainda duvidava do poder mágico do armênio; não quis apagar minha dúbia esperança na mesma hora, na mesma noite em que ela nascera.
 
Despedi-me do Reis e sai com o bom velho, que ainda se prestou a acompanhar-me. Quando entrei em minha casa, davam os sinos o sinal de três horas da madrugada. Pouco falta para romper a aurora e brilhar o sol. Em breve experimentarei se vejo, como e quanto vejo. Agora vou fazer por dormir, se puder dormir.