Artigo de Euclides da Cunha de 26 de setembro de 1897: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
mSem resumo de edição
m ajustes (AWB)
Linha 7:
Os jagunços encurralados na igreja nova e no santuário anexo, desde às 10 horas da noite de ontem, até o momento em que escrevo (10 1/4 da manhã) atiram desordenadamente numa fuzilaria continua, frouxa às vezes, recrudescendo repentinamente outras. Não apontam mais, atiram ao acaso, para todas as direções, desesperadamente. É um vulcão numa erupção de balas aquele templo maldito.
 
O espectáculo de Canudos, presa das chamas que lavram em diferentes pontos é extraordinário; a fumarada -— enuovelada e pardacenta -— alevanta-se e descorola-se e espalha-se por sobre os telhados, encobrindo a maior parte das casas e mal deixando perceber as bandeirolas vermelhas -— pontos determinantes da linha do cerco -— alevantados agora em torno do último baluarte dos rebeldes. E os tiros partem deste, constantes, multiplicados, inúmeros, num desperdiçar de munições capaz de exaurir o arsenal mais rico. São balas que sibilam em todos tons desde o resoar áspero e roufenho das Comblains á zoada lúgubre dos projéteis grosseiros dos bacamartes, ao assovio suave quase e delicadíssimo da Manulicher, vergastando os ares.
 
Os canhões cuidadosamente conteirados para não atingirem aos sitiantes próximos, atiram granadas e aberapnells certeiros no antro formidável; -— e a fuzilaria não cessa e cada bala que ali cabe parece estimular a insânia dos fanáticos.
 
Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável! Os prisioneiros feitos revelam-na de uma maneira expressiva.
Linha 15:
Ainda não consegui lobrigar a mais breve sombra de desânimo em seus rostos, onde se desenham privações do toda a sorte, a miséria mais funda; não tremem, não se acobardam e não negam as crenças mentidas pelo evangelisador fatal e sinistro que os arrastou a uma desgraça incalculável.
 
Mulheres aprisionadas na ocasião em que os maridos caíam mortos na refrega e a prole espavorida desaparecia na fuga, aqui têm chegado -— numa transição brusca do lar mais ou menos feliz para uma praça de guerra, perdendo tudo numa hora -— e não lhes diviso no olhar o mais leve espanto e em algumas mesmo o rosto bronzeado de linhas firmes é iluminado por um olhar de altivez estranha e quase ameaçadora. Uma delas acaba de ser conduzida à presença do general. Estatura pequena, rosto trigueiro, cabelos em desalinho, lábios finos e brancos, rugados aos cantos por um riso doloroso, olhos vesgos, cintilantes; trás ao peito, posta na abertura da camisa, a mão direita, ferida por um golpe de sabre.
 
-— Onde está teu marido?
 
-— No céu.
 
-— Que queres dizer com isto?
 
-— Meu marido morreu.
 
E o olhar correu rápido o fulgurante sobre os circunstantes sem se fitar em ninguém.
Linha 29:
O chefe da comissão de engenharia julgou conveniente fazer-lhe algumas perguntas acerca do número de habitantes e condições da vida, em Canudos.
 
-— Há muita gente aí, em Canudos?
 
-— E eu sei? ... eu não vivo navegando na casa dos outros. Está com muitos dias que ninguém sabe por via das peças. E eu sei contar? Só conto até quarenta e rola o tempo p'ra contar a gente de Belo Monte...
 
-— O Conselheiro tem recebido algum auxílio de fora, munições, armas?...
 
-&mdash; E eu sei? Mas porém em Belo Monte não manca<ref>Mancar -&mdash; faltar (manquer) -&mdash; É singular este galicismo no sertão. (N. do A.)</ref> arma nem gente p´ra brigar.
 
-&mdash; Onde estava seu marido quando foi morto?
 
Esta pergunta foi feita por mim e em má hora a fiz. Fulminou-me com o olhar.
 
-&mdash; E eu sei? Então querem saber de tudo, do miúdo e do grande. Que extremos!...
 
E uma ironia formidável, refletida nos lábios secos que ainda mais so rugaram num sorriso indefinível, sublinhou esta frase altiva, incisiva, dominadora como uma repreensão.
 
-&mdash; Onde está Vila-Nova?
 
-&mdash; Abancou para o Caipan.
 
-&mdash; E Pajehú?
 
-&mdash; É de hoje que ele foi p'ro céu?
 
-&mdash; Tem morrido muita gente aí?
 
-&mdash; E eu sei?...
 
Este e eu sei? É o inicio obrigado das respostas de todos; surge espontâneamente, infalívelmente, numa toada monótona, encimando todos os períodos, cortando persistentemente todas as frases.
 
-&mdash; Fugiram muitos jagunços hoje, no combate?
 
-&mdash; E eu sei? meu marido foi morto por um lote de soldados quando saía; o mesmo tiro quebrou o braço do meu filho de colo... Fiquei estatalada, não vi nada... este sangue aqui na minha manga é do meu filho, o que eu queria era ficar lá também, morta...
 
E assim vão torcendo e evitando a todas as perguntas, fugindo vitoriosamente ao interrogatório mais habilmente feito. E que as interrogativas assediem-nos demais, inflexivelmente, quando não é mais possível tergiversar lá surge o infalível -&mdash; e eu sei? Tradução bizarra de todas as negativas, eufemismo interessante substituindo o não claro, positivo.
 
{{separador}}
 
São cinco horas da tarde. Os jagunços continuam inamalgáveis, na resistência. Tivemos ontem cerca de cinquenta baixas e as de hoje não serão talvez menores. Feleceu heroicamente, quando tomava posição perto das igrejas, o capitão Cordeiro, do batalhão paraense, na mesma ocasião quase em que era ferido o coronel Sotero de Menezes, comandante do mesmo batalhão. Acaba de ser ferido por um tiro de bacamarte o major José Pedro, do batalhão paulista, no braço esquerdo, no peito e na cabeça, sem gravidade. O sargento do 5º de artilheria Francisco de Mello -&mdash; o mesmo que há menos de um mez, num belo lance de bravura, foi só à igreja nova lançar uma bomba de dinamite -&mdash; acaba também de ser ferido. E os estragos vão-se assim acumulando no final mesmo da luta, e pode-se avaliar o que foi ela no princípio quando o inimigo se revestia da força moral da vitória.
 
Onze horas da noite. A partir das 6 horas da tarde recrudesceu a fuzilaria que ainda perdura e, certo, continuará por toda a noite. Ela faz-se numa intermitência sucessiva de tiros numerosos, multiplicados como uma explosão os períodos mais calmos de fogo lento, como retic~encias passageiras no tumulto ruidoso do tiroteio.
Linha 83:
Meia noite. Mal posso, á luz mal encoberta de um fósforo, observar a temperatura e a pressão no meu aneroíde, a fuzilaria continúa tenaz do lado a lado.
 
Já se não distinguem os tiros -&mdash; ouve-se um ressoar imenso lembrando o de muitas represas bruscamente abertas.
 
Os jagunços lutam agora pela vida, no sentido mais estrito da frase. Lavra entre eles a sede e as cacimbas ali estão, a poucos metros apenas, em nosso poder.