Artigo de Euclides da Cunha de 5 de setembro de 1897: diferenças entre revisões

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nova página: {{navegar |obra=({{subst:PAGENAME}}) |autor=Euclides da Cunha |notas=Publicado no ''Estado de São Paulo'' em 22 de setembro de 1897 }} CANSANÇÃO - Aqui chegamos ...
 
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CANSANÇÃO -— Aqui chegamos às 9 horas da manhã -— esplêndida manhã! -— caminhando duas léguas a partir do Tanquinho. Cansanção, felizmente, já merece o nome de povoado. Tem onze casas, algumas cobertas de telhas, e um armazém paupérrimo no qual entramos com a mesma satisfacção com que aí se penetra no Pregredior. Sentimo-nos deslumbrados ante as prateleiras toscas e desguarnecidas.
 
A povoação erige-se numa mancha de terreno argiloso -— largo hiato no deserto de grez que a rodeia; e tem uma feição ridente erguida numa breve colina de onde se descortinam horizontes indefenidos. Nem uma elevação regular, porém, perturba a monotonia de um solo chato -— sucessão ininterrupta de taboleiros imensos.
 
A população, membros de uma só familia, vivendo sob um regime patriarchal e primitivo, recebeu-nos numa quase ovação -— capitaneada pelo chefe, o velho Gomes Buraqueira, que apesar dos oitenta esses bem contados alevantou, por três vezes, num amplexo formidável, a um metro de altura, o coronel Callado.
 
Dez frades franciscanos, alemães, ainda em moços, aqui estão com o intuito nobilíssimo de cuidar dos feridos que não possam vingar a distância do Monte Santo a Queimadas. Vieram convidar ao ministro e a todos para assistirem à missa. Assistimos.
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Há quantos anos tenho eu passado indiferente, nas cidades ricas, pelas opulentas "catedrais da cruz"...
 
E assisti à missa numa saleta modesta, tendo aos cantos espingardas, cinturões e cantis e um selim suspenso no teto -— servindo uma mesa tosca de altar e estando nove décimos dos crentes fora, na rua, ajoelhados. E ajoelhei-me quando todos se ajoelharam e bati, como todos, no peito, murmurando como os crentes o mea culpa consagrado.
 
Não me apedrejeis, companheiros de impiedade; poupai-me livres pensadores, iconoclastas ferozes! Violento e inamolgável na luta franca das idéias, firmemente abroquelado na única filosofia que merece tal nome, eu não menti às minhas crenças e não trai a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão...
 
Depois da ceremônia -— passeiamos pelos arredores e saciamos largamente a sêde, agravada por um churrasco magnífico de novilho sadio, morto e assado em menos de uma hora.
 
Dentro de uma hora (são duas horas da tarde) reataremos a marcha devendo chegar hoje mesmo a Quirimquinquá.
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A subida do terreno na direção média que levamos, leste oeste, é como se vê, insensível mas contínua.
 
QUIRIMQUINQUÁ -— Aqui chegamos às 7 horas e 38 minutos da noite, andando, a partir de Cansanção cinco léguas extensas, léguas tabaréu, que valem 8 kilometros cada uma.
 
O terreno vai-se pouco a pouco modificando, as catingas tornam-se mais altas numa passagem franca para cerrados e o terreno mais movimentado. Encontramos as primeiras rampas fortes da estrada. Do meio do caminho, perto da Lagoa de Cima começa-se a avistar, bellissima, fechando o horizonte para nordeste a serra de Monte Santo. Predominam na flora novos especimens; começam a aparecer em maior número os angicos de folhas miúdas e porte elegante, as baraienas altas, as caraíbas de folhas lanceoladas e cassuquingas de cheiro agreste e agradável. A três kilometros de Quirimquinquá o terreno granitico aflora dominando a constituição do solo. A rocha tem para mim um aspecto novo; está cavada em muitos pontos em caldeirões de grandeza variável, nos quais se acumulam as águas da chuva. São reservatórios providenciais. Estão todos toscamente cobertos: algumas pedras sobre páus dispostos paralelamente.
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Abrigado uns nas duas casas da fazenda graciosamente cedidas, dormindo outros ao relento em redes ou sobre os apetrechos da montaria, vamos atravessar mais uma noite, a última, felizmente, desta viagem.
 
Partiremos amanhã cedo para Monte Santo.
 
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