Til/I/XXX: diferenças entre revisões

< Til
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Giro bot (discussão | contribs)
Importação automática de artigos
(Sem diferenças)

Revisão das 04h01min de 18 de janeiro de 2007


Era véspera de São João.

Na fazenda das Palmas, desde muito cedo que se faziam os aprestos para a festa daquela noite de folguedos. Já o pátio estava enramado de coqueiros; e no centro erguia-se uma pilha de lenha para a fogueira fatídica.

Nhá Tudinha se instalara na cozinha. Cercada de uma multidão de caçarolas, frigideiras, gamelas, alguidares e latas, a repolhuda comadre repimpava-se no cepo do pilão, para distribuir suas ordens pelas raparigas; mas não se podia ter que não saltasse logo do seu pedestal e acudisse aqui e ali, em toda a parte, com uma azáfama crescente, o que fazia dizer a crioula Rosa, em aparte ao Faustino:

— Gentes! Esta mulherzinha tem bicho-carpinteiro.

D. Ermelinda abdicara naquele dia em nhá Tudinha o governo da cozinha e despensa para ocupar-se exclusivamente com a recepção dos hóspedes que eram esperados à tarde.

Depois do almoço, Linda e Berta com os braços entrelaçados pelas cinturas, desceram ao terreiro por uma das escadas laterais e depois de percorrerem as ruas de coqueiros e o pavilhão de folhagem que tinham arranjado ao redor da fogueira, foram abrigar-se do sol na horta à sombra de uma latada, onde podiam conversar à vontade.

Linda parecia triste. A próxima festa, longe de enflorar, lhe desfolhava o brando e mavioso sorriso. Como o dourado inseto que se esconde entre as pétalas da rosa, havia um segredo a suspirar nesses lábios mimosos.

— Esta noite as moças ficam sempre tão contentes! disse a menina em tom suave de queixume.

— E você? tornou Berta com um sorriso.

— Eu não!

— Por que, Linda?

— Todas tem uma pessoa que pense nela.

— Então você não tem? perguntou Berta com um doce remoque.

Linda abanou a cabeça melancolicamente.

— E Miguel?

— Ele não gosta de mim! suspirou a menina com o lábio balbuciante e uma lágrima a tremer na pálpebra.

Respondeu-lhe Berta com uma fresca risada, que debulhou mesmo nas faces da amiga, como os bagos nacarados e saborosos de uma romã.

— Olhem que sonsinha!...

— Nunca mais lhe direi nada, Berta! acudiu Linda, ressentida do modo por que recebera a amiga sua confidência.

— Pois, menina, você tem lembranças, que a gente não pode mesmo deixar de rir-se. Então Miguel não gosta da senhora? Era preciso que ele não tivesse olhos para ver essa carinha de feitiço.

— Há outra que ele acha mais bonita!

— Outra?... Qual?... perguntou Berta de todo confusa.

— Esta, que ele vê a todo momento! replicou Linda, afagando o semblante da amiga com um gesto de triste resignação.

De novo disparou Berta a rir com a lembrança da amiga.

— Ai, que ciumenta, Jesus!

Retiniu perto o grito áspero do curiau. No meio do silêncio que reinava naquele sítio, como era natural, excitou esse brusco rumor a atenção das duas amigas, e arrancou-as à anterior preocupação. Berta sobressaltou-se com a lembrança de que ouvira o mesmo apito no dia da tocaia.

Conteve-se receando assustar Linda; mas, apesar da promessa que lhe fizera o Bugre, estremecia com a idéia de que Luís Galvão devia chegar de Campinas naquela manhã, e talvez ao passar na volta da Ave-Maria fosse vítima do assassinato que ela uma vez impedira. Em falta de Jão Fera, a oculta vingança que ameaçava a existência do fazendeiro, teria procurado outro instrumento.

— Vamos ao mirante, Linda? O sr. Galvão não pode tardar.

— Papai só chega ao meio dia; respondeu a moça erguendo-se para acompanhar a amiga.

Na ocasião em que as duas atravessavam a horta, um vulto se esgueirando por detrás dos pessegueiros, passava a cerca e sumia-se no canavial. Berta que o viu nessa ocasião, e apenas de relance, inquiriu de Linda para certificar-se.

— Não é o Faustino aquele?

A filha do Galvão, distraída, de nada se apercebera.

Não se enganara Berta. Era de feito o pajem Faustino, que saíra de casa sorrateiramente para acudir ao grito do curiau, sinal combinado com o Barroso. Atravessando três ou quatro talões do canavial, foi ele surdir justamente no lugar onde anteriormente, no dia da partida de Luís Galvão, estava de espreita o Monjolo.

Era um sítio escuso e sáfaro; ficava embaixo de uma barranca, escondido pelo maciço do canavial e pelo matagal embastido que já invadira o valado.

Aí estavam Barroso e Monjolo, ambos com o ouvido à escuta de qualquer rumor que lhes anunciasse a chegada do pajem. O branco descansava encostado à barranca; o negro estava acocorado como gambá, junto a uma casa de cupim.

— Então o diabo chega, ou não chega? disse o Barroso ao Faustino, mal lhe pôs os olhos.

Não tarda; antes do meio dia está aí, sim senhor, respondeu o pajem.

— Eh! Eh!... fez o Monjolo.

— Vem mesmo?

— Se vem!...

— Pois então, esta noite é o batuque. Estão ouvindo?

— Monjolo já está sacudindo, sim senhor! disse o africano fazendo jeito de saracotear.

— Tomara eu ver a dança! acudiu o pajem.

— Olhem lá! Cuidado em trancar a negralhada no quadrado, senão está tudo perdido.

— Isto é com Monjolo!

— Monjolo arranja tudo, deixa estar.

— Quando estiverem bem seguros é só dar o sinal, que o fogo rebenta cá no canavial. O diabo corre para acudir; e aí você, rapaz, tranca também a gente da casa, a mulher e os filhos, e espera, que eu não tardo, para arranjar a história. Ouviram vem?...

— Não tem dúvida! disse o Faustino.

— Você que é mais ladino, explica bem àquele pai.

Riu-se o Monjolo, com uma expressão bestial que parecia confirmar o dito.

— Mas... replicou o Faustino. Eu cá é com a condição que o senhor sabe. Eu fôrro; a Rosa, para mim; e o mulato surrado como canhambola.

— Pois está entendido! disse o Barroso. Foi o ajuste.

Fuzilou uma chispa na rúbida pupila do africano.

— E tu, paizinho?

— Monjolo não quer nada, senão gimbo muito para comprar fumo e cachaça.

— Fica descansado.

Separaram-se os cúmplices. O pajem voltou à casa, Monjolo à roça, e Barroso foi juntar-se a pouca distância ao Gonçalo Pinta, que o esperava com dois animais à destra.

Apenas se desvaneceu o rumor dos passos, que um galho murcho atirado a um canto da barranca se agitara, descobrindo a boca de um covão, talvez de tatu canastra, de onde saiu de rojo meio corpo do Brás.

Daquele esconderijo, a que se acolhera para o não surpreenderem, ouvira o idiota a maquinação do Barroso, e, fato incrível, a compreendera, ou antes a sentira, porque não fora pela razão, mas por uma sorte de faro moral, que recebera essa percepção.

Adivinhara a intenção dos cúmplices, como o animal carniceiro conhece o desígnio do caçador e o acompanha para aproveitar dos despojos das vítimas.

Um riso, que ressumbrava brutal crueldade, arregaçou-lhe os beiços estúpidos.