O Seminarista/XXIII: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Seminarista|Capítulo 23]]
 
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O padre Eugênio entrou em casa com o cérebro a arder, e com o coração açoitado das mais violentas agitações. De coração mole e extremamente impressionável, não tinha força para lutar contra a tempestade medonha, que dentro dele se suscitava. Como piloto fraco e inexperiente, que se perturba e desorienta em presença do perigo, arrependia-se mil vezes de ter tomado o timão, tão superior às suas forças, de uma nau pujante destinada a afrontar mares tão tormentosos. A tonsura sacerdotal era uma coroa de espinhos, que se lhe enterravam no crânio, e lhe arrancavam bramidos de desespero.
 
Exasperava-se contra a mentira de que seu pai, decerto de conivência com os padres de Congonhas, se havia prevalecido para determiná-lo a tomar ordens.
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— Para que semelhante embuste, meu Deus! - murmurava consigo. - Que idéia infernal de sacrificar o destino de duas pessoas por meio de uma mentira!... Se não fosse tal mentira, se me constasse - como era verdade - que Margarida fiel ao seu amor se finava de saudades por mim, decerto eu nunca teria tomado esta veste sagrada, que hoje me queima as carnes como a túnica de Nesso. A impressão de um sonho, de um sermão, se teria esvaecido como fumaça, como tantas outras que não puderam desarraigar de meu coração uma paixão, que com ele nasceu, e que com ele... desgraçado de mim!... sim, mil vezes desgraçado .... que com ele terá de morrer... Margarida!... pobre Margarida!... tens tanto de boa, pura e leal, como de formosa... e tanto de formosa, como de infeliz!... nem nos mais exaltados sonhos de fantasia, eu fazia idéia justa do tesouro que eu louco troquei por uma coroa de martírio, que não tenho força para suportar!...
 
Eugênio estorcia-se em febril agitação, e quase delirava. A paixão, que julgava já não ser mais que uma triste recordação, uma dolorosa desilusão do passado, não se tinha extinguido debaixo
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das vestes sagradas do sacerdote. Era essa paixão como o arbusto, que a geada despojou das folhas, e mirrou-lhe os galhos, e parece estar morto para sempre, entanto, que o tronco e a raiz, cheios de seiva e vitalidade estão prontos a germinar com novo viço e galhardia ao primeiro bafejo da primavera.
 
Ou antes era como a fogueira, cujas chamas uma chuva glacial havia apagado, ficando intactos todos os materiais, que já secos e quase calcinados, esperam apenas o contato de uma centelha para de novo se inflamarem com fúria irresistível. A vista de Margarida resplandecente de beleza e dos mais voluptuosos encantos do corpo, a certeza de sua fidelidade, aquele ligeiro roçar de lábios, filtro fatal, que lhe coou nas veias o delicioso veneno da voluptuosidade, foram centelhas vivas, que em um momento puseram em horrível conflagração a paixão ardente, há tanto adormecida. Uma nova tormenta mais pavorosa que as precedentes ameaçava fazer soçobrar a virtude do jovem cenobita, levando de rojo o frágil dique a tanto custo erguido pelo ascetismo na solidão do claustro.
 
Não era já um reflexo da pura afeição da infância, desse
Não era já um reflexo da pura afeição da infância, desse sereno amanhecer do amor envolto nos véus cândidos da inocência. Não era também a paixão juvenil com suas recordações saudosas, com seus sonhos dourados e ardentes aspirações de felicidade. Era tudo isso, e mais alguma coisa ainda. Eram os instintos sensuais longo tempo sopitados, que em uma organização vivaz e vigorosa despertavam com império irresistível. Era uma sede voraz de gozos e volúpias, era uma febre, era um delírio. O demônio da luxúria acendera nas chamas do inferno seu facho furibundo e com ele se aprazia em requeimar o sangue do mísero sacerdote.
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Não era já um reflexo da pura afeição da infância, desse sereno amanhecer do amor envolto nos véus cândidos da inocência. Não era também a paixão juvenil com suas recordações saudosas, com seus sonhos dourados e ardentes aspirações de felicidade. Era tudo isso, e mais alguma coisa ainda. Eram os instintos sensuais longo tempo sopitados, que em uma organização vivaz e vigorosa despertavam com império irresistível. Era uma sede voraz de gozos e volúpias, era uma febre, era um delírio. O demônio da luxúria acendera nas chamas do inferno seu facho furibundo e com ele se aprazia em requeimar o sangue do mísero sacerdote.
 
Entrando em casa, Eugênio não quis ver pessoa alguma a fim de esconder a perturbação que o agitava, e como a noite já ia avançada, recolheu-se sozinho ao seu aposento.
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No dia seguinte perguntando-lhe seu pai quem era, e como ia a pessoa a quem tinha ido confessar, respondeu laconicamente:
 
— É uma rapariga que não conheço... não está
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em perigo. A moléstia dela parece-me mais cisma que outra coisa.
 
Como seus pais reparassem e começassem a se inquietar com a palidez e extrema excitação nervosa em que o viam, para subtrair-se a seus olhares e perguntas, apenas acabou de almoçar mal e rapidamente saiu a pretexto de dar um passeio e ver algumas pessoas conhecidas.
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— Queira Deus!... queira Deus!... - murmurou a mãe levantando-se da mesa e rezando.
 
O padre durante a noite tinha feito firme propósito de não voltar mais à casa de Margarida apesar da promessa, que havia feito. Antes faltar a uma simples promessa, do que expor-se ao perigo de quebrar um voto, e perder sua alma. Portanto ao sair de casa dirigiu-se para o lado oposto ao
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bairro, em que ela morava. No fim de contas porém, depois de ter percorrido muitas ruas e parado em muitas casas, fosse por uma fatal casualidade, ou porque o coração, mesmo sem que ele o sentisse, o ia arrastando, achou-se nas vizinhanças da habitação, de que fugia.
 
Ao avistá-la o coração bateu-lhe uma fatal pancada.
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E assim, que o passarinho pousado na grimpa da árvore fascinado pela serpente, que enroscada no tronco fita nele os olhos peçonhentos, hirto de pavor e soltando pios lastimosos vem descendo do ramo em ramo até meter-se na garganta escancarada do hediondo réptil.
 
Margarida, depois que Eugênio saíra na véspera,
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havia adormecido embalada em um delírio de felicidade, e graças a esse sono reparador amanhecera melhor, se bem que um tanto descorada e abatida. Isto mesmo denotava, que o sangue lhe corria mais calmo e regular pelas artérias. Sentia-se tão aliviada, que parecia-lhe ter voltado ao gozo de perfeita saúde.
 
Levantou-se alegre e tranqüila, penteou seus negros e compridos cabelos, plantou entre eles um botão de rosa, seu enfeite favorito, e vestiu-se com certo esmero e faceirice, como noiva, que se prepara para ser conduzida ao altar... não, como vítima, que se adorna para o sacrifício. Mesmo abatida como se achava, estava fascinante de beleza. Tinha nos olhos uma luz tão lânguida e quebrada, na boca uma expressão tão voluptuosa, as faces um tanto desbotadas tinham um matiz de jambo tão suave e delicado, e o colo e os braços acetinados eram de tão fresca e mimosa morbidez, que a custo se acreditaria, que aquela moça estava precisada dos socorros extremos da religião.
 
Quando Eugênio entrou, Margarida estava recostada ao travesseiro. O padre sobressaltou-se vendo-a tão fresca e tranqüila, e tão faceiramente vestida.
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— Que é isto, santo Deus!... - exclamou com voz severa - esperava encontrar uma enferma no leito da agonia, e que é que estou vendo!... estará zombando de mim?
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— Acho-me melhor, é verdade - respondeu -, não estou sofrendo agora grande incômodo, mas não sei por que, me diz o coração, que meus dias estão contados.
 
— Não creia tal, minha filha, isso é pura cisma, é um capricho da sua imaginação. Mas enfim... seja como for, não me é permitido demorar-me por mais tempo a sós no quarto de uma moça,
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que parece estar no gozo de perfeita saúde. Adeus, senhora Margarida.
 
— Ah! não, pelo amor de Deus! não se vá ainda! Tenha paciência com esta pobre infeliz.
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— Eugênio!... como eu sou feliz em poder recordar contigo, antes de morrer, aqueles bons tempos de nossa meninice...
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— Margarida, para que recordar agora uma felicidade, que não pode mais voltar!
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— Por quem é não vá embora - disse-lhe com súplice ternura.
 
O padre não insistiu; cedendo a uma fatal fascinação
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tornou a sentar-se junto de Margarida. O corpo lhe tremia todo, a fronte gotejava suor em bagas, e os olhos lhe desmaiavam frouxos em langor voluptuoso.
 
— Margarida!... aqui estou - murmurou com desalento. - Mas... anjo meu!... tem piedade de mim... lembra-te, que sou padre!...
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No quarto de Margarida reinava uma luz frouxa, que entrava por uma janela de empanada; o ar estava impregnado do aroma inebriante das flores, que ornavam a mesa. A velha tinha saído, e naquela casa só se achavam os dois...
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Margarida encostou a cabeça ao ombro de Eugênio e este envolveu-a em um abraço.