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— Magdá, Magdá, repara que já é dia! Aqui não é permitido dormir assim até tão tarde! Vem ver despontar o sol. A passarada já está toda de fora, não ouves? Não há mais um só casal nos ninhos! Levanta-te! Sua Majestade aí chega, esfogueado da viagem, pedindo a cada corola uma gota de orvalho para beber e acendendo em cada gota de sangue uma centelha de amor!
 
A filha do Conselheiro abriu os olhos — sonhando. A primeira palavra que lhe escapou dos lábios foi o nome do trabalhador da pedreira.
 
— Bravo! exclamou este apanhando-lhe a boca num beijo. — Até que enfim te ouço dizer o meu nome!
 
— É que o ignorava...
 
— E como o sabes tu agora?
 
— Sonhei.
 
— Ah! sonhaste comigo?...
 
— Todo tempo que levei a dormir.
 
— E que sonhaste, meu amor ?
 
— Que estava ainda na minha primitiva existência, no mundo que troquei por este, e do qual não tenho saudades, a não ser por meu pai.
 
— E então?
 
— Via-te a todo o instante; levava-te comigo no pensamento para toda a parte; vi-te até em estátua, lutando com um tigre...
 
— Fantasias de sonho...
 
— Sonhei com tudo isto que nos cerca neste nosso éden; sonhei com esta gruta, com estas árvores, com estes lagos e com esta deliciosa luz sanguínea que me aviventa.
 
— Sim, sim, mas vai tratando de deixar a cama, que não havemos de ficar aqui metidos o dia inteiro. Hoje quero levar-te ao vale, onde passa o rio que nos separa da ilha do Segredo.
 
— Ilha do Segredo? ~ Que vem a ser isso?
 
— Tu verás... É encantadora.
 
— Muito longe daqui?
 
— Não, e se fosse? Não estou eu a teu lado para te carregar?
 
— É que me sinto tão fraca, tão pobre de coragem... tão magra!...
 
— Lá encontrarás novas forças. Vamos!
 
Ela ergueu-se pela mão do companheiro, e saíram da gruta.
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Repontava o dia. Tudo se enchia de vida: as abelhas saíram para as suas obrigações; borboletas peralteavam já pelo ar, em troça, mexendo com as flores; a pequenada dos ninhos reclamava o almoço, e os pais andavam por fora, a tratar da vida, aflitos, preocupados, mariscando na umidade da terra o pão-nosso da família. O sol erguia-se como um patrão madrugador e ativo, acordando toda a sua gente e chicoteando a golpes de luz a mata inteira, folha por folha, para não deixar nenhum preguiçoso dormindo acoitado pela sombra. Uma dourada nuvem de lavandeiras doudejava sobre os lagos, picando a água com a cauda, de instante a instante, num crepitar frenético de asas.
 
— Então perguntou Luiz, de braço passado na cintura de Magdá. — Não é melhor estarmos aqui no que metidos lã na gruta?
 
— Certamente, meu amigo.
 
— Ampara-te pois ao meu corpo e deixa o passeio por minha conta.
 
Puseram-se a andar por entre a chilreada dos caminhos. De vez em quando paravam para colher um fruto, que dividiam entre si com a boca.
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Andaram muito. Quando a moça chegou ao vale estava prostrada de cansaço. O sol ia já bem alto no horizonte.
 
— Descansemos aqui à sombra deste tamarindeiro, para irmos depois até ao rio, propôs Luiz. E, enquanto Magdá repousava no chão, ele foi apanhar um coco e trouxe-lho já em estado de se lhe sorver o saboroso leite refrigerante. Quando a viu de todo acalmada, principiou a descalçar-lhe os sapatinhos de cetim.
 
— Que fazes!
 
Vou despir-te.
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E tirou-lhe as meias.
 
— Despir-me, para que? ~ perguntou a filha do Conselheiro com um retraimento de pudor.
 
— Para atravessarmos o rio.
 
E foi logo lhe desabotoando o colo. Magdá não se animou a dizer que não, mas fez-se vermelha e abaixou os olhos. Luiz, todo vergado sobre ela, ajudou-lhe a desenfiar as mangas do corpinho e sacou-o fora. Desacolchetou-lhe depois as saias na cintura e arrepanhou-as para debaixo das pernas dela.
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À moça levou as mãos às roupas, assustada, olhando com receio para os lados, como se quisesse, antes de despi-las, certificar-se bem de que não era vista senão pelo seu amante. Este compreendeu o gesto e disse-lhe sorrindo e tocando-lhe com os dedos no alvo cetim da espádua:
 
— Não tenhas medo... Aqui não há mais ninguém além de nós! Podemos ficar à nossa plena vontade, fazer o que bem quisermos; rolar nus e abraçados por estes tabuleiros de relva; entregar-nos a todos os delírios do amor; enlouquecer de gozo! Só Deus nos espreita, e Deus foi quem te fez para mim, para que eu te goze e te fecunde, minha flor! Ele observa-nos satisfeito, lá de muito alto, espiando pelas estrelas e sorrindo a cada beijo que damos! Quando nascer o fruto do teu ventre, ele descerá logo num raio de luz, e virá abrir na boca de nosso filhinho o seu primeiro riso e beber-lhe dos olhos a primeira lágrima. É com esta lágrima e com esse riso das criancinhas que o bom velho fabrica todos os dias o mel e o perfume das flores, o canto dos pássaros e o azul dos céus.
 
E Luiz continuou a despi-la.
 
Magdá cruzou os braços sobre os peitos — ele acabava de lhe arrancar afinal a camisa — e fechou os olhos, toda vexada e retraída. Mas depois, sentindo nas carnes o olhar ardente que a queimava, porque o moço permanecia a contemplá-la, embevecido e mudo, torceu-se logo sobre o quadril esquerdo, repuxando para esconder a sua mimosa nudez as largas parras de um tinhorão que havia junto.
 
Vergonhosa!... balbuciou o amante, ajoelhando-se aos pés dela.
 
E acrescentou em voz alterada, procurando alcançar. com os lábios o rosto que Magdá se empenhava em esconder: — Não deves ter desses escrúpulos comigo esposa de minha alma!... Acaso não sou todo teu! não és toda minha?... Porque escondes o semblante! porque abaixas os olhos? Fita-os antes em mim e deixa-me beber o mel dos teus lábios! Deixa-me abraçar-te bem! assim! toda inteira, toda nua, que eu sinta na minha carne, a carne do teu corpo! Cinge-me nos teus peitos! Aperta-me! Mais! mais ainda Magdá — um beijo... dá-me um bei... Ah!
 
— Tu me matas de amor! soluçou ela.
 
E, por entre o suspirado resfolegar dos dois, estalejava o seco farfalhar das folhas caídas.
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Seguiram depois para o rio. Ele levou-a de colo, porque Magdá não podia andar descalça; só a largou à margem dâgua.
 
— Mas eu não sei nadar... considerou ela, assustada.
 
— Sabes sim; todos sabem nadar. A questão é não ter medo.
 
— Ah! Eu tenho medo!...
 
— Irás comigo. Espera.
 
Luiz entrou no rio e disse à companheira que lhe passasse os braços em volta do pescoço. Magdá obedeceu.
 
— Ah! Não me soltes, hein?...
 
— Não tens confiança em mim?...
 
— Ui, ui, ui, meu Deus!
 
— Então!
 
— Ai, minha Nossa Senhora! É agora!
 
— Medrosa! Não vês como vamos tão bem ...
 
— Voltemos para terra! Voltemos!
 
— Olha que estás me apertando a garganta...
 
— Aqui já é muito fundo!... É melhor voltar-mos.
 
— Não sejas criança...
 
— A ilha está muito longe ainda?...
 
— Não a vês defronte de ti?
 
— É verdade! Oh! E como é linda!...
 
Calaram-se por instantes.
 
— Ainda tens medo? perguntou depois o moço.
 
— Não. Ela agora estava até gozando daquela excursão.
 
— Não te dizia?...
 
— E tu, não te sentes cansado?
 
— Qual o que!
 
Parecia mesmo não cansar; nadava como um cisne, quase sem se lhe perceberem os movimentos, de tão suaves que eram. E a outra perdera afinal inteiramente o medo, e, toda estendida à flor das águas, com os cabelos derramados pelo rosto e pelos ombros, lá ia flutuando segura no amante, mais branca e leve que uma pena de gaivota arrastada pela corrente.
 
— Então?... consultou o rapaz, tomando vau à margem da ilha e passando o braço em volta de Magdá.- Que me dizes do passeio?...
 
— Delicioso.
 
— Aqui podes andar por teu pé, que o chão é todo de areia fina; mas vamos primeiro assentar-nos debaixo daquelas juçareiras para repousarmos um instante. Tens fome?
 
— Não, respondeu a moça, contemplando a ilha.
 
Era esta encantadora com a sua praia argentina lavada em esmeralda. Daqui e dali surgiam dentre o salivar das espumas pequenos rochedos reverdecidos de musgo aquático, onde garças e guarás mariscavam tranqüilamente. Um palmeiral sem fim nascia quase á beira dágua e, pouco a pouco, à medida que se entranhava pela terra, fazia-se mais compacto, até se fechar de todo com murmurosa cúpula de verdura suspensa por milhões de colunas. Mundos de parasitas serpenteavam em todas as direções, já suspensas e pendentes, embaladas pelo vento; já dependuradas em arco, formando grinaldas; já grimpando encaracoladas pelos troncos e alastrando em cima, como se quisessem quebrar a interminável noite daquele céu de folhas com um infinito de estrelas de todas as cores.
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Magdá, ao transpor o assombrado átrio da floresta, deteve-se para fazer notar ao companheiro o perfume ativo que se respirava ali; um cheiro como o da magnólia, agudo e penetrante, que ia direito ao cérebro com sutil impressão de frio.
 
— Vem dessas florinhas que vês aqui nos espiando de todos os lados; essas que ora são cor de rosa, ora avermelhadas, ora cor de laranja e ora cor de sangue. É uma trepadeira; não há canto da ilha em que não as encontres. Mas não toques em nenhuma delas, porque, se colhesses alguma, nunca mais poderíamos sair daqui.
 
— Ora essa! Porque?
 
— Não sei, é segredo! Foi Deus que assim o quis... Repara: não se descobre uma só dessas flores pelo chão, e também a gente não as vê nascer; quando vão murchando mudam de cor e revivem.
 
— E não dão fruto!
 
— Nunca.
 
— É esquisito.
 
— E perigoso...
 
— Mas como é que elas prendem a quem lhes toca?...
 
— Pois se é um segredo, como queres tu que eu saiba?...
 
— E nunca tiveste desejos de descobri-lo!
 
— Para que! Sou perfeitamente feliz sem isso...
 
— Não és curioso.
 
— Sou, mas tenho medo de tornar-se desgraçado.
 
Nesta conversa haviam chegado à fralda de um oiteiro coberto de murta e empenachado por um frondoso bosque de bambús.
 
- Este morro divide a ilha em duas partes, explicou Luiz. — Queres subir?
 
Magdá consentiu, posto se visse já bastante fatigada e fraca; tanto que, do meio para o fim da viagem, foi preciso que o rapaz a carregasse. Sentia-se quase desfalecida.
 
— Meu Deus, como estás pálida! disse ele, pousando-a à sombra dos bambús. — Vou busear4e um pouco dágua ali à fonte. Espera um instante; eu volto já.
 
- Não, não! gemeu a moça, segurando-o com ambas as mãos. — Não te afastes de mim! Não é de água que eu preciso, é de um pouco de vida! Sinto fugirem-me as últimas forças! Eu preciso de sangue.
 
E fazia-se cor de cera, e fechava os olhos, e entreabria os lábios, como um orfãozinho abandonado que morre à míngua do leite materno.
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Cortava o coração
 
— Magdá! meu amor! minha vida! exclamou Luiz, tomando-a nos braços. — Não desfaleças! Não fiques assim! Desperta!
 
Ela soergueu as pálpebras, e murmurou baixinho, quase imperceptivelmente:
 
— Sangue! sangue! sangue, senão eu morro!...
 
— Ah! fez o moço com vislumbre. E sem sair donde estava, quebrou um espinho de palmeira e com ele picou uma artéria do braço. — Toma! disse, apresentando à amante a gota vermelha que havia orvalhado na brancura da sua carne. — Bebe!
 
Magdá precipitou-se avidamente sobre ela e chupou-a com volúpia. Não se ergueu logo; continuou a sugar a veia, conchegando-se mais ao amigo, agarrando-se-lhe ao corpo, toda grudada nele, apertando os olhos, dilatando os poros, arfando, suspirando desafogadamente pelas narinas, como se matasse uma velha sede devoradora.
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Luiz, sem uma palavra, ouvia-lhe os estalinhos da língua e o gluglutar sôfrego de criancinha gulosa pela mama.
 
Ah! respirou enfim a filha do Conselheiro, desprendendo os lábios do braço dele e sorrindo satisfeita e vitoriosa. — Agora sim! posso viver!
 
O amante encarou-a e recuou, não podendo conter a sua surpresa e a sua admiração. Magdá readquiria por encanto a frescura, a beleza e a saúde, que havia perdido nos últimos anos. Reconstruía-se, revivificava-se à semelhança das florinhas feiticeiras da ilha.
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Luiz caiu-lhe aos pés, beijando-lhos com transporte.
 
— Como estás bela! Como estás bela! Abençoada gota de sangue que te dei!
 
Magdá sorriu, estendendo-lhe os braços, agora carnudos e torneados. E, logo que ele se levantou, cingiram-se ambos um contra o outro, num só arranco, em igualdade pletórica de ternura.
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Magdá quis, porém, antes de partir, lançar lá de cima um olhar de despedida sobre aquelas paragens encantadas. O companheiro levou-a ao ponto mais elevado do morro.
 
— Contempla os teus domínios! disse, desferindo no ar um círculo com a mão aberta.
 
Ela deixou cair o seu olhar de rainha sobre a esplêndida natureza virgem que a cercava. Bosques e bosques acumulavam-se numa interminável aglomeracão de tons, em que entravam todas as tintas da mágica palheta do divino artista, dissolvidas em fogo, essa cor primordial que nenhum outro pintor possui. O horizonte ardia em chamas; o céu rasgava-se, deixando transbordar em jorros uma cascata de luz que dava ao menor objeto da terra o brilho de um metal precioso. As florestas cintilavam. Gigantescos paus-d'arco bracejavam por entre as árvores vizinhas para mostrar bem alto a sua coroa de ouro; mas as palmeiras não se deixavam vencer e reagiam vitoriosamente por entre a espessura da mata, agitando no ar o seu penacho indígena; a gameleira brava procurava erguer a cabeça engrinaldada de heras e parasitas; pinheiros seculares, cedros mais velhos que a religião, primeiras, angicos, perobas, todos os gigantes da selva, pelejavam para sobressair! Uma luta silenciosa e terrível! Viam-se púrpuras que se rompiam de cólera; cetros que se despedaçavam de inveja! As tímidas plantas escondiam-se de medo e os lírios retraíam-se, estremecidos e assustados, procurando ocultar a candura das suas urnas embalsamadas atrás de rasteiros tinhorões e discretas folhas de begônia. Entretanto, o indiferente rio, em preguiçosos torcicolos, rastreava lá em baixo, franjando de rendas de prata aquela imensa túnica de veludo verde-negro, que a montanha arrastava, estendendo-a sobranceiramente pelo vale. Afinal declinou a luta era a noite que vinha já, com os seus cabelos sempre molhados, a sacudi-os, orvalhando estrelas pelo espaço e apaziguando a terra debaixo das suas asas.
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Voltou a si chamada por uma voz meiga que lhe dizia:
 
— Magdá, minha filha! Valha-me Deus! Valha-me Deus! Até o demônio daquela pedreira havia de ficar defronte justamente aqui do quarto!.
 
E, reconhecendo a voz do Conselheiro, reconheceu também a da Justina. que exclamava:
 
— Pestes! Atacarem fogo à pedreira sem prevenir nada, sabendo que há aqui uma pobre doente neste estado! É maldade, como não ?
 
Magdá, quando abriu os olhos, percebeu que estava nos braços do pai.
 
— Ora graças! Ora graças, minha filha, que recuperas os sentidos!
 
[[Categoria:O Homem|Capítulo 14]]