O Homem/XVI: diferenças entre revisões

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|obra=[[O Homem]]
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À filha do Conselheiro contrariaram um tanto estes elogios. Não sabia porque, mas intimamente desejava que aquele imbecil fosse mais desgraçado e menos digno de estima; preferia ouvir dizer pelos outros os horrores que ela tinha vontade e não podia despejar contra o miserável; preferia saber que ele era um perdido, sem a menor idéia de estabelecer família, um bêbado devorado pela vil e baixa crápula das vendas e dos cortiços. E Magdá ficava revoltada, sentia as mãos frias de raiva, quando, ao chegar por acaso à janela, dava com o cavoqueiro que ia ou vinha do trabalho, ostentando o ar satisfeito de quem traz a vida direita e anda em dia com as obrigações.
 
— Ah! o seu desejo era descarregar-lhe um tiro na cabeça!
 
Um domingo, em que ela espairecia à porta da chácara, o Luiz passou na rua, todo chibante nas suas roupas de ver a Deus, de braço dado à noiva, e rindo muito e conversando com a mãe e com a velhinha Custódia: contentes que metia gosto vê-los. Pois a filha do Conselheiro, só por causa disso, mostrou-se contrariada e ficou pior esse dia. Tanto que, já de noite, estando a cismar na sala, com os olhos fitos num pequeno grupo de mármore que aí havia, ergueu-se, tomou-o nas mãos e, depois de o examinar com o rosto muito carregado, arremessou-o de encontro à laje da janela. O grupo representava em miniatura: "Amor e Desejo", de Miguel Ângelo — Um casal de quinze anos preso pelos lábios em um beijo ideal e ardente. — Quando o Conselheiro, deveras contrariado, perguntou quem havia quebrado a escultura, ela respondeu sem se alterar:
 
— Foi a Justina, papai, mas não lhe diga nada, coitada!
 
Sim, por último dera para isto: pregar destas pequenas mentiras e, se acaso queriam provar o contrário do que afirmava, punha-se furiosa, acabando sempre por desabafar em soluços a sua contrariedade. Assim, tendo uma vez matado um casal de rolas que havia na sala de jantar, só porque o surpreendera em flagrante delito de procriação, não só fugiu à responsabilidade do ato como ainda afetou grande desgosto pela morte dos brutinhos, chegado a revolucionar toda a casa para descobrir o suposto assassino.
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O outro, o da túnica negra, é que Magdá não conseguiu reconhecer, a despeito dos esforços que empregava para isso; só pôde distinguir-lhe as feições quando ele lá se achava a uns quarenta passos da choupana. Era seu falecido irmão, o Fernando; vinha cor de cadáver, muito desfeito; parecia ter saído naquele instante da sepultura. Ela estremeceu toda e, com um arranco de anta bravia, pinchou o corpo para fora da toca e abriu num carreirão pelo mato.
 
— Não fujas! gritou Luiz. — Não tenhas medo, que ninguém aqui te quer fazer mal
 
— Magdá! Magdá!
 
— Espera, minha filha!
 
Era tudo inútil. Magdá, completamente una, os cabelos soltos ao vento, lá ia, por trancos e barrancos, internando-se na floresta. Um fugir vertiginoso de cabrita assustada! Morros e valados desapareciam atrás dela; não havia encruzamento de cipó que lhe tolhesse a marcha, nem espinheiro, por mais bravio, que lhe quebrasse a fúria. E sentia atrás de si uma gritaria infernal e um tropel confuso de passos rápidos.
 
— Magdá! Magdá! Bradavam-lhe na pista.
 
E ela corria mais De repente — parou. Uma voz grossa exclamava-lhe pela frente:
 
— Cerca! Cerca!
 
Em menos de um minuto fecharam-na por todos os lados gritos de caçadores e passos que se aproximavam com vertigem.
 
— Cerca! Cerca!
 
— Por aqui!
 
— Por ali!
 
E de cada ponto surgiu logo uma cabeça de marujo, rompendo a argamassa das folhas.
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Magdá caiu por terra sem forças, as carnes alanhadas, os pés em sangue, os cabelos arrebentados. Incontinente os homens a rodearam, sem todavia nenhum deles lhe tocar com um dedo; a prisioneira, estarrecida no chão, arquejava, cruzando as pernas e os braços para esconder as suas partes vergonhosas. Afinal chegaram os outros, entre os quais vinha o Luiz, agora mais composto por uma capa, que o Conselheiro lhe pusera aos ombros; o primeiro a aproximar-se dela foi Fernando, que despiu logo a manta e estendeu-a sobre a nudez da irmã.
 
— Minha filha! minha filha! disse o Conselheiro, vergando-se para lhe dar um beijo. — Em que estado a encontro, meu Deus! E ordenou aos marinheiros que improvisassem uma padiola de bambús e folhas de bananeira.
 
Daí a pouco Magdá era levada ao ombro daqueles para a cabana. Arrearam-na sobre o tosco leito fabricado pelo amante; deram-lhe a beber os confortativos que se foram buscar a bordo com toda a pressa e lavaram-lhe em arnica as feridas que ainda sangravam.
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Quando conseguiu falar, pediu ao pai e ao irmão que não a castigassem.
 
— Castigar-te, minha filha...? respondeu o Conselheiro, afagando-a. — Não! Nada tenho que te exprobar, porque agora compreendo que o moço da pedreira te salvou a vida, trazendo-te para o seu desterro. Se eu te obrigasse a ficar lá em casa, sozinha comigo, a estas horas estarias sem dúvida debaixo da terra; ao passo que aqui — vives! e estás forte, e bela, e feliz! Não! eu te abençôo, como abençôo a este rapaz, cujos esforços foram muito mais proveitosos que os do Dr. Lobão.
 
E, palavras ditas, o pai de Magdá abraçou-se a Luiz.
 
— Não desejo contrariar-te... prosseguiu ele, voltando-se de novo para a rapariga, com os olhos carregados dágua, se quiseres continuar a viver aqui, fica; se quiseres voltar para a minha companhia, eu te receberei e mais ao teu homem; apenas o que lhes peço. quer vão ou fiquem, é que se casem e quanto antes. Trouxe no meu navio um padre e tenho a bordo o necessário para armar o altar.
 
— Pois está dito, balbuciou Magdá. E chegando os lábios ao ouvido do pai, disse-lhe um segredo, que a ela própria fez corar, mas que a ele encheu de vivo contentamento.
 
— Um neto, exclamou o Conselheiro. — Oh, que felicidade!
 
Magdá, afogada em pejo. tapou-lhe a boca com a polpa da mão.
 
— Ter um neto era o meu sonho dourado! Como vou ser feliz no resto da minha vida!...
 
— Ora, papai!...
 
Que mal faz que o saibam todos, se vais esposar de teu filho?... Acaso, desse momento em diante; não ficarás reabilitada aos olhos do mundo inteiro!
 
— Cale-se, papai...
 
— Não! Deixe-me falar! Deixa-me dar expansão à minha alegria! Não vês como estou rindo... . e não sentes, minha filha, estas lágrimas que me abandonam, porque o coração, de tão contente que está, as enxota de casa, como inúteis de hoje em diante? Oh! obrigado, Magdá! muito obrigado!
 
De junto, Fernando contemplava-a silenciosamente com o seu imóvel e apagado olhar de morto; os braços em cruz sobre o casco do peito; a pele sem brilho; as barbas ressequidas e cobertas de pó. Agora é que ele de todo se parecia com o Cristo da Mater Dolorosa; a irmã teve impulsos de ajoelhar-se defronte daquela melancólica imagem e rezar. como fazia dantes nas suas tredas escápulas religiosas.
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Ficou resolvido que o casamento se efetuaria daí a dois ou três dias com a maior solenidade que lhe pudessem dar. Começou-se logo a construir outra casa maior, não mais de bambús amarrados com embira e coberta de folhas de pindoba, mas feita de madeiras escolhidas, forrada de tábuas pela parte de fora e de lona pela parte de dentro. Mobiliaram-na depois com muito gosto e sortiram-na com enorme provisão de mantimentos cm conserva, e pipas de vinho e aguardente e latas de bolacha inglesa E vieram também aparelhos de porcelana e lanternas e candieiros, muitas caixas de velas, jarros, quadros, um piano, colchão, colchas lavradas e roupas de toda a espécie, não esquecendo as jóias, os livros e mais objetos de que se privara Magdá ao partir com o cavoqueiro.
 
— Mas isto é uma mudança completa! Meu pai não deixou nada em terra...! — observou ela, notando as coisas que desembarcavam e reconhecendo-as uma por uma.
 
Com efeito, vinha tudo; lá estavam as louças da Saxônia, os candelabros bisantinos, as peles da Sibéria. as velhas tapeçarias do salão de Botafogo, os caprichosos kakimanos, os espelhos, os damascos bordados a ouro e prata, e os consolos com mosaicos de Florença. É que o Conselheiro, uma vez que a filha não estivesse resolvida a acompanhá-lo, voltaria à vida inconstante do mar, para nunca mais se desprender do seu navio.
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A voz da Justina despertou-a com uma vibração estranha, que a fez estremecer toda; uma voz que desafinava do resto.
 
— Que é, mulher perguntou Magdá, arregalando os olhos sobre ela.
 
Acordara por instantes, mas não chegou a reconhecer o seu quarto da Tijuca.
 
— Então, minh'ama não se veste?... Fica vosmecê desse modo a olhar para mim?... Vamos, prepare-se...
 
— Sim, tens razão; são horas. Dá-me o banho.
 
E acrescentou de si para si:
 
— Está tudo pronto! Já chegou o padre com os seus ajudantes; meu noivo deve agora parecer lindo como um Deus! Vou perfurmar-me e fazer-me bela, para que ele mais se abrase de amor assim que me veja...
 
Era o delírio que prosseguia, mesmo sem a intervenção do sono.
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Mirou-se no espelho e nunca se achou tão bela.
 
— Está pronta a noiva! Está pronta a noiva! — exclamaram de todos os lados, assim que a viram surgir à porta da habitação, acompanhada pela Justina.
 
Os marujos soltaram gritos de entusiasmo.
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Magdá desceu de carreira pela encosta da montanha na direção que ele tomara. O seu vulto de noiva sobressaia errante na azul penumbra dos caminhos como um lírio levado pelo vento; mas, quando alcançou a campina, já Fernando ia distante.
 
— Atende! Atende! gritou atrás dele.
 
O espectro não atendeu e lá foi por diante, agitando às brisas do mar a sua túnica solta.
 
— Fernando! irmão meu amado de minha alma, não me fujas!
 
E o lírio precipitava-se pelo vaie, sem conseguir alcançar a sombra dos seus amores.
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Aproximou-se dela e tocou-lhe no ombro; a outra pôs-se de pé e teve um gesto de cólera quando reconheceu a rival.
 
— Está zangada comigo?... — perguntou a filha do Conselheiro, fazendo-se meiga.
 
— E a senhora ainda mo pergunta? Rouba-me o noivo e pergunta se estou zangada! Tem graça!
 
Magdá procurou acalmá-la, dizendo-lhe com extrema brandura que o Luiz, que Rosinha conhecia do cortiço, o moço da pedreira, era um ser fantástico, um mito; e que o único verdadeiro Luiz, o existente, era o da ilha, o poderoso monarca, o senhor daqueles domínios, um ente superior, um ente privilegiado por Deus, que lhe concedera o dom de tomar na terra a encarnação que lhe aprouvesse. Rosinha que se conformasse com a sorte, coitada! que se resignasse, que tivesse paciência; mas o Luiz, o legítimo, o único, o rei da ilha, esse lhe pertencia a ela, Magdá, e nunca seria de nenhuma outra mulher.
 
— Isso é o que veremos! — replicou a moça do cortiço, lívida de raiva — Não é a mim que a senhora convence de que este Luiz não é aquele mesmo que me havia prometido casamento! Ah, eu não tenho, bem sei, os seus segredos para o enfeitiçar, mas também juro-lhe que o verdadeiro amor, o amor que ele me inspirou, sincero e ardente, é capaz de tudo e é mais poderoso do que quantos artifícios possam imaginar as bruxas da sua espécie! O que lhe afianço pelo menos é que eu, desprezada como sou, seria mulher para dar por ele a minha vida, ao passo que a senhora, só com o fim de se fazer bonita, lhe tem roubado todo o sangue!
 
— Cala-te, miserável!
 
— Ah, pensavas que eu não sabia...? Bem te conheço, vampiro! Não é à toa que o pobre rapaz ultimamente anda tão fraco, que nem pode subir à pedreira sem ficar cansado! Ele, o Luiz, dantes mais rijo e mais ágil que um potro! Ah, mas conto que a tia Zefa há de descobrir que lhes estás matando o filho! Livre-te Deus de que a velha Custódia suspeite de longe o que se tem passado com o neto! Aquela velhinha, ali onde a vês, é capaz de arrancar-te a língua pela boca, ladra fementida!
 
E a rapariga do cortiço, dando em Magdá um empuxão que lhe abalou o corpo inteiro, exclamou terrível:
 
— Vai! vai! casa-te com o Luiz! farta-te, loba! A~ festas estão prontas! o altar está armado! a cama está juncada de flores! Vai, deita-te, mais ele, e logo que o tenhas embebedado com o teu almíscar de cobra traiçoeira, suga-lhe o resto do sangue, sorve-lhe a última gota! Vai, agora és a dona do homem, como és a rainha desta ilha! Vai; mas eu te juro, sanguessuga, que te hei de perseguir mesmo depois da tua morte!
 
— Então, Magdá! então! disse o noivo, aparecendo por entre duas moitas de crotons. Há boas horas que te esperamos lá em cima para a celebração das nossas núpcias, e tu aqui a conversares com esta sujeita. Anda, vamos, meu amor; estou farto de procurar-te!
 
Ele vinha vestido de veludo carmesim com botões de ouro, calção largo, blusa apertada na cintura, donde lhe pendia uma espada cintilante de pedraria; polainas pretas de couro envernizado; chapéu cinzento de abas largas com uma grande pluma branca que lhe ia até ao pescoço, destacando-se do ébano brilhante dos seus cabelos encaracolados, como um a pena de garça entremetida na asa de um pássaro negro; capa escura com forro cor de sangue e em volta do colo uma reluzente cadeia de esmeraldas, safiras e rubis.
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Deu-lhe o braço Magdá; pousando a cabeça sobre o ombro dele. E puseram-se ambos a subir a montanha, salpicados pelo sol que se peneirava por entre as folhas e chicoteados por um olhar ameaçador de Rosinha, que resmungava:
 
— Vão, vão, mas que a cama de vocês dois se transforme num espinheiro bravo!
 
[[Categoria:O Homem|Capítulo 16]]