O Coruja/II/V: diferenças entre revisões

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|obra=[[O Coruja]]
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A Ernestina ficou pasma.
 
— Como este rapaz tem mudado!... exclamava ela a cada instante, sem atribuir sequer ao outro, ao feio, a alma da primitiva limpeza e do primitivo arranjo, que tanto a maravilharam.
 
Agora, Teobaldo já não tinha, como dantes, certo escrúpulo em conservar a casa decente. Os seus companheiros da pândega, que lhe pareciam com mais freqüência, já não lhe ouviam dizer em certas ocasiões: "Não; não façam isso, para não afligir o Coruja! Ele não gosta destas brincadeiras!..."
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A infeliz já se não queixava e já nem sequer procurava disfarçar o seu cativeiro; entretanto, um dia em que lhe apareceu na porta uma mulher alta, bonita, vestida com um certo exagero de moda, a perguntar muito desembaraçada se era ali que morava Teobaldo, ela disparatou:
 
— Pois até mulheres já queriam entrar também na patuscada? Era só o que faltava!
 
E, fechando-lhe a porta no nariz:
 
— Procure-o na rua, se quiser!
 
Depo2s, meteu-se no quarto e pôs-se a chorar, como uma desesperada.
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Às três horas, quando Teobaldo chegou de fora, ela foi-lhe ao encontro e, mais branca do que a cal da parede, os beiços trêmulos, as feições estranguladas de ciúme, disse-lhe quase sem poder falar:
 
— Isto não pode continuar assim!
 
— Assim, como?
 
— Nesta desordem em que vai tudo! O senhor está um perdido!
 
— E a senhora que tem a ver com isso?
 
— Quero desabafar!
 
— Pois desabafe, mas que saia longe daqui!
 
— Cínico!
 
— Não me aborreça!
 
E Teobaldo galgou a escada do segundo andar.
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Ela seguiu atrás.
 
— O senhor precisa mudar de vida! exclamou penetrando no quarto.
 
Ele com a certeza de quem é amado a ponto de lhe perdoarem tudo, pôs-se a cantarolar, tirou o paletó e estendeu-se sobre o divã.
 
— Até aqui, prosseguiu Ernestina, sem poder conter a cólera; até aqui suportei e suportei muito! O senhor transformou esta casa em uma república, mas agora a coisa é outra; agora até as mulheres querem entrar na pândega!
 
— Hein? fez Teobaldo, voltando-se para ela.
 
— Sim, senhor! Veio aí uma mulher à sua procura.
 
Teobaldo deu um pulo da cama.
 
— Uma mulher? exclamou. Ah! eu bem contava que ela havia de vir!
 
E, voltando-se vivamente para a rapariga:
 
— Uma mulher alta, não é verdade? Pálida, de olhos pretos!...
 
— Vá para o diabo que o carregue! respondeu Ernestina virando-lhe as costas e saindo do quarto furiosa.
 
— Então ... . disse consigo Teobaldo, esfregando as mãos; voltou ou não voltou?... Ah! logo vi que Leonília havia de voltar !...
 
Leonília era a mais formosa criatura que empunhava nesse tempo o cetro do amor boêmio.
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Ernestina, coitada, é que ficou brutalmente ferida no seu amor próprio. Ao sair do quarto ia tonta, estrangulada de raiva; mas, ferida por uma Idéia voltou logo ao segundo andar, fechou-se por dentro e disse a Teobaldo, que nessa ocasião se aprontava para sair de novo:
 
— Você não há de agora sair de casa!
 
— Por quê? perguntou o rapaz, atando a gravata de fronte do espelho.
 
— Porque não quero!
 
— Não quer? Tem graça!
 
— Verá!
 
— Veremos!
 
E, quando ele deu por finda a sua toilette, aproximou-se de Ernestina:
 
— Vamos, filha, basta de tolice! Dá-me a chave.
 
— Não quero que saia, já disse!
 
— Dá-me a chave por bem ou eu te obrigo a dar-me à força!...
 
Ernestina passou-lhe os braços em volta do pescoço.
 
— Não sejas mau! disse chorando; não judies comigo deste modo!
 
Dá-me o diabo dessa chave! berrou ele, soltando-lhe um empurrão.
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A rapariga deixou-se cair por terra e começou a soluçar.
 
— Ora pílulas! rosnou Teobaldo, avançando sobre a porta disposto a arrombá-la com um pontapé. Mas nesse momento alguém bateu pelo lado de fora e ele estacou, perguntando com um grito:
 
— Quem é?
 
— Abra! respondeu uma voz.
 
— Estou perdida!... gaguejou Ernestina. É o Almeida.
 
— Bonito! pensou o estudante; vamos ter escândalo!...
 
E, voltando-se para a mulher:
 
— Abra a porta!
 
— Abrir? E onde me escondo?
 
— Em parte alguma. Fique!
 
Ernestina entregou a chave a Teobaldo, abriu a porta. Mas, enquanto ele fazia isto, ela, apanhando as saias, fugia para a alcova imediata.
 
— Entre! disse o moço, empurrando com um movimento desembaraçado a folha da porta.
 
O Almeida entrou; estava mais vermelho cinqüenta por cento do que era de costume. O seu colete branco, boleado pelo grande abdome, arfava; os músculos faciais tremiam-lhe como as carnes de um bêbado velho.
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Pela primeira vez Teobaldo reparou bem para aquele tipo. Notou, obra de um segundo, que ele tinha na fisionomia e no feitio do corpo alguma coisa que lembrava uma foca; notou que as suíças do Almeida principiavam logo por debaixo dos olhos e perdiam-se por dentro do colarinho: notou que ele tinha uma cabeça quase quadrada, encalvecida pela face superior; notou que o nariz do homem não era grego, nem árabe, nem tampouco romano e que, se o separassem do rosto, ninguém seria capaz de dizer o que aquilo era, e tanto podiam supor que seria um legume ensopado, como um pólipo extraído ou um mexilhão fora da casca; e notou ainda que o Almeida constava de quatro pés de altura sobre outros tantos de largura e que as mãos dele eram tão papudas, tão escarlates e tão reluzentes de suor, que pareciam esfoladas.
 
— Exponha o que deseja! ordenou secamente o rapaz, depois deste exame instantâneo.
 
— O senhor escusa de negar... principiou o Almeida.
 
— Eu nunca nego o que faço!... interrompeu Teobaldo..
 
— Escusa, porque eu sei que ela está aqui.
 
— Ela quem?
 
— A Ernestina.
 
— Está.
 
— Pois era disso que eu precisava me capacitar! Não me suponha tão tolo, que não tivesse há mais tempo desconfiado da marosca; quis, porém, ter uma certeza e agora posso proceder à vontade, sem me doer a consciência!
 
— Explique-se.
 
— Pois não: uma vez que ela o prefere a mim, cedo-lha!
 
— Hein? Como é lá isso?
 
— Cedo-lha, repito!
 
— Cede-ma?!
 
— Sim. Pode tomar conta dela. É sua!
 
E, dito Isto, o Almeida soprou com força, como quem se vê livre de uma carga pesada, e abicou para a saída.
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Teobaldo deteve-o com um gesto.
 
— Espere, disse-lhe. Antes de tomar conta de um fardo, que eu estava longe de esperar, quero saber ao qual é o seu conteúdo e a sua procedência!
 
— Ela que lhe explique tudo!... respondeu o velhote.
 
— Não; contradisse o outro; não quero trocar com ela uma palavra!... Ao senhor compete por tudo em pratos limpos. Em primeiro lugar, desejo saber ao certo que diabo vem a ser o senhor para D. Ernestina.
 
— Pois então o senhor não sabe?
 
— Se soubesse não perguntaria.
 
— Com franqueza?
 
— Não falo de outro modo.
 
— Pois então, ouça.
 
Teobaldo ofereceu uma cadeira ao Almeida e assentou-se em outra.
 
— Vamos lá disse.
 
— Haverá coisa de oito anos.. . casei-me, principiou aquele.
 
— Muito bem.
 
— Casei-me, mas não fui feliz...
 
— Sua mulher traiu-o?
 
— Não; tinha mau gênio. Era uma víbora!
 
— Muito bem.
 
— Suportei-a durante três anos; empreguei todos os meios para quebrar-lhe a fúria.
 
— Quebrou?
 
— Foi tudo debalde. A megera ficava cada vez pior. Resolvi largar de mão o negócio!
 
— Abandonou-a?
 
— Justamente; mas...
 
— Que idade tinha sua mulher?
 
— Cinqüenta anos.
 
— Ah!
 
— E o senhor casou por amor?
 
— Sim, por amor... dos seus interesses.
 
— Ah! era rica..
 
— Nem por isso...
 
— Quanto possuía?
 
— Cinqüenta contos.
 
— Um conto por ano. Adiante!
 
— Mas bem, como eu lhe dizia...
 
— Como me dizia...
 
— Resolvi separar-me dela e, foi dito e feito, zás!
 
— Separou-se!
 
— Logo.
 
— Muito bem.
 
— Foi então que uma noite, voltando para a minha nova residência, encontrei, encostada à porta da rua, uma rapariga...
 
— Era D. Ernestina...
 
— Não; era uma mulatinha que me disse haver fugido de casa, porque o senhor estava muito bêbado e queria dar-lhe cabo da pele, depois de ter feito o mesmo à mulher. Perguntei onde ficava a tal casa, e como era perto, dei um pulo até lá. A mulatinha entrou adiante com toda a cautela e voltou pouco depois,. declarando que a peste do patrão havia já pegado no sono. "E o cadáver?" perguntei eu. "Deve estar na sala", respondeu a mulatinha. Abrimos a porta, e vi então um corpo de mulher estendido no chão. Esta é que era D. Ernestina.
 
— Estava morta?
 
— Não, não estava morta, infelizmente, mas estava muito moída de bordoada! E, ainda bem não me tinha visto entrar na sala, começou a chorar com gana e disse-me então que o borracho do marido, além de que lhe não dava de comer, punha-a naquele estado. "Tem fome?" perguntei-lhe eu. "Muita" respondeu-me ela com a voz fraca. "Quer vir cear comigo?" "Onde?" "Em minha casa". "E meu marido?..." "Mande-o plantar batatas!" Ela aceitou; pôs um xale sobre a cabeça, chamou a mulatinha e saímos todos três.
 
Quando o Almeida chegou a esse ponto da sua narração, ouviram-se fortes soluços dentro da alcova de Teobaldo. O Almeida sacudiu os ombros e prosseguiu:
 
— Desde essa noite ela ao meu lado substituiu minha mulher. Despedi a mulatinha, que era alugada, montei esta casa e...
 
— E o marido?
 
— Morreu pouco depois, no hospital.
 
— Não deixou filhos?
 
— Creio que não; pelo menos foi o que ela me disse.
 
— Bem! fez Teobaldo, erguendo-se. De sorte que tudo isso que aí está no primeiro andar foi comprado pelo senhor?
 
— Tudo, e a casa também.
 
— Logo, tudo lhe pertence?
 
— Não, porque pertence àquela ingrata...
 
— E está sempre disposto a separar-se dela?...
 
— De certo.
 
— E quanto ela lhe custava em despesa por mês?
 
— Para que deseja saber?
 
— Para medir a altura do meu sacrifício.
 
— Dava-lhe oitenta mil réis por mês em dinheiro e comprava-lhe muitas coisas: roupa, calçado, chapéus, tudo que ela precisava.
 
— Bem. Pode ir quando quiser.
 
— Estamos então entendidos, não é verdade? concluiu o Almeida, apertando a mão do estudante e ganhando a saída; fico ao seu serviço - rua do Piolho, n.0 5.
 
— Seja feliz! disse Teobaldo, sem lhe voltar o rosto. E, logo que o viu sair chamou por Ernestina.
 
— Ouviu o que eu acabo de praticar? perguntou ele.
 
— Ouvi... disse ela abaixando os olhos.
 
— E no entanto a senhora tem plena certeza de que eu nada fiz para merecer semelhante espiga!
 
— Por que não declarou enquanto era tempo?
 
— Porque nunca me desculpo comprometendo uma mulher, seja ela quem for, ainda que eu lhe vote a mais completa indiferença.
 
— Então o senhor não me tem amor?
 
— Não, digo-lhe agora com franqueza, já que assim o quis.
 
— Mas por que não disse isso mesmo ao Almeida? por que consentiu que ele me abandonasse!... por que não lhe pediu para...
 
— Eu não peço nada a ninguém...
 
E, enquanto ela soluçava:
 
— Pelo respeito que devo a mim mesmo, tive de comprometer-me a sustentá-la. Seja! Dar-lhe-ei uma mesada, mas nunca porei os pés nesta casa. Retiro-me hoje mesmo.
 
— O senhor também me abandona?
 
— Não a abandono, porque nunca a amparei!
 
— Sou muito desgraçada! exclamou ela, deixando-se cair sobre uma cadeira, a soluçar. O senhor perdeu-me para sempre!
 
— Essa agora é melhor! Eu não a perdi! Não tenho culpa de que a senhora seja indiscreta! Quem lhe mandou vir ao meu quarto e fechar-se por dentro? Ora essa!
 
— Ai, meu rico Almeida! Como tu é que eu não encontrarei nenhum!
 
A esta exclamação de Ernestina a porta da sala abriu-se; o tipo do Almeida apareceu de novo, não com o aspecto de há pouco, mas risonho e ressumbrante de ventura.
 
— Oh! Ainda o senhor? disse Teobaldo.
 
— Ouvi tudo, meu amigo...
 
— Ouviu ou escutou?
 
— Escutei, escutei por detrás da porta...
 
E estendendo-lhe a mão:
 
— Toque!
 
— Hein?...
 
— Toque! Desejo apertar a sua mão! Poucos homens tenho encontrado tão nobres como o senhor! Seu procedimento para com uma mulher, que o acaso comprometia, foi mais do que de um fidalgo, foi de um príncipe! Toque!
 
Teobaldo consentiu afinal que o Almeida lhe apertasse a mão, mas resolveu de si para si mudar-se quanto antes daquela casa.
 
— Nada! refletia ele, enquanto os outros dois se abraçavam chorando. Isto não me convém! É sempre desagradável estar entre um tolo e uma mulher apaixonada! Safo-me!
 
[[Categoria:O Coruja|Segunda Parte, Capítulo 05]]