O Coruja/II/XVIII: diferenças entre revisões

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Às quatro horas da madrugada, quando Teobaldo chegou do baile, ele ainda estava de pé e a enferma parecia ter afinal sossegado e adormecido.
 
— Que! exclamou aquele. Pois ainda trabalhas?
 
— Schit! Qual trabalho... respondeu Coruja, pedindo silencio com um gesto. Passei a noite às voltas com a Ernestina... Ah! não imaginas... ataques sobre ataques!... Pobre rapariga! Não faças bulha... Creio que ela agora está dormindo...
 
— Impressionou-se naturalmente com o que eu lhe disse à tarde... Ora! não fosse importuna!
 
— Coitada!
 
— Bem, disse Teobaldo, mas recolhe-te ao quarto e trata de descansar; eu fico aqui. Vai.
 
— Mas não te deitas?
 
— Tenho ali aquele sofá; não te incomodes comigo. Vai para a cama, que deves estar caindo de cansaço. Adeus.
 
O Coruja notou que o amigo trazia qualquer preocupação.
 
— Sentes alguma coisa? perguntou-lhe.
 
— Ao contrário: há muito tempo não me acho tão bem disposto.
 
— Então boa noite.
 
— Até amanhã.
 
Coruja recolheu-se ao quarto e o outro pôs-se a passear na sala, enquanto se despia; depois chegou à porta da alcova, encarou com um gesto de tédio o to prostrado de Ernestina e voltou logo o rosto, como se tivesse medo de acordá-la com o seu olhar.
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Todo ele era só uma idéia: - a filha do comendador. Branca não lhe saía da imaginação; tinha ainda defronte dos olhos aquele sorriso que ela lhe deu à janela; sentia ainda entre as suas a sua tremula mãozinha e nos ouvidos a música das últimas palavras que lhe ouviu.
 
— Adorável! adorável! repetia ele.
 
E foi para a mesa em mangas de camisa e começou a escrever versos sentimentais.
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Ouviam-se, no silencio fresco da madrugada, o bater inalterável do relógio e os bufidos suspirados de Ernestina, que parecia dormir um sono de ébrio.
 
— Que mulher impertinente !... considerou ele, atirando com a pena e deixando pender para trás a cabeça a fitar o teto.
 
E pensou:
 
— Quando eu me lembro que a esta criatura nada falta - casa, rendimentos, criados, e que ela se vem meter aqui, possuída de esperanças injustificáveis... nem sei que juízo forme a seu respeito!... Será isto o verdadeiro amor?.. . Talvez, mas, se assim é, arrenego dele, porque não conheço coisa mais insuportável!... Ainda se ela não fosse tão desengraçada!... tão tola!... Mas, valha-me Deus! nunca vi mulher mais ridícula quando tem ciúmes; ainda não vi ninguém fazer cara tão feia para chorar!... Se ela fosse jeitosa ao menos; mas não tem gosto para nada, não sabe pôr um vestido, não sabe por um chapéu; e, em vez de endireitar com o tempo, parece que vai ficando cada vez mais estúpida! Não! Definitivamente é uma mulher impossível, apesar de toda a sua dedicação!
 
E, para se divertir, pôs-se a lembrar as asneiras dela. Ernestina não dizia nunca "eu fui", era "eu foi"; pronunciava pãos, razães, tostãos e gostava muito de preceder com um a certos verbos, como divertir, divulgar, reunir, retirar e outros; como também não pronunciava as letras soltas no meio da palavra. "Obstáculo" em sua boca era ostáculo, "obsta" era osta e assim por diante. E a respeito dos tempos do verbo? Se ela queria dizer "entremos", dizia entramos e vice-versa; perguntava - "tu fostes? - tu fizestes?" Uma calamidade!
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E Teobaldo a fazer estas considerações; e ela lá dentro a ressonar, agitada de vez em quando pelo sonho; ora gemendo, ora articulando palavras incompletas e destacadas.
 
— O bonito será se ela adoece deveras aqui em casa!... considerou ele. Era só o que faltava!
 
E, notando que amanhecia, ergueu-se da mesa, lavou-se, mudou de roupa e tomou um cálice de conhaque. Já de chapéu e de bengala, ia a sair, quando Ernestina se remexeu na cama, depois assentou-se e perguntou com a voz muito quebrada e fraca:
 
— És tu, Teobaldo?
 
— Que deseja? interrogou ele secamente.
 
— Não te recolhes?
 
— Não, porque me tomaram a cama.
 
— Não sejas mau.
 
— Ora!
 
— Para que me tratas desse modo?... Estou tão incomodada, tão doente... Se soubesses como tenho sofrido!...
 
— Sofre por teima! A senhora podia perfeitamente estar em sua casa, feliz e tranqüila.
 
— É exato; a culpa é minha. Que horas são?
 
— Amanhece.
 
— Que? Pois já se passou a noite inteira? Ah! agora me recordo que estive sem sentidos.
 
— Adeus.
 
— Vais sair?
 
— Vou.
 
— Por que não te demoras um pouco? Faze-me um bocado de companhia...
 
— Não, filha, preciso sair. Adeus.
 
— Escuta: foste sempre ao baile?
 
— Fui.
 
— Divertiste-te muito?
 
— Sim.
 
— Namoraste?
 
— Adeus.
 
— Vem cá.
 
Ele se aproximou dela com má vontade.
 
— Acho-te tão aborrecido, meu amor; não me trates com essa indiferença.
 
— Se lhe parece!
 
— Que?
 
— Que não devo estar aborrecido.
 
— Por minha causa?
 
— Naturalmente.
 
— Pois então vai-te embora, vai! Nunca mais te aborrecerei!
 
Teobaldo apertou-lhe a mão. Ela pediu-lhe um beijo, ele negou-lho e saiu cantarolando um trecho de ópera.
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Teobaldo, ao entrar da rua às três da tarde, parou, sem ânimo de penetrar na sala, e, muito lívido, perguntou ao companheiro:
 
— Que é isto? Ela morreu?.
 
— Matou-se.
 
E André, carregando com ele para o seu quarto, narrou-lhe minuciosamente o ocorrido e disse-lhe depois:
 
— E o seu herdeiro és tu.
 
— Eu?!
 
— É exato. Deixou-te o que possuía. coitada!
 
E limpou as lágrimas.
 
— Diabo! exclamou Teobaldo, soltando um murro na cabeça. Diabo! Maldito seja eu!
 
O outro não queria consentir que ele visse o cadáver, mas Teobaldo repeliu-o e correu para junto de Ernestina. Atirou-se de joelhos ao lado dela e abriu a soluçar como um perdido.
 
— Desgraçado que eu sou! Desgraçado que eu sou!
 
E ergueu a cabeça para lhe dar um beijo na testa.
 
— Quem sabe, pensou ele, inundando-a de lágrimas, quem sabe se este mesmo beijo um pouco antes não teria te poupado à morte!... Criminoso que sou! Enquanto morrias aqui, abandonada e repelida por mim, que te não merecia; enquanto me lançavas com o teu último suspiro a tua benção e o teu perdão, eu te amaldiçoava e maldizia o teu afeto, sem ao menos compreende-lo!
 
Coruja veio arrancá-lo dali à força, e tão acabrunhado o achou depois do enterro que, para o consolar, lhe disse:
 
— Então, então, meu Teobaldo! O que está feito já não tem remédio! Nada lucras com ficar neste estado! Vamos! No fim de contas não tens culpa do que sucedeu!...
 
— Não é verdade, meu André? volveu o outro, apoderando-se das mãos do Coruja. Não é verdade que não sou um assassino perverso?... Não é verdade que, se a matei...
 
— Oh! tu não a mataste!.
 
— Sim, matei-a! Sei perfeitamente que fui a causa de sua morte; mas eu também não podia adivinhar que a minha indiferença a levasse a tal extremo!
 
— Decerto, decerto!
 
— Ah! sou um desgraçado! sou um ente maldito! Todos me cercam de carinhos e bondades, eu só os retribuo com o mal e com a ingratidão. Reconheço que sou amado demais! Reconheço que nada mereço de ninguém porque nada produzo em benefício de quem quer que seja! Deviam dar cabo de mim como se faz com os animais daninhos!
 
Enlouqueceste, Teobaldo! Estás a dizer tolices!
 
— Não! replicou este, não! E em ti mesmo vejo a confirmação do que estou dizendo. És trabalhador, és perseverante, és digno de toda a felicidade, e, só por minha causa, não consegues ser feliz!
 
— Ao teu lado não posso ser infeliz, meu amigo.
 
— Ao meu lado és sempre tão desgraçado como eu! Ainda não conseguiste o teu casamento, ainda não conseguiste fazer o teu pecúlio, e tudo por que?..
 
Porque eu aqui estou! Já hoje não foste à tua obrigação; ontem gastaste o dia inteiro a cuidar desta pobre mulher que eu matei...
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Agora assistia à casa do comendador com mais freqüência e, uma vez em que se achou a sós com Branca, tomou-lhe as mãos e disse-lhe:
 
— Ah! Se eu pudesse lhe falar com franqueza...
 
— Mas...
 
— Sei que não tenho esse direito: a senhora nunca me autorizou a tal; muito me custa, porém, esconder por mais tempo o meu segredo... Oh! É um desgosto tão grande... tão profundo.
 
— Um desg0sto? creia que me penaliza essa notícia...
 
— Obrigado, no entanto...
 
— Mas, qual é o desgosto?
 
— Consente que lho confesse?
 
— Sim.
 
— Promete não ficar zangada comigo?
 
— Diga o que é.
 
— É o seu casamento.
 
— Com meu primo? Ora, isso ainda não está decidido.
 
— Mas estará em breve..
 
— Crê?
 
— É a vontade do comendador... e a senhora como filha dócil e obediente.
 
— Meu pai não seria capaz de casar-me contra a minha vontade...
 
— E é contra a sua vontade este casamento?
 
— O senhor já sabe que sim; mas não vejo onde esteja a causa do seu desgosto.
 
— É porque sou amigo de seu primo.. E desejava vê-lo casado comigo?...
 
— Ao contrário, e por isso que me desgosto.
 
— E por que não deseja vê-lo casado comigo?
 
— Porque...
 
— Diga.
 
— Porque a amo.
 
Branca estremeceu toda e quis fugir.
 
— Ouça-me, acrescentou Teobaldo, segurando-a pelos braços. Ouça e perdoe, minha doce esperança, minha vida! A senhora foi o meu bom anjo, foi a salvadora de minha alma; eu já me sentia perdido, gasto, morto; desde que a vi, reanimei-me como por encanto! Adoro-a, Branca, e basta uma palavra sua, uma única, para que eu seja o mais feliz ou o mais desgraçado dos homens!.
 
— Cale-te, Teobaldo!
 
— Não! Quero que me responda!...
 
— Mas que lhe hei de eu dizer?.
 
— Diga-me se devo ou não ter esperanças de ser amado pela senhora.
 
Ela quis escapar-lhe de novo; ele não deixou.
 
— Vamos! Fale.
 
— Sim... disse Branca afinal, corando muito e fugindo.
 
[[Categoria:O Coruja|Segunda Parte, Capítulo 18]]