O Coruja/III/XXVII: diferenças entre revisões

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E ouviu bater três horas.
 
— Três horas da madrugada! E não trabalhei, nem li, nem fiz coisa alguma. e nem posso dormir, e tenho de suportar a mim mesmo, sabe Deus até quando! E sinto-me doente! A febre escalda-me o sangue!
 
Levantou-se do lugar onde estava e, cambaleando, fez algumas voltas pelo quarto.
 
— Oh! Este isolamento me aterra!
 
Pensou então na mulher: - Ela nessa ocasião dormia, com certeza... Naquele momento daria tudo para, a ter junto de si.
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Assim é que a queria - companheira, amiga, unida e inseparável.
 
— Ah! Se eu não tivesse me incompatibilizado com ela!... Se pudesse ir buscá-la, traze-la aqui para o meu gabinete, desfrutar a sua companhia, gozar o seu coração!... Oh! mais tudo isto já não pode ser! Está tudo perdido! Ela continua a ver em mim um vaidoso, um fátuo, um homem ainda menor que o mais vulgar! Nunca mais poderei ser para Branca o que fui, o que ela me julgou na cegueira do seu primeiro amor!
 
E Teobaldo deixou-se cair de novo na cadeira, com o rosto escondido entre as mãos, a respiração convulsa, os olhos ardendo como se fossem duas chagas.
 
— Se eu não tivesse sido para ela o que fui, talvez, quem sabe? tivéssemos agora um filhinho?
 
Esta idéia lhe trouxe uma golfada de soluços.
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A porta estava fechada.
 
— Se ela soubesse quanto eu sofro!... Ela, que é tão boa, tão compassiva e tão casta, talvez, tivesse compaixão de mim!...
 
Mas não se animou a bater.
 
— Havia tanto tempo que não se falavam senão em público!... Ele tantas vezes desdenhara dos seus carinhos; tantas vezes fingira não compreender as lágrimas dela!...
 
Abandonou de novo o corredor, na intenção firme de recolher-se à cama.
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Chamou o criado, pediu conhaque, bebeu, despiu-se e deitou-se. Não conseguiu dormir. Tocou de novo a campainha.
 
— Meu amo chamou?
 
— Sim. Vê roupa. Torno a sair.
 
— Mas V. Exa. parece incomodado; creio que faria melhor em...
 
— Vê roupa! Não ouves?!
 
E, quando o criado ia de novo a sair, depois de cumprida aquela ordem:
 
— 0lha!
 
— Senhor!
 
— Chama o Caetano.
 
Era uma idéia que lhe acudira com vislumbres de inspiração.
 
— O Caetano... repetiu o criado, saiba V. Exa. que o Caetano está de cama.
 
— De cama?... Que tem ele?
 
Amanheceu há quatro dias com muita febre e ainda não melhorou.
 
— Achava-se nesse estado, e nada me diziam! Canalha!
 
— Peço perdão, mas devo notar que o senhor conselheiro há muito tempo que não aparece a ninguém.
 
— Cala-te. Sou capaz de apostar que deixaram sozinho o pobre do velho!...
 
— Saiba V. Exa. que a Sra. D. Branca, que o tem ido ver muitas vezes todos os dias, deu ordem ao Sabino para não sair do lado dele.
 
— Bem. Previne ao Sabino que eu quero ir ver o Caetano.
 
O criado, surpreso com estas palavras, mas sem o dar a perceber, afastou-se imediatamente; ao passo que o amo, vestindo-se às pressas e, contra o seu costume, em desalinho, abandonou ainda uma vez o gabinete e ganhou em direitura ao quarto do enfermo.
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Recebeu um logro. O pobre velho não dava mais acordo de si e só dizia palavras desnorteadas pelo delírio da febre.
 
— Não me reconheces, amigo velho? perguntou-lhe o conselheiro, amparando-se-lhe das mãos hirtas e nodosas.
 
— Sim, Nho Miló? Meta a espora no cavalo, que os Saquaremas, embicando por este lado, hão de encontrar homem pela proa!
 
E os olhos do velho torciam-se nas órbitas com um aceso de cólera senil.
 
— Sonha com meu pai e com as revoluções de Minas!... pensou Teobaldo entristecido. Ah! o Barão do Palmar foi ao menos um homem! É justo que este desgraçado lhe dedique os seus últimos pensamentos em vez de os dedicar a mim, que nem isto mereço. É justo! É justo!
 
E saiu dali para esconder o seu desespero contra aquele maldito velho, que, no delírio da morte, não achava uma palavra de consolação para lhe dar.
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Nada fizera do que lhe prometera; não lhe dera o tal emprego, nem mandara publicar a célebre história do Brasil.
 
— E havia tanto tempo que já não se viam!... Em que disposição estaria André a respeito dele?... Qual teria sido nessa ausência a sua vida, com uma família às costas e sem meios de ganhar dinheiro?... Quem sabe até se ele tivera estado doente?... Quem sabe se já não teria morrido?...
 
Davam sete horas quando Teobaldo entrava em casa do Coruja.
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O aspecto do corredor, o silêncio que aí reinava, entristeceram-no, pondo-lhe no coração um vago sentimento de remorso.
 
— Com um bocadinho de esforço, pensou a sua consciência, ter-se-ia restituído a esta pobre gente a primitiva felicidade!...
 
Foi Inez que veio recebê-lo, e, posto que surpresa com a visita, ela deixava transparecer no semblante as contrariedades de sua vida.
 
— Como está a senhora sua mãe? perguntou Teobaldo.
 
— Mal, Sr. conselheiro; há mais de um mês que ela não faz outra coisa senão gemer. Está cada vez pior. Agora tudo lhe dói: são as pernas, os braços, a caixa do peito, as costas, o pescoço e a cabeça! Coitada, chega a fazer dó!
 
— E o André? Como vai?
 
— Não sei, não senhor, mas também não anda bom! Ultimamente quase que não dá uma palavra a pessoa alguma; entra da rua e sai de casa, sem tugir nem mugir; às vezes mete-se no quarto às seis da tarde e só dá sinal de si no dia seguinte.
 
— E como vão os negócios dele? Sabe?
 
— Sei cá! Se ele não fala com pessoa alguma! Não dá uma palavra!
 
— Tem trabalhado muito?
 
— Trabalhado?
 
— Pergunto se tem escrito.
 
— É natural; pelo menos leva um tempo infinito metido no quarto.
 
— Ele está aí?
 
— Está, sim, senhor; faz favor de entrar.
 
Teobaldo foi bater à porta do Coruja e ficou gelado defronte do ar frio que este o recebeu.
 
— Como vais tu? disse.
 
André sacudiu os ombros e resmungou alguns sons que não lhe passaram da garganta.
 
— Que diabo tens hoje? Acho-te mudado.
 
— Nada.
 
— Não! Tens alguma coisa que te aflige!
 
— Aborrecimento. Entra. Já tomaste café?
 
— Ainda não, e quero, porque não me sinto bem.
 
— Estás doente? Nunca te vi tão amarelo e tão abatido.
 
— É! Efetivamente não tenho passado bem! Apoquentações... Agora mesmo creio que sinto febre! Não imaginas a vida que levo! Um martírio!
 
Coruja afastou-se para ir buscar café e o outro então o considerou melhor. O desgraçado estava muito mais acabado e mais feio: caía-lhe agora, todo o cabelo sobre os olhos, que se sumiam debaixo das pálpebras; a boca envergava-se para baixo em uma expressão constante de desgosto e ressentimento; as costas arqueavam-se-lhe como as de um catético, e o peito afundava-se-lhe cavernosamente, tornando-o mais encolhido, mais mesquinho e mais reles.
 
— Pois, meu amigo, confesso-te, disse Teobaldo, quando ele voltou com as xícaras, que te procurei, porque preciso de ti, como de pão para a boca. Preciso da tua companhia. Aqui onde me vês, sou uma vítima do isolamento e do tédio!
 
André não respondeu e foi assentar-se a um canto do quarto, sobre um caixão vazio.
 
— Ah! meu bom Coruja, prosseguiu S. Exa., não calculas como ando! Um inferno! Sinto-me farto, inteiramente farto da vida! Sinto-me devastado! Preciso de ti! Quero-te ao meu lado! Venho buscar-te, e não volto para casa sem te levar comigo!
 
— Impossível! respondeu o outro seca mente.
 
— Impossível?! repetiu o ministro, fulminado por esta palavra. Como impossível?! Pois tu não queres vir comigo?
 
— Não posso.
 
— E por quê?
 
— Porque me sinto inutilizado! Já não presto para nada! Já não posso suportar a companhia de ninguém!
 
— Ora essa! Então tu também estás desgostoso?
 
— Mais do que podes supor. E peço-te que mudemos de assunto.
 
Fez-se um grande silêncio entre os dois; cada um fitava o seu ponto, sem ânimo de trocarem um olhar entre si.
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Teobaldo perguntou afinal, erguendo-se:
 
— Não devo então contar contigo?
 
— Não, não posso ir. Desculpa-me.
 
— Está bom! Paciência!
 
E, depois de dar em silêncio uma volta pelo quarto, disse meio hesitante:
 
— É verdade! E a tua história do Brasil? Terminaste-a?
 
O Coruja, sem desviar os olhos do lugar em que estavam presos, apontou para um grande montão de papéis rotos, acumulados ao fundo do quarto.
 
— Que é isto? interrogou o conselheiro.
 
— Desisti.
 
— Como assim?
 
— Abandonei por uma vez!
 
— Não concluíste o trabalho?
 
— Não.
 
— Mas foi loucura de tua parte.
 
Coruja sacudiu os ombros, indiferentemente, e pousou os cotovelos sobre os joelhos, ficando com as duas mãos abertas contra o queixo, sem dar mais uma palavra.
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Embalde tentou o outro puxar por ele e, vendo o egoísta que, em vez de consolações, encontrara ali ainda maior desânimo que o seu, despediu-se e saiu arrastando até à casa a negra túnica das suas aflições.
 
— Até este! pensava ele já na rua, até o Coruja me vira as costas! Só o público, essa besta insuportável e estúpida, só o público me abre os braços! E do que me serve o público, se não tenho a quem amar? Do que me serve o público, se vivo neste isolamento pior que tudo? Do que me servem admiradores, se não tenho amigos?
 
Durante o caminho, Teobaldo, justamente ao contrário do que sucedia com André, encontrou mil pessoas que corriam a saudá-lo, apertar-lhe a mão, que o abraçavam, que o felicitavam "mais uma vez" por tais e tais gloriosos feitos.
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Mas em todas essas fisionomias só viu e percebeu: - em umas, a adulação; em outras o fingimento; em outras a má vontade invejosa e sem ânimo para se patentear; e em nenhuma encontrou o que ele procurava com tamanho empenho, aquilo que ele dantes descobria em quantos o amavam e a quem afastou de si, para sempre; isto é, a dedicação, o desinteresse, a verdadeira amizade.
 
— Ah! não valia a pena sacrificar àquela besta esse inestimável tesouro, que agora lhe fazia tanta falta!
 
E era tarde! O egoísta já não podia encontrar em torno de si senão a sombra de si mesmo. E todos que o idolatravam com tanto desinteresse e aos quais ele só respondeu com a ingratidão, perpassavam agora em torno de seu espírito como espetros de remorso que se erguiam para o fazer mais infeliz, mais inconsolável e mais revoltado contra o seu isolamento.